Se a cultura gamer “é uma bomba relógio”, como alertou o professor Thiago Falcão, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), seus efeitos já são sentidos desde muito tempo no país, mas apenas recentemente isso ficou mais evidente.
Tome-se o caso da apresentadora paulista Isadora Basile. Aos 24 anos, conseguiu a proeza de se tornar parte da equipe da “Xbox News”, parte do canal da XboxBR, que representa oficialmente a marca do console da Microsoft no Brasil. Era o emprego dos sonhos: remunerada para fazer o que gostava no lugar onde havia se empenhado para estar.
Mas o idílio durou pouco. Isadora logo se tornou alvo de uma espécie de “Gamergate” à brasileira, entrando na alça de mira de usuários de fóruns, plataformas e canais de jogadores que se mostravam incomodados com a presença de uma mulher à frente de um papel tão importante: falar sobre jogos. Resultado: cassaram a carteirinha de Isadora.
Não só isso. Gamers de modo geral e “caixistas” em particular, como são chamados os adeptos do Xbox, pressionaram a empresa a afastá-la do cargo, ainda que ela se mostrasse à altura dos desafios da função, dominando os assuntos e se comunicando com eficiência.
No dia 16 de outubro de 2020, a decisão: Isadora havia sido demitida do canal. Em nota divulgada nas redes sociais, a própria apresentadora escreveu:
“Quando anunciei meu novo trabalho, sofri ataques de todos os tipos, desde pessoas falando que eu não jogava jogo X ou Y e por isso não era ‘digna’ do meu cargo, até ameaças de estupro, morte e julgamentos por expor situações mais tensas”, narrou a jovem.
Em seguida, revelou que, “devido a esses ataques, a Microsoft encontrou como melhor opção me desligar do cargo de apresentadora para que eu não esteja mais exposta a situações como essas que se passaram. Respeito a decisão pela marca. Meu amor pela Xbox/Microsoft continua firme, como sempre esteve”.
Isso mesmo. Sob pretexto de proteger uma vítima de campanha massiva de assédio e ameaça física, tal como a deflagrada pelo Gamergate, a marca demitiu-a do emprego para o qual havia sido contratado menos de um mês atrás. Nesse curto período, Isadora chegou a gravar apenas sete vídeos.
Também por nota, a Microsoft se posicionou à época. Atribuiu a saída de Isadora a uma mudança na “estratégia de conteúdo original da Xbox no Brasil”, acrescentando que o portal “Xbox Wire passa a ser a única fonte de notícias e conteúdo de alto impacto” (da companhia) e que o canal “XboxBR”, no qual a brasileira trabalhava, “continuará experimentando novas maneiras de entreter os gamers brasileiros”.
Isadora, todavia, não era a primeira a ser abatida por uma milícia virtual engajada em manter as mulheres afastadas de seu domínio.
Apenas um ano antes, a streamer Gabi Cattuzzo, 26, então representante no país de uma marca renomada de produção de acessórios para hardware, foi sumariamente defenestrada de sua função depois de reagir a uma série de declarações de cunho sexual em suas redes sociais.
Na caixa de comentários após publicar uma foto em que Gabi brincava num touro mecânico, um usuário escreveu: “Pode montar em mim à vontade”.
Ela reagiu no ato: “Sempre vai ter um macho fodido para falar merda e sexualizar mulher até quando a mulher tá fazendo uma piada, né? É por isso que homem é lixo”.
A declaração viralizou nos fóruns de videogame, cujo público é majoritariamente masculino, causando mal-estar entre usuários, que se consideravam injustamente atacados. Afinal, segundo diziam, nem todos eram lixo. Gabi exagerara e deveria se desculpar.
O POVO tentou contato por email com as duas profissionais alvo de assédio, mas não houve retorno às tentativas de entrevista para comentar os ataques. Hoje, ambas trabalham em canais. Isadora é apresentadora no “The Enemy BR” e Cattuzzo, escritora e streamer na Twitch.
Há mais exemplos além da misoginia, no entanto, como o do racismo manifestado pela conta “Xbox Mil Grau”, de junho do ano passado. O caso obrigou novamente a Microsoft a repudiar falas criticando negros que protestavam nos Estados Unidos contra a morte de George Floyd por um policial. A conta da Xbox Mil Grau tinha então 170 mil seguidores no Youtube.
Em abril último, novo episódio, agora implicando o streamer Alexandre Borba Chiqueta. Conhecido como Gaulês, ele usou uma transmissão do jogo online “Counter Strike: Global Offensive”, no qual tem uma trajetória bem-sucedida e admirada, para criticar a cobertura da imprensa durante a pandemia de Covid-19.
Enquanto jogava e fazia disparos de armas na partida que confronta terroristas e policiais, o gamer falou: “Eu acho que é legal os caras noticiarem a pandemia. Só que é só notícia triste, velho, é só abalo, e aí eu percebi que os caras fazem isso, não tem como não ser de propósito, tá ligado? Eles fazem isso pra você ficar em choque e ver mais notícia. Pra você saber das coisas ruins que tão acontecendo pra você ficar mais em choque, pra você precisar ver mais notícia”.
Gaulês não é qualquer jogador. É o maior streamer do Brasil e um dos mais importantes do mundo. Tudo que fala tem imensa repercussão entre gamers, galvanizando a atenção e produzindo uma onda de engajamento – um atributo atraente para políticos como Jair Bolsonaro (sem partido), com quem ele já se mostrou alinhado.
A declaração reproduzida acima, por exemplo, alçou o nome do e-atleta para o ranking dos assuntos mais comentados do Twitter naquele 21 de abril.
O gamer já havia se envolvido noutra controvérsia pouco antes disso, porém. Em março passado, um trecho de uma live de Gaulês foi recortado e postado nas redes pela conta @GamerAntifa, que criticou o teor da manifestação do streamer. Nessa transmissão, Gaulês criticava integrantes do MST e MTST.
Após sua reação, @GamerAntifa foi suspensa do Twitter, com ajuda da base de fãs de Gaulês e de apoiadores do presidente da República, que convergiram para se insurgir contra um inimigo comum.
Quase dois meses depois, o perfil, que analisa jogos e tem alinhamento à esquerda, segue bloqueado.
Os casos relatados aqui são exemplares de como a política e os games trilham caminhos que se aproximam, numa relação que data de muito antes, talvez desde o início da produção de jogos, mas que se tornou mais explícita agora, com a emergência de plataformas de transmissão e seu uso por jogadores que se identificam com uma agenda de extrema-direita – ou o contrário, extremistas que vêm ocupando esses novos espaços de sociabilidade que são as redes e os fóruns.
Jair Bolsonaro, assim como Donald Trump antes dele, parece ter percebido, com uma ajudinha dos filhos (sobretudo de Jair Renan), o potencial desse segmento, mobilizado e aparentemente simpático a um ideário que comunga com parte dos conteúdos supremacistas postulados por grupos como a alt-right nos Estados Unidos, onde há uma coesão maior.
No Brasil, seja porque existe dificuldade de acesso a periféricos, jogos e videogames de maneira geral, um produto caro e cujo consumo já exclui, de partida, larga faixa da população; seja porque a onda ainda não bateu com força, o cenário é de “pré-Gamergate”, como sugeriu o jornalista e crítico de jogos Pedro Zambarda.
É possível que não haja um escândalo do tipo, como uma caça às bruxas que rapidamente é capturada pelo discurso reacionário e então redirecionada para um objetivo político, a exemplo do que fez Steve Bannon em 2014.
Seria o que Bolsonaro procura para 2022? Fidelizar o público que se mantém mais próximo, apesar do desgaste do presidente, como ocorre com outras faixas do eleitorado que sustentam ainda os 25% de aprovação do chefe do Executivo?
Não se sabe ao certo. Os indícios de que algo não vai bem no mundo dos gamers, todavia, estão cada dia mais claros. O jogo está longe de acabar.
No Episódio 4, que encerra esta série, a reflexão de duas pesquisadoras sobre o machismo e o extremismo no mundo game.
Especial em três episódios mostra a relação videogames e política no governo Bolsonaro