Naquele 29 de julho de 2019, o brasileiro Gabriel “FalleN” Toledo, 29 anos, um dos maiores jogadores de Counter Strike do mundo, anunciava pelas redes sociais: o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) havia lhe telefonado.
Sem esconder a euforia, o paulista escreveu no Twitter: “Acreditem se quiser, hoje o @jairbolsonaro me ligou para mostrar que está avançando no que se refere aos impostos na área gamer em geral”. E acrescentou: “Já pensou se a gente consegue a ajuda do presidente pra trazer o ‘major’ pro Brasil?”.
O próprio jogador cuidara em registrar em vídeo a ligação, na qual o presidente manifestava disposição para reduzir a carga tributária que incide sobre produtos como consoles, PCs e jogos, atendendo uma das principais demandas do segmento.
Mas a escolha de FalleN não era casual, tampouco o aceno à comunidade gamer. Com 1,1 milhão de seguidores na plataforma e fãs espalhados por todos os cantos, o atleta de e-sports já tinha demonstrado simpatia por Bolsonaro noutras ocasiões.
Em 20 de setembro de 2018, por exemplo, ainda durante a campanha eleitoral, FalleN postou: “Brasil acima de tudo! Quartas de final hoje às 14:45 do horário brasileiro”. Comemorava o avanço da equipe num torneio internacional de “CS: Global Offensive”, um jogo da modalidade FPS (do inglês “first-person shooter” ou “tiro em primeira pessoa”), muito popular entre gamers nacionais e cujo objetivo é derrotar o time adversário, seja “terrorista” ou “policial”, num dualismo esquemático típico desse tipo de produto, em que bem e mal estão delimitados.
Na imagem publicada abaixo, FalleN estendia uma bandeira verde-amarela, símbolo pátrio que havia se convertido em repertório visual obrigatório do bolsonarismo no pleito, exibido por apoiadores na disputa contra o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT).
No mês seguinte, em 23 de outubro de 2018, Bolsonaro fez seu primeiro gesto para o meio, negando acusações de que iria proibir videogames caso vencesse as eleições, rumor que se fundava no histórico do postulante, marcado por discurso contra os jogos.
“Desde o início da campanha”, declarou o candidato às vésperas do 2º turno, “meus adversários espalham diariamente que votei contra deficientes, que vou aumentar imposto pra pobre, acabar com Bolsa-Família, escolas e o 13° salário, que iria armar criancinhas e até proibir videogames. A mentira e o desespero não têm limites!”.
Desde o início da campanha meus adversários espalham diariamente que votei contra deficientes, que vou aumentar imposto pra pobre, acabar com bolsa-família, escolas e o 13° salário, que iria armar criancinhas e até proibir video games. A mentira e o desespero não têm limites!
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) October 23, 2018
Cinco dias depois, em 29 de outubro, quando Bolsonaro já se elegera presidente do Brasil, FalleN voltou a tratar de política nas redes:
“Esquerda, direita, Haddad, Bolsonaro, no fim das contas olhe pra si mesmo e com honestidade avalie se você é mais um ‘perpetuante’ do jeitinho brasileiro. Vai esperar o que pra mudar isso? Bora fazer a diferença no que está ao alcance de cada um de nós.... Avante”.
Esquerda, direita, Haddad, Bolsonaro, no fim das contas olhe pra si mesmo e com honestidade avalie se você é mais um perpetuante do jeitinho brasileiro. Vai esperar o que pra mudar isso? Bora fazer a diferença no que está ao alcance de cada um de nós.... avante
— Gabriel Toledo (@FalleNCS) October 29, 2018
O jogador não estava sozinho. Quando tornou público o diálogo com Bolsonaro em julho de 2019, quase um ano depois, outros gamers festejariam a conversa, enchendo o post de memes e outras gracinhas que operavam como termômetro do entusiasmo do grupo com o novo governo.
Um deles foi Alexandre Borba Chiqueta, 37, que comentou: “Grande dia verdadeiro”, seguido de uma mãozinha com o polegar para cima – outro signo do bolsonarismo em voga desde a campanha e bordão disseminado pelo hoje assessor palaciano Filipe G. Martins, um olavista de primeira hora.
Conhecido como “Gaulês”, Borba não é qualquer jogador. É talvez o maior streamer de jogos brasileiro e um dos responsáveis pela febre de e-sports no país, uma lenda do CS: GO, com centenas de milhares de inscritos em seus canais e um público cativo ao qual se refere sempre como “família”, outra palavra cara ao vocabulário do ex-capitão do Exército.
Numa comparação que talvez os millennials tenham dificuldade de entender plenamente: se FalleN era Bebeto, Gaulês era Romário. E, como na seleção tetracampeã do mundo de futebol em 1994, ambos estavam do mesmo lado, tabelando e fazendo gols juntos.
Mas quem era Bolsonaro nesse jogo? E por que havia topado entrar nessa partida cujas regras ele não conhecia tão bem?
Para especialistas, pesquisadores e críticos ouvidos pelo O POVO no último mês, o então deputado federal do baixíssimo clero era o cara que entendeu, muito antes do que qualquer outro político local, que os usuários de videogame tinham um potencial não somente eleitoral, mas sobretudo ideológico. E que poderiam desempenhar um papel determinante na cruzada desses autodeclarados “homens de bem” contra os “chefões do crime” que surgissem pela frente na briga que se anunciava para dali a pouco pelo comando do Planalto. Para eles, era uma disputa de "policiais" contra "terroristas", só que de verdade.
Em seu estudo “Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro”, realizado ainda em 2018, a antropóloga pela Universidade de São Paulo (USP) e professora Isabela Kalil situa os gamers como um dos 16 grupos identificados de apoiadores do futuro presidente.
Ao lado de “periféricos de direita”, “meritocratas” e “líderes religiosos”, estão os “nerds, gamers, hackers e haters”, a cargo de quem, segundo Kalil, estaria o trabalho de “construção de um mito” e cujo retrato aproximado consistia em “homens entre 16 a 34 anos”.
“O perfil desses conservadores”, anota a autora, “concentra-se em fóruns restritos, jogos online e caixas de comentários de sites de cultura pop em que é possível verificar falas tradicionalistas e intolerantes sobre personagens específicos do mundo dos games, quadrinhos e filmes”.
De acordo com o levantamento, “esse grupo foi um dos principais responsáveis por disseminar a imagem de Bolsonaro em sua pré-campanha, o que contribuiu consideravelmente para sua atual popularidade” – três anos atrás.
“A figura em particular construída pelos nerds, gamers e hackers conservadores”, continua Kalil, “compreende a do ‘bolsomito’, lapidada a partir da produção, majoritariamente nas redes sociais, de memes centrados no candidato, geralmente acompanhados por um tom jocoso e provocador”.
Ainda segundo a professora, esse tipo de apoiador ou simpatizante do bolsonarismo atua “geralmente de forma organizada e costuma fazer campanhas de assédio online contra perfis progressistas, feministas, lésbicas e gays”, tais como no famoso escândalo do Gamergate (campanha misógina conduzida nos fóruns sobre games em 2014 nos EUA), “uma tentativa de barrar a participação de mulheres nos games e plataformas online de jogos”.
Escritor, jornalista e autor dos projetos “Drops de Jogos” e “Geração Gamer”, Pedro Zambarda afirma que “é correto dizer que o meio gamer é hoje favorável para Bolsonaro crescer”. Daí as constantes sinalizações ao segmento, principalmente num momento de perda de capital político.
Nesse ambiente, segue o estudioso, “o discurso ideológico do presidente passa despercebido, como coisa natural”, já que se processa num espaço de virtualidade habitado usualmente por jovens de classe social com alto poder aquisitivo e cuja predisposição a um conjunto de ideias conservadoras é reforçada sistematicamente pela narrativa e temática dos próprios jogos – heróis militarizados, cavaleiros e outros personagens movidos pelo desejo seja de vingança, seja de salvar a mulher amada (um tropo comumente chamado de “donzela indefesa”, que se repete em nove a cada dez jogos desde que os videogames chegaram ao mundo, como mostra a ativista e documentarista canadense Anita Sarkeesian em "Tropes vs. Women in Videogames").
“Bolsonaro não importou o Gamergate para o Brasil, mas importou as táticas”, analisa Zambarda, para quem “o chamado ‘gabinete do ódio’, os grupos militantes extremistas e as táticas de ‘shaming’ e de inflar trending topics artificialmente são do Gamergate”.
“É uma tática de difamação muito propiciada pelo mercado de bots”, descreve o especialista na cobertura de games. Trazido ao Brasil, esse decálogo elaborado pela “alt-right” norte-americana na esteira da eleição de Donald Trump se aclimatou rapidamente ao ecossistema político nativo e às redes nacionais, sobre as quais O POVO já publicou uma série de reportagens em julho do ano passado (leia aqui), com foco na participação de um grupo de cearenses que esteve na linha de frente da estratégia digital.
Em outubro de 2020, enquanto governadores e prefeitos tentavam assegurar a compra de vacinas para a população e evitar a escalada da Covid-19 em estados e municípios, o chefe do Executivo federal ia novamente às redes sociais, agora para comunicar algo pelo qual os gamers haviam esperado tanto tempo: corte de impostos.
“Redução de IPI para videogames”, informou o presidente a poucos dias do primeiro turno das eleições municipais. Em seguida, detalhou as proporções nas quedas. “De 40% para 30%: consoles e máquinas de jogos; de 32% para 22%: de partes e acessórios dos consoles e das máquinas de jogos de vídeo cujas imagens são reproduzidas numa tela; de 16% para 6%: máquinas de jogos de vídeo com tela incorporada, portáteis ou não, e suas partes”.
Para fazer troça, anexou à publicação uma imagem sua jogando “Farpoint”, um game de tiro em realidade virtual lançado para PS4 ainda em 2017 e de cuja prática Bolsonaro gostava de se gabar – a mesma captura de tela já havia sido publicada outras vezes e o próprio vídeo, datado de novembro de 2018, também.
- Redução de IPI para vídeogames:
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) October 26, 2020
(a) de 40% para 30%:consoles e máquinas de jogos;
(b) de 32% para 22%: de partes e acessórios dos consoles e das máquinas de jogos de vídeo cujas imagens são reproduzidas numa tela; (mais)... pic.twitter.com/IjmsYNXmK7
Dono de um dos maiores canais de games no Youtube do país, o “Gameplayrj”, Gustavo Sanches, mais conhecido como Davy Jones, gravou um vídeo naquele dia sobre a decisão do presidente de cortar IPI dos eletrônicos.
“Quem me conhece sabe que eu considero impostos algo absurdo e abusivo. Pra mim, imposto é roubo”, sentenciou o youtuber. “E o presidente Bolsonaro, através do Governo Federal, anunciou uma redução nos impostos dos games.”
O “Gameplayrj” possui 8,2 milhões de inscritos na plataforma, outros 725,7 mil no Twitter e mais 338 mil no Instagram. Apenas no YT, o post de Jones, que tinha pouco mais de 10 minutos, alcançou 404.574 visualizações, 71 mil curtidas e 2,3 mil comentários.
Superlativos, os números ajudam a explicar por que Bolsonaro trocou o figurino anti-games para se tornar um “player 1”, empenhado em baratear o custo de consoles e jogos e assim conquistar um público para o qual os atores políticos ainda se voltaram, com uma ou outra exceção experimentada mais na chave cômica, como fez o então candidato à Prefeitura de São Paulo em 2020, Guilherme Boulos (Psol), visto jogando "Among Us".
Professor-adjunto do curso de Mídias Digitais e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Thiago Falcão alerta: “Existe um movimento de aproximação entre a extrema-direita e os videogames” do qual Bolsonaro faz parte e tenta se beneficiar à medida que as eleições de 2022 se aproximam e o presidente radicaliza seu discurso.
“A gente precisa olhar esse movimento em várias dimensões para tentar entender. O grande ponto, para mim, e isso são hipóteses do meu trabalho, diz respeito a perceber os videogames como uma tecnocultura tóxica. Mas o que causa isso efetivamente?”, questiona o pesquisador.
Possíveis respostas a essa pergunta se seguem no Episódio 2 desta reportagem.
Especial em três episódios mostra a relação videogames e política no governo Bolsonaro