Antes das quatro da tarde, Fatima Miranda já se perfumou. Em saltos e vestida com apuro, confidencia: “A gente tem que amar e estar sempre da melhor maneira”. Aos 60 anos, mãe de três filhos e moradora apaixonada pelo José Walter, bairro na periferia de Fortaleza, a técnica em enfermagem passa em revista o último ano. Tempo difícil. Mas faz consigo uma aposta: “Vai melhorar”.
Não carece que se explique, a frase tem alcance que vai além do cotidiano. Diz do dia a dia do lugar onde vive há 48 anos, do qual não pretende arredar pé (“aqui ainda vai virar uma Aldeota”), mas também futura o porvir, como se costurasse um depois com o tecido de fé.
Sentada num banco de madeira já na boquinha da noite de uma quarta-feira de céu nublado, Fátima lembra do confinamento, período no qual suspendeu o de que mais gosta: a natação, os passeios, as andanças de bicicleta, só retomadas aos bocados muito adiante, apenas para ser novamente interrompidas.
Nesse intervalo, entre saídas e voltas, viu o coração do bairro se transformar. Onde havia um centro social deteriorado, obra de gestão passada e nunca reformada, mas cuja presença é marcante na região, ergueu-se, em dezembro passado, um Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cuca). É um canto de afeto.
"“A gente tem que amar e estar sempre da melhor maneira”"
Ali, Fátima aprende as braçadas e pernadas que o filho, o professor de natação, tenta lhe ensinar uma vez na semana. “Estou no começo, mas já consigo acompanhar. Pena que tivemos de parar por causa da pandemia”, ri-se. Depois brinca: “Não pareço ter 60, pareço com 40, né?”.
Em seguida, levanta-se do banco. Anda pela praça e puxa pela memória. Recua três décadas, quando a filha desfilava como manequim naquele mesmo espaço e, a cada mês de junho, apresentavam-se as quadrilhas juninas. “Minha vida foi aqui, desde a adolescência. É um lugar de muito amor”, rumina, a vista perdida num longe que ela tenta aproximar.
“Brincava de pingue-pongue, fiz curso de costura. Depois fui trabalhar numa fábrica. Meu filho fez a primeira aula de natação aqui, minha filha aprendeu muita coisa”, rememora, cerzindo em mão habilidosa o crescimento do Zé Walter com o da própria família.
Hoje já adultas, as crias são três: uma agrônoma, uma filósofa e um educador físico. “Tem até uma doutora”, orgulha-se a mãe. Para ela, fortaleza é ter raiz forte fincada neste terreno, garantindo sustentação dos de casa.
“Outros familiares foram embora. Sempre me chamam para ir morar noutro bairro, mas eu não largo o Zé Walter. Gosto daqui”, diz, e esse aqui cheio de ênfase também é fio que ela desenrola e estende à rua, abarcando todos os tempos.
Porque o bairro antigo e o novo se misturam nas ideias de Fátima. A paisagem muda, mas a praça onde agora revisita o antigo, a pretexto de contar do hoje, é a mesma praça onde se dançava o forró léguas de anos atrás.
Isso a pandemia não apaga: o encanto de ver longe, para trás e para frente, e enxergar na permanência das coisas e em sua mudança a própria história, as marcas da passagem inscritas nesse corpo de cidade, que se confunde com o corpo da gente.
Laço de consanguinidade. De vez em quando custo a me reconhecer nesse desenho quadriculado, nessa mania de novidade e de pôr abaixo o velho. Desgosto, mas a cidade onde se nasce e mora tem com a gente um laço de consanguinidade. Nega-se o sangue? A saída é viver numa encruzilhada de metrópole inventada e metrópole real, a do dia a dia e a do sonho. Parte física, parte matéria de afeto, as cidades ocasionalmente se cruzam e se fecundam. É quando tudo vale a pena e estar aqui, em Fortaleza, se justifica. Nega-se o amor? Vive-se nele e dele, mesmo atravessado de corrosão da maresia
Especial mostra a relação das pessoas com Fortaleza, a partir de duas perspectivas: um inventário amoroso-geográfico e as transformações da cidade