Reparem no barbudão ao lado do cara com chifres e rosto pintado nas fotos da invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro deste ano, nos Estados Unidos. Veste camisa de mangas longas que deixam as mãos e parte dos pulsos à mostra. Tem os dorsos tatuados: no esquerdo, um símbolo se sobressai. A imprensa chegou a confundi-lo com o signo da luta antifascismo ou uma foice e martelo estilizados, remetendo ao comunismo, mas estava enganada.
Era a “marca do Estranho”, carregada pelo personagem Corvo Attano, do jogo “Dishonored”. Lançado em 2012 para PS3 e depois remasterizado para PS4, o game apresenta um enredo de vingança e conspiração. Nele, Attano é auxiliado por uma força obscura chamada de “Estranho” (cujos adeptos carregam seu emblema na mão, tal como o invasor do Congresso nos EUA) na missão de derrotar uma conspirata que o acusou falsamente de uma série de crimes, entre eles o de assassinato.
O jogo foi bem-sucedido por sua narrativa concentrada na ideia de que um homem tem de desmascarar um sistema oficial, desmontando-o peça por peça, numa cruzada pessoal, mas também coletiva – uma espécie de Neo, o protagonista de “Matrix”, só que em outro contexto. Não por acaso, tanto Corvo Attano quanto o hacker do filme de 1999 das irmãs Wachowski caíram no gosto dos conspiracionistas contemporâneos e inspiraram caracterizações, como referências à pílula vermelha.
Naquele dia, 6 de janeiro, o cara barbudo e o chifrudo eram parte do grupo que, encorajado por Donald Trump, vandalizou o Legislativo dos EUA, deixando cinco mortos e interrompendo a sessão parlamentar que formalizaria a eleição de Joe Biden como novo inquilino da Casa Branca.
O ato criminoso foi transmitido ao vivo a partir da plataforma de streaming DLive, voltada principalmente para jogos de videogame e discussões de tópicos sobre o tema, mas muito frequentada pela alt-right àquela altura unicamente por falta de opções – eles já tinham sido banidos do YouTube e da Twitch, a ferramenta da Amazon.
Patrick Casey, líder neonazista norte-americano, era um desses usuários da DLive que celebravam a mobilização, encabeçada por fanáticos do QAnon e outros “trumpistas” clássicos, entre adeptos do militarismo, supremacistas e membros do “Groypers”, célula ainda mais radical do que os “channers” do Anon, que haviam ajudado a deflagrar os escândalos do Gamergate e do Pizzagate anos antes, num ensaio do extremismo ao vivo que se via agora e cujos efeitos mesmerizavam o mundo inteiro.
Mas já estava tudo lá, muito antes da imagem de simbologia intrigante que conjugava tradicionalismo, xenofobia e outras variáveis da amálgama que era o substrato dos radicais de Trump. As conexões entre extrema-direita e o mundo dos jogos é anterior a esse dia.
Na verdade, a própria eleição do empresário em 2016 se deveu em parte a uma estratégia elaborada com a ajudinha dos games, área na qual Steve Bannon, o ex-conselheiro do governo, acabou aprimorando suas técnicas de difusão de fake news, arrebanhando aliados e disseminando a pauta conservadora.
O ano é 2014. Bannon, um dos responsáveis pelo canal “Breitbart News”, apostava no potencial de uma revolta dos gamers a partir da exposição de um rumoroso término de namoro que evoluiu rapidamente para a divulgação de dados pessoais, perseguição e ameaças de morte, não apenas da vítima, a desenvolvedora Zoë Quinn, mas também de quem a defendesse publicamente, como a ativista, escritora e crítica de games Anita Sarkeesian.
Conhecido como “Gamergate”, numa referência ao Watergate (série jornalística investigativa que resultou na renúncia de Nixon, em 1974), o episódio sacudiu a indústria e trouxe à superfície camadas e mais camadas de misoginia, racismo e transfobia que estavam latentes entre os jogadores e inscritos em fóruns como 4chan e 8chan, Reddit e outros – exatamente a cultura na qual Bannon passou a apostar para impulsionar Trump.
Segundo ele, o nervo exposto pelo Gamergate podia se resumir à defesa de uma pretensa identidade gamer contra supostos invasores (gays, lésbicas, negros, trans). Esse traço imediatamente o fez enxergar ali uma mina de ouro ainda inexplorada pela política tradicional.
Centenas de milhares de usuários jovens e gamers descontentes (“homens cisgêneros, heterossexuais e brancos”, conforme artigo dos pesquisadores Lucas Goulart e Henrique Nardi) com o que chamavam jocosamente de os “guerreiros da justiça social”, um segmento identificado com o progressismo que vinha conseguindo arejar o universo dos jogos e ampliar a representatividade no enredo, no cardápio de personagens e na feitura em si dos produtos. Um exemplo recente desse movimento é o jogo “The Last of Us – parte 2”, da Naughty Dog, protagonizado por uma adolescente gay.
Logo Bannon se fez a pergunta de um milhão: que outro grupo nos EUA também estava travando uma batalha delirante naquele momento para assegurar um modo de vida que se julgava sob ameaça e seus privilégios, entre os quais se incluíam o direito a atacar minorias e investir contra a sua integridade física, fazendo uso sistemático das ferramentas digitais para produzir ondas sucessivas de ódio?
“A estratégia do Steve Bannon e da alt-right (direita alternativa) foi de associar o site dele (‘Breitbart News’) às pautas do Gamergate. Ele fisgou as pessoas para o discurso supremacista, mas a ideia não era trazer o gamer para ele achar que está defendendo o discurso supremacista”, explica Ivan Mussa, professor da Universidade Potiguar e doutor em Comunicação pela Uerj.
Em artigo publicado dois anos atrás, Mussa já escrevera que “a cultura gamer, nesse sentido, é tão suscetível à penetração de discursos de extrema-direita quanto qualquer dimensão política, cultural ou social da atuação humana” e que “tal inoculação, no entanto, funciona de maneira implícita, de modo que talvez nem mesmo Cr1TiKaL (famoso youtuber americano e streamer na Twitch) se dê conta de que, com seu discurso inócuo e reativo, esteja preparando o terreno para que parte dos mecanismos ideológicos da alt-right se desenvolvam”.
A guerrilha de Bannon era mais sofisticada, portanto. Grosso modo, consistia em fazer os gamers defenderem e se associarem a uma agenda conservadora sem atraí-los explicitamente nem parecer que os estava manobrando às escâncaras. Mais sutil, o ideólogo explorava a insatisfação identificada no meio com a mudança de perspectiva nos jogos e a entrada de novos atores políticos.
“A conspiração que o Bannon vendeu é que essas jornalistas (que defendiam maior diversidade nos jogos e na indústria) estavam tentando destruir a identidade gamer, queriam colocar casais gays nos jogos e ameaçar essa identidade, tradicionalmente branca e masculina”, continua Mussa em entrevista ao O POVO por videoconferência. “Isso casa perfeitamente com a narrativa supremacista, que acha que o grande ser em extinção da sociedade é o homem branco.”
Considerando-se o estrago e a replicação da hashtag Gamergate de 2014 em diante, com a vitória de Trump dois anos depois e a globalização desse terrorismo digital na esteira de táticas extraídas dos fóruns de channers, o experimento de Bannon foi relativamente exitoso.
“Foi isso que o alçou como estrategista de conteúdo. E uma coisa que nem sempre é lembrada: Bannon trabalhou em Hong Kong em uma empresa de games que vendia moedas virtuais para jogos. Possivelmente ele já tinha percebido esse potencial de adesão e mobilização da comunidade gamer”, aponta o pesquisador.
Assim como Bannon, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) teria igualmente atinado para esse mesmo potencial, e por isso vinha fazendo acenos constantes ao setor, manejando demagogicamente a redução de impostos e mantendo contato com atletas de destaque dos e-sports pelas redes sociais e pessoalmente, tais como FalleN e Gaulês?
Mussa arrisca uma avaliação: “Acho que o que o bolsonarismo tenta fazer é isso: puxar também aqui, no Brasil, por pautas que fazem sentido para eles, como o imposto sobre consoles, mas sempre trazendo junto uma ideia contra a ideologia de gênero, contra o marxismo cultural, todas essas coisas que fazem parte do vocabulário bolsonarista e que combinam com essa revolta do gamer e suposto ataque às identidades”.
“Veja o caso do Gaulês, nosso super streamer”, sublinha Thiago Falcão, professor-adjunto do curso de Mídias Digitais, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do Laboratório de Pesquisa em Midia, Entretenimento e Sociedade (Lens).
O “super”, ao menos nesse caso, não é figura de linguagem: Alexandre Borba Chiqueta, o Gaulês, “é o maior streamer do Twitch e um dos maiores do mundo”, conforme o jornalista Pedro Zambarda, especializado na cobertura de jogos e política. É também uma lenda – ou “mito”, como chamam seus apoiadores nas redes sociais – de “Counter Strike: Global Offensive” ou simplesmente CS: GO.
“Gaulês foi streamer do ano dois anos seguidos, tem mais de 2 milhões de seguidores, tem uma retórica muito sedutora, que é a de chamar seus fãs de ‘família’. Pense comigo: a base de fãs desse cara é extremamente fidelizada, são pessoas que se sentem próximas, são apaixonadas. Se um cara como esse declara voto em Bolsonaro, está declarando o voto dele e de dois milhões”, explica o docente.
Pergunto então ao professor se Gaulês já se mostrou alinhado com as pautas políticas do presidente. “Várias vezes. Não declarou voto, mas tem live falando mal do MST. Recentemente fez live falando mal do jornalismo que cobre a pandemia”, segue Falcão. “Não declara voto, mas os temas estão lá, presentes. É isso que Bolsonaro busca.”
É o que Mussa classifica como “captura ideológica dos videogames”, que, para ele, é circunstancial, mesmo quando se trata de bolsonarismo: os ambientes de disputa e conversa sobre os games “são usados como isca para levar quem a morde a um conjunto de premissas ideológicas completamente desvinculadas do mundo do jogo e da ludicidade”.
“Para que isso aconteça”, prossegue o pesquisador, “o preconceito precisa ser camuflado, de modo que aqueles que o propaguem possam alegar que estão apenas protegendo a ‘identidade gamer’ (ou algum termo equivalente) quando estão, de fato, protegendo o desequilíbrio de poder responsável pela conformação desta e tantas outras normatividades”.
De acordo com Falcão, há algumas razões para que os jogos tenham se convertido em terreno propício à extrema-direita nos EUA e no Brasil. Além da capacidade de mobilização dos jogadores, vista em episódios como o Gamergate e no Pizzagate, há um recorte demográfico e socioeconômico: jogos e máquinas, incluindo-se periféricos, custam muito dinheiro, o que, de partida, exclui de seu consumo uma ampla gama de pessoas, fator que constitui para uma homogeneização da cena gamer – meninos ricos e jovens.
Mas existe outra explicação também. “Ainda acham que videogame é uma bobagem de criança, e esse é um grande problema”, adverte o especialista. “Porque esse problema está na dimensão da cobertura jornalística e do interesse científico pela área. As pessoas não querem estudar videogame porque supõem que é uma bobagem, mas a bobagem está custando caro para este país.”
Soa exagerado? Talvez não diante da magnitude financeira dessa indústria, atrás apenas da do cinema, e de suas repercussões políticas graves – a invasão do Capitólio e outros eventos tiveram apoio massivo de usuários em plataformas de streaming e fóruns, como os atentados da Christchurch, na Nova Zelândia, em março de 2019, que resultaram em 51 mortos pelas mãos do extremista Brenton Tarrant, de 30 anos (durante audiência, ele chegou a fazer um gesto de “white power”, típico dos supremacistas).
“O mundo dos videogames é uma das subculturas mais alinhadas e organizadas com a extrema-direita. O que as pessoas entendem como bobagem é, na verdade, uma bomba-relógio”, projeta Falcão.
No Brasil, estilhaços dessa bomba já começam a pipocar, seja na demissão sumária de mulheres que trabalham na cobertura de games após pressão dos jogadores sobre as empresas, seja na defesa pública de ideias intimamente ligadas ao bolsonarismo.
No próximo episódio, trataremos de alguns casos que fazem acender o alerta amarelo entre nós.
Especial em três episódios mostra a relação videogames e política no governo Bolsonaro