Fortaleza completa 295 anos como uma abstração para muitos. Com o distanciamento social e dois lockdowns no período de um ano, a Capital foi entrando em hibernação. A movimentação das ruas não é a mesma, as sensações também não. Sobram a saudade e a memória do fortalezense que anseia por ocupar cada bairro e prédio como nunca antes.
Enquanto aguardam pelo reencontro, os moradores - nativos ou não - cultivam Fortaleza no imaginário. Eles recorrem aos detalhes mais simples, como o vento balançando as árvores ou o fluxo das pessoas, para encontrar entre as lembranças a Cidade que amam. Nesse processo, descobrem também que a Capital não é feita só de casas e avenidas, mas de gente. Nesta reportagem, o leitor poderá ouvir os entrevistados, acompanhar o podcast do Vida & Arte com o tema "A cidade e as memórias" e assistir ao vídeo "Fortaleza, 295 anos". (Ilustrações por Catalina Leite)
Se Tércia, 44, fechar os olhos e vasculhar na mente a sensação do vento do Benfica, ela é capaz de se teletransportar. Em poucos segundos, ela respira o ar do Bosque Moreira Campos, mais conhecido como Bosque das Letras, entre as Casas de Cultura Estrangeira do Centro de Humanidades I, no bairro Benfica. A dois metros dela, um gato dorme tranquilamente enquanto o vento balança a copa das mangueiras. O vai e vem das folhas projeta sombras tão características que a professora de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC) poderia situar-se apenas pelo contraste entre claro e escuro.
Escritora e fotógrafa, Tércia Montenegro escreveu, em 2014, o Dicionário Amoroso de Fortaleza. “É curioso você falar no livro porque eu estava relendo como uma estratégia para matar a saudade”, comenta. Quando ela o produziu, Tércia pode visitar locais de Fortaleza não habituais para ela. Foi uma época de descobertas e conexão com a cidade natal.
Mas com a pandemia, são os ambientes rotineiros que deixam um buraco no coração. Para a professora, o Benfica é um antro de cultura, arte e política que ganha vida com os passos apressados e também lentos da comunidade universitária. “Eu acho que estamos em uma hibernação. O confinamento é isso: a gente está se recolhendo para se proteger, mas esses espaços continuam sendo espaços de potência”, reforça.
Por enquanto, Tércia procura nas páginas de um livro e na força dos alunos - por meio das aulas remotas - o Benfica de outrora. E o Benfica a aguarda, para quando a pandemia passar.
Iracema é extensa, cheia de detalhes. Para aproveitá-la por inteiro, é preciso tirar o dia e passear pelo Centro Cultural Dragão do Mar e pela Beira Mar, preparado para respirar cultura. O tour seria mais ideal ainda na companhia de Mona Gadelha, 60 anos: “Eu acho que Fortaleza faz parte da minha história, não eu dela. Ela faz parte da história da minha geração”, ri, lembrando da época da Turma do Rock.
Atualmente, Mona é coordenadora do Laboratório de Música da Escola Porto Iracema das Artes, para o qual espera voltar em breve. “Ver de novo todo mundo tocando violão, conversando, rindo, chorando também. Tenho uma saudade imensa de circular pela praia de Iracema", diz.
Não teria como ser diferente. A cantora está desde a adolescência envolvida no cenário cultural da Cidade e o viu evoluir. Na década de 80, por exemplo, Fortaleza ainda carecia de estúdios de gravação, o que levou Mona a se mudar para São Paulo. Mas a realidade agora é outra: “Eu vejo uma tradição que vem se consolidando de grandes músicos. É uma criação muito pulsante [em Fortaleza]”, comemora.
Mas com a pandemia, os artistas recorreram às apresentações virtuais para manter o trabalho e garantir o entretenimento em tempos tão difíceis. Enquanto isso, a classe profissional perdeu grandes nomes para a Covid-19. Será difícil retomar a Iracema alegre e pulsante de antes, mas os artistas resistem.
"Eu lembro do show que fiz na Praia de Iracema, no projeto Férias da PI [em janeiro de 2020]. Foi um show muito especial para mim, tive a participação de outros artistas jovens. Foi um momento muito forte, muito bonito, que guardo com muito carinho", conta. Por essas oportunidades, garante, vale a pena esperar.
Em 2020, o Cineteatro São Luiz promoveu um show de Mona com Lúcio Ricardo. Os cantores dão sotaque cearense ao blues rock. Aproveite:
Aos 77 anos de idade e mais caseiro do que antes fora, Fausto sente saudade de uma época. Lá nos idos dos anos 70 a 80, quando o jovem Fausto caminhava pelas ruas agitadas do Centro à noite, a Fortaleza era mais comunitária. Tinha vida junto com o céu estrelado e fervilhava em conversas, cultura e vida noturna. Hoje em dia, não é bem assim. Após 17h, quando os comércios fecham as portas, a via fica silenciosa.
“Eu posso dizer que eu não gosto de andar no Centro à noite. Quando eu vejo aquelas ruas vazias, que eu conheci com gente na rua, é triste. É pesado. Muitas vezes até me emociona demais”, reflete. O problema é o Centro não ter mais habitações, apenas lojas, explica.
Arquiteto formado pela primeira turma de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), o nome de Fausto está na calçada da Praça do Ferreira, na estrutura do Mercado São Sebastião, nas curvas do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e em tantos outros locais públicos de Fortaleza. Não à toa, ele sente uma falta danada de caminhar pelas ruas. "Gosto de fazer tudo a pé, eu me divirto", ri.
Ele também é um dos letristas e cantores mais importantes de Fortaleza e do Brasil. Durante a quarentena, já escreveu 25 letras inéditas, em parceria com cantores como Fagner, Zeca Baleiro e Chico César.
Justamente por carregar tanto amor pela Capital, Fausto gostaria que ela estivesse melhor. Menos desigual, mais sustentável. Aplicando o Fortaleza 2040 com precisão, respeitando o meio ambiente e entendendo que cidade é feita para morar, não para vender.
A periferia não tem tempo de sentir saudade, explicam Gabriela Araruna, 31, e Gabrielle Madeiro, 27. Primeiro porque é ela quem faz Fortaleza funcionar, segundo porque não há certezas sobre o dia de amanhã. Em meio à desigualdade e às diversas violências só há o momento presente. E ele é vivido em comunidade, no quintal de casa: a rua.
“Na periferia você não precisa sair, se deslocar, pra viver o espaço. Você só vai pra calçada e a vida tá acontecendo, as pessoas estão existindo”, conta Madeiro, consultora publicitária e cineasta.
Na pandemia não tem sido diferente. Mesmo com alguns usando máscaras e mantendo o álcool em gel ao lado, as calçadas continuam respirando e as crianças ainda empinam pipas e brincam de bola. As comunidades, afirmam, sempre usaram seus potenciais inovadores e criativos para viver Fortaleza. “A periferia é esse lugar de invento porque existo”, ri Araruna, publicitária.
Para elas, a periferia já ocupa a Cidade como muitos moradores da classe média desejariam, apropriando-se dos espaços públicos e transformando-os em extensão do lar.
De tanto pensar no coletivo (com muito orgulho, diga-se), elas quase não lembraram de dizer de onde, pessoalmente, sentem saudade. Após citar muitos nomes, incluindo a Vila do Mar e o Antônio Bezerra, a dupla chegou a um meio termo: o Mirante do Mucuripe. Não por acaso, o ponto mais alto e a melhor vista de Fortaleza, bem no quintal de casa da periferia.
A Vila do Mar foi protagonista do mini documentário Povoesia, produzido por Gabrielle Madeiro e Gabriela Araruna, como trabalho de conclusão de curso em Cinema e Audiovisual na Universidade de Fortaleza (Unifor). Assista:
Dona Rita, de 53 anos, mora na sua própria saudade. Rodeada de livros na biblioteca comunitária Livro Livre Curió, ela sente falta dos jovens ocupando as cadeiras, dando sentido às estantes, e dos momentos em roda para as várias oficinas promovidas pela Livro Livre.
“Eu gosto muito de ter gente na minha casa, gosto muito de abraçar e beijar… Então, pra mim tá sendo muito difícil”, comenta, logo em seguida pensando na criançada. Eles devem sentir saudade das oficinas, das excursões ao centro cultural de Fortaleza... “Tô até assim meio triste esses dias, porque já vai fazer um ano”, confessa Rita, que é esteticista e mediadora de leitura.
Rita herdou a hospitalidade da mãe, Genésia Gomes da Silva, uma das mulheres responsáveis pela fundação do bairro Maraponga. “Ela não pensava só nela, ajudou muitas pessoas, aquelas que são esquecidas. Ela acolhia todo mundo na casa dela”, emociona-se. Dona Genésia trazia felicidade e festa à comunidade, assim como Rita faz agora, com a biblioteca. Seguindo os passos da mãe, a mediadora de leitura também contribuiu para a fundação do bairro Curió. “Fomos nós, as comunidades, que construímos, com muita luta”, orgulha-se.
Genésia, Rita, Talles Azigon - filho de dona Rita e fundador do Livro Livre Curió - e tantos outros nomes compõem a história de Fortaleza. Eles comemoram o aniversário da Cidade pensando em um futuro de paz, justiça e cultura para os jovens da periferia. “A gente pode crescer por meio da arte e da cultura”, reforça Rita. E a biblioteca, assim como a CasAvoa, anexo do Livro Livre, representa essa evolução.
Quando a pandemia acabar, as portas finalmente voltarão a ser abertas pela mediadora, com o sorriso característico e os braços abertos. Só então Rita estará em casa novamente.
Antes de se mudar de Guiné Bissau para Fortaleza, o sociólogo Farã Cafacaiã, 27, conhecia apenas dois Brasis. Um era o Brasil da novela, branco e rico. O outro era o da violência, protagonizado por corpos negros. Ele sequer conhecia o Ceará na época em que se inscreveu para a graduação em Humanidades na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
Mas quando desembarcou em Fortaleza, em junho de 2013, o bissau-guineense descobriu não apenas o estado, mas espaços em que ele, como imigrante e negro, poderia existir. “Não significa também que não me encontrei com espaços de violência”, reforça. Ainda assim, a Capital também virou sinônimo de emancipação. Um local no qual a violência não é a única característica.
Desde sua chegada, Farã viu Fortaleza melhorar na receptividade de imigrantes africanos. Em 2013, as perguntas a ele e a outros amigos demonstravam a falta de informação dos cearenses: “Vocês vieram de avião? Como isso é possível?”, exemplifica. Ao mesmo tempo, o encantamento pela cultura e o desejo de receber bem o “irmão africano”, como define o sociólogo, eram perceptíveis.
Durante a entrevista, Farã riu ao concluir que gostava de Fortaleza e arredores. De 2013 a 2020, ele concluiu a graduação em Humanidades, a licenciatura em Sociologia, a especialização em Gestão Pública Municipal e o mestrado em Humanidades; todos pela Unilab. “Deve significar alguma coisa”, afirma.
Entre desencantos com o racismo e a xenofobia, e, na contramão, encantos com a hospitalidade, o sociólogo destaca a educação como o aspecto mais apaixonante de Fortaleza. “Fortaleza tem se esforçado muito pela educação pública. Oferecer ensino aos jovens é um modelo que me encanta, sobretudo pelos jovens que vão à rua levantar a bandeira”, confirma.
Sempre é um desafio falar sobre Fortaleza, porque eu não sou daqui. Vim de Manaus para começar a faculdade, há quatro anos, e ainda tenho um olhar muito estrangeiro para a Cidade. Eu a descubro todos os dias, seja pela confusão ao andar de ônibus, seja pelas apurações para o trabalho ou para a faculdade.
Por exemplo, no meu primeiro ano, eu peguei um ônibus errado e passei uma hora e meia dando voltas - seria um tour? - pela Capital até chegar ao Benfica. Em outra ocasião, confundi o ônibus 30 com o 38 e quase entrei em desespero ao não reconhecer a avenida Carapinima. A primeira vez que fui ao Antônio Bezerra, eu tentava voltar para o Jornal O POVO com a carteira de trabalho recém-feita, esperando o carimbo do primeiro estágio. Já a primeira vez que caminhei pelos espigões do Náutico, estava com os amigos assistindo a um eclipse solar.
Por isso, ser incumbida de escrever uma reportagem sobre o aniversário de Fortaleza de maneira remota, foi uma missão difícil. Não só por falar, em algumas ocasiões, de uma Cidade que eu não conheço, mas principalmente por perder a oportunidade de desvendá-la. Para mim, Fortaleza ainda é um quebra cabeça emocionante. A cada chance, eu me encanto por um local novo, que eu nem imaginava existir.
Mesmo assim, testemunhar o carinho que os fortalezenses têm pela Capital e por aquelas que a vivem é inspirador. O jornalismo é isso: ouvir e descobrir. Com certeza, quando conhecer os cantos do Curió e da Vila Mar, terei comigo os olhares de dona Rita e de Gabriela e Gabrielle. Da mesma forma, nunca mais caminharei pelo Centro e por Iracema sem imaginar o passado de Fortaleza, vivido por Fausto e Mona. Em Tércia, redescobri a saudade que sinto das sombras e do vento do Benfica, e com Farã pude refletir sobre a receptividade cearense.
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Especial mostra a relação das pessoas com Fortaleza, a partir de duas perspectivas: um inventário amoroso-geográfico e as transformações da cidade