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Brechós aliviam peso financeiro de mulheres chefes de família
Reportagem Seriada

Brechós aliviam peso financeiro de mulheres chefes de família

Em seis comunidades marcadas pela violência e pela pobreza, a ONG Ser Ponte apoia mulheres chefes de família para criar brechós comunitários e gerar renda
Episódio 2

Brechós aliviam peso financeiro de mulheres chefes de família

Em seis comunidades marcadas pela violência e pela pobreza, a ONG Ser Ponte apoia mulheres chefes de família para criar brechós comunitários e gerar renda
Episódio 2
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Adriana Monteiro da Silva, 53, nos esperava com um sorriso encostada no portão semi aberto da casa. A rua com piso intertravado, praticamente ao lado do rio Cocó, estava calma e vazia — em parte por cautela. No final de junho, o bairro Barroso testemunhou uma tentativa de chacina na qual um menino de dez anos e uma mulher adulta morreram, e outras nove crianças e adolescentes foram baleadas. Desde então, baixam-se os vidros dos carros para entrar no bairro e a atenção está redobrada.

Mesmo assim, na casa de Adriana reina a tranquilidade, compassada pelo ritmo do sino dos ventos e da aceroleira em frutos. Ultrapassado o portão, damos com um pôster roxo com os dizeres: Brechó Bonita de Vestir. Um manequim arrumado com um vestido azul e, à esquerda, araras recheadas de roupas. Vestidos, blusas, calças e shorts jeans, além de joias e bolsas de crochê variadas.

Adriana Monteiro da Silva é moradora do Barroso e tem um brechó com apoio do Instituto Ser Ponte.(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Adriana Monteiro da Silva é moradora do Barroso e tem um brechó com apoio do Instituto Ser Ponte.

Adriana é uma das 10 mulheres que participam dos brechós comunitários da Ser Ponte (que recebe doações de recursos financeiros pelo link), uma organização não governamental (ONG) que surgiu durante a pandemia de Covid-19 para apoiar mulheres periféricas chefes de família com um pequeno repasse financeiro.

Antes da pandemia, ela trabalhava há 20 anos com decoração de festas. A arte corre nas veias da família, e com criatividade ela desenvolvia estruturas grandes (como mesas de doces) e pequenas (mimos de papelaria e topos de bolos) para enfeitar casamentos e aniversários. Quando tudo fechou em lockdown, a fonte de renda sumiu. “Veio a necessidade da gente ficar trancado em casa, de não criar… Momentos de não ter como comprar alimento, até porque não tinha trabalho”, lembra.

Foram anos difíceis financeiramente e fisicamente: além de ter contraído a Covid-19, Adriana também teve chikungunya e passou meses com os braços inchados e doloridos. Em abril de 2020, quando a Ser Ponte surgiu e Adriana virou uma das mulheres a receber um suporte financeiro de 180 reais, o peso reduziu.

Adriana trabalhava há 20 anos com decoração de festas, até chegar a pandemia.(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Adriana trabalhava há 20 anos com decoração de festas, até chegar a pandemia.

“Era para a Ser Ponte durar quatro meses, ajudando 120 famílias em quatro territórios de Fortaleza”, comenta Valéria Pinheiro, diretora presidente da ONG. Quando a pandemia aliviou, no entanto, a equipe de voluntários percebeu como a assistência financeira garantia um pequeno respiro para as mulheres chefes de família. “Das mulheres que estavam recebendo a renda básica, 72% vivem com até 500 reais por mês. Chegar 180 reais faz muita diferença”, diz.

Em 2023, o valor da renda básica aumentou para 200 reais, principalmente por causa da alta no valor dos alimentos. Dessa quantia, a ONG coleciona relatos de mulheres que conseguiram se separar dos maridos por finalmente terem algum tipo de independência financeira; de mulheres que conquistaram mais autonomia por ser um dinheiro regular; e até de dívidas pagas, já que elas finalmente podiam organizar o orçamento familiar com a certeza de que os 180 reais chegariam.

Mas repassar o dinheiro não era suficiente. As mulheres precisavam de oportunidades para gerar renda. Foi assim que surgiu a ideia dos brechós comunitários, projeto no qual as mulheres fazem oficinas de gestão de negócios, de redes sociais, precificação e estratégias de venda, além de receberem mensalmente a doação de 40 peças de roupa para integrar o inventário para venda.

“Quando eu entrei no brechó, quando eu conheci o Ser Ponte, aí mudou tudo”, concorda Adriana. Das 10 mulheres participantes, ela é a que tem tido melhores resultados. Transformou o jardim da casa na loja, investindo aos poucos na compra de telhas de plástico e madeiras para construir um telhado e depois na montagem, com canos de PVC, das araras.

 

 

Comunidades atendidas pela Ser Ponte

Atualmente, a Ser Ponte atende 60 mulheres, dez em cada um dos seis territórios beneficiados (mapa abaixo). A ONG já chegou a atender 250 famílias em 23 territórios, mas a queda nas doações forçou a redução no número de beneficiados. O processo de decisão se deu em conjunto com as comunidades que poderiam perder o suporte: “É horrível (decidir quem deixaria de ser apoiada). É o mesmo que cortar a própria carne”, lamenta a diretora.

 

Adriana calcula cerca de 200 peças à venda no brechó, além dos brincos, colares e pulseiras que ela produz. As roupas vieram das doações da Ser Ponte, que mensalmente envia 40 peças para os brechós comunitários — uma missão cada vez mais difícil, pela queda no fluxo de doações.

O principal diferencial do Brechó Bonita de Vestir é, na verdade, o aluguel de roupas de festa. Bem no começo do projeto, ela recebeu peças muito bem preservadas. Com a ajuda da filha, elas identificaram que as roupas eram de grife e poderiam render muito mais se fossem alugadas.

O modelo tem funcionado bem e as regras são claras: os vestidos devem ser devolvidos em perfeito estado. “Aqui, se cair uma pedrinha dessa, a gente não tem como colocar de novo. Não tem realmente como fazer o reparo, se você vê isso é uma renda importada. A gente não vai encontrar ela aqui e para substituir tem que mexer na peça toda. Imagina, aí danifica e não vai ficar igual o original”, explica a empreendedora.

 

 

“A gente aluga para 15 anos, casamento… Essas coisinhas mais importantes, os momentos melhores de nossas vidas, né?”, indica. Ao lado dos vestidos, as araras são organizadas por tipo de roupa: calças jeans, blusas, roupas de academia, shorts, roupas de banho. Com dedicação, o brechó já tem 17 clientes fixas, que todo mês visitam a loja para fuçar as novidades. “Meu sonho é que todas conseguissem trilhar o caminho da Adriana”, diz Valéria. “Ela voou.”

“O brechó é um respiro para elas, e é muito adequado para a situação delas”, pondera a diretora. “Não dá só para empregar (essas mulheres), porque elas não têm dinheiro para pegar o ônibus. Como vai para o trabalho? Elas têm cinco a seis filhos para cuidar, quem vai ficar com eles? É uma realidade muito desconhecida por Fortaleza.


Valéria Pinheiro

"A gente não tem possibilidade de combater a pobreza. A gente toca na miséria. Trabalhamos na questão da dignidade, do acesso aos direitos humanos." - Valéria Pinheiro, diretora-presidente da Ser Ponte

 

Com suas “lojinhas”, como muitas chamam carinhosamente, elas podem definir horários de trabalho flexíveis, além de instalar os brechós nas casas ou calçadas, identificadas por um banner com o nome da loja e o pix. “É pouco, mas olhando para a fatia das mulheres que estamos trabalhando, faz a diferença.”

 

IDH de Fortaleza por bairro

Clique nos bairros para acessar informações sobre o índice de desenvolvimento humano (IDH)

 

Infelizmente, o cenário de insegurança pública é um dos principais desafios enfrentados pelas mulheres dos brechós comunitários. Os conflitos territoriais impedem-nas de impulsionar os negócios, seja porque são expulsas das casas, porque têm dificuldade de locomoção entre os bairros ou porque realmente não podem sair de casa em razão da violência.

Todos os bairros atendidos pela Ser Ponte têm índice de desenvolvimento humano (IDH) muito baixo e são marcados por conflitos armados. Desde que começou as oficinas oferecidas pela ONG, Adriana tem aproveitado para repassar o conhecimento às mulheres do Barroso dentro da Biblioteca Viva, onde é mediadora de leitura.

Ela está ministrando uma oficina de brincos e planeja fazer um desfile para as mulheres apresentarem as peças confeccionadas — o evento, no entanto, precisou ser adiado após a tentativa de chacina na areninha do Barroso. “A gente evita (sair de casa, ir à biblioteca) quando não tá seguro. Se eu suspeitar de algo, eu não vou arriscar minha vida e nem das demais pessoas que estejam aqui, porque eu acho que é o certo a se fazer”, comenta Adriana.

De qualquer maneira, as alunas já “pegaram” a manha e têm confeccionado brincos enquanto a oficina está suspensa. “Acho que uma já fez uns quatro pares. Eu disse para ela: ‘Vocês vão fazendo cores diversas, aos poucos, e a gente vai fazer o desfile, vocês vão mostrar as peças!”, orgulha-se.

 

 

Com um sorriso, ela avisou que guardaria o nosso contato para chamar a imprensa quando o evento finalmente ocorresse. Concordamos, empolgadas com a ideia. “Quero mostrar para vocês também a minha biblioteca”, convidou, depois de nos mostrar a transformação que ela organizou no local, criando um espaço infantil (imagem acima) para as crianças que acompanham as mães participantes dos cursos.

 

 

Saúde mental também faz parte do desenvolvimento

Além da renda solidária e dos brechós comunitários — a ONG também deseja trabalhar com agroecologia no futuro —, a Ser Ponte tem uma ação de apoio psicológico para lideranças comunitárias. “Eu vi muita gente quebrando psicologicamente (durante a pandemia)”, lamenta Valéria.

O Coletivo de Psicólogos da Ser Ponte garante o atendimento individualizado de líderes sociais que carregam o peso de lutar por suas comunidades em meio à desassistência. “Imagina você está 24 horas vendo a sua comunidade morrendo, sem vacina, o governo daquele que a gente tinha… E eu comecei a ver as lideranças comunitárias não aguentando mais. E eu pensando: ‘Gente, a dona Fulana não pode cair. Se ela cair, a comunidade se esfacela’”, explica a diretora.

Assim como outras ONGs, a Ser Ponte depende da colaboração das lideranças de cada comunidade para rastrear e contatar mulheres chefes de família que precisam do suporte financeiro ou que encaixam-se nos requisitos para participar integrar os brechós comunitários.

Pensando em como estender o acolhimento às mulheres beneficiadas, a Ser Ponte organizou uma roda de conversa em outubro de 2023. O objetivo era ouvi-las com a mediação de uma psicóloga: “Fazer terapia é bagunçar a cabeça da gente, né? Então a gente pensou muito se chegar para conversar com essas mulheres não seria expor (traumas, dores) e depois sair de lá com uma tarde mais desestabilizadora do que algo que ajudasse.”

Ser Ponte se reuniu na comunidade São Miguel para uma roda de conversa com algumas das mulheres beneficiadas. (Foto: Reprodução / Instagram Ser Ponte)
Foto: Reprodução / Instagram Ser Ponte Ser Ponte se reuniu na comunidade São Miguel para uma roda de conversa com algumas das mulheres beneficiadas.

Depois de conversar muito entre voluntárias, psicólogas e as próprias mulheres, ficou decidido que a roda aconteceria. Foi na comunidade São Miguel, no bairro Curió, e o resultado foi o melhor possível. As mulheres puderam falar e ser ouvidas — algumas, pela primeira vez.

Compartilharam histórias doloridas, foram acolhidas e abraçaram outras. Terminaram a tarde com o desejo de mais rodas. “Nós reafirmamos que não existe saúde mental quando há insegurança alimentar, quando a casa não garante proteção, quando o racismo é estrutural e o estado também violenta suas rotinas”, declara a Ser Ponte em publicação sobre a experiência.

 

 

O futuro por meio da arte e do empreendedorismo

Sentadas enquanto conversamos, a casa de Adriana é preenchida pelo sino dos ventos e das folhas da aceroleira dançando. À minha frente, uma tela larga exibe a cena de um dia de praia. Ao fundo, o céu azul claro continua na água escura, de ondas espumosas; a areia é branquinha e uma palmeira de folhas fartas inclina-se pela força do vento.

Bem no canto da tela, pequena ao lado da árvore, a silhueta de um casal beijando-se figura entre as pedras. Um pouco ao longe, o buggy que os turistas usaram para aventurar-se pelas prováveis dunas. A obra é do irmão de Adriana, Fábio Monteiro da Silva, 45. Ele está privado de liberdade e aprendeu, com as oficinas oferecidas na unidade prisional, a pintar quadros e a fazer crochê.

 

 

Inspirado pelo ofício e também pela dedicação de Adriana na loja, Fábio começou a produzir quadros e crochês para serem vendidos no brechó há poucos meses. “Caramba, então ele aprende rápido”, mencionei, calculando a quantidade de bonecos, bolsas e biquínis à venda. Adriana riu: “Porque ele é igual eu.”

“Ele tem um carinho imenso por essas peças”, orgulha-se Adriana. “Essas são as mais queridas, as mais lindas. Eu trouxe essas aqui ontem”, ela aponta para um cabide com dezenas de bolsas. Os modelos, cores e acessórios são variados, cada uma mais bonita que a anterior. “Ele leva uns três dias mais ou menos para fazer cada uma.”

Próximo de entrar no regime semiaberto, Fábio poderá voltar para casa com um negócio, uma conta no Instagram para impulsioná-lo e apoio da família para seguir em frente.

 

 

Ponto de vista

A janela da oportunidade: que desenvolvimento é esse?

por Catalina Leite*

As histórias do Beco Céu, no bairro Vila Velha, e das mulheres apoiadas pela Ser Ponte colocam em perspectiva tudo o que nós pensamos sobre desenvolvimento e economia. Convenhamos, quando se fala em melhorar a economia e levar desenvolvimento para as comunidades, logo imaginamos bairros recheados de lojas e muito dinheiro acumulado. Mas esse é um passo distante.

No Beco Céu, o desenvolvimento é refletido em arte(Foto: Catalina Leite)
Foto: Catalina Leite No Beco Céu, o desenvolvimento é refletido em arte

A verdade é que o desenvolvimento para as favelas parte da dignidade humana. Começa na garantia de casas resistentes aos dias de chuva; na requalificação das ruas, substituindo lama e buracos por pisos que absorvem a água; na pintura dos muros e embelezamento das paredes; na iluminação pública que garante segurança à noite. Começa, basicamente, no entendimento de que o dia será mais bonito e que as pessoas merecem acordar e admirar a vista.

Feito isso, é preciso reconhecer que as pessoas são humanas. Que a vida é mais do que trabalhar e pagar conta. É ter acesso ao lazer, à música, à arte em geral. É ter um espaço bacana para brincar, jogar bola, andar de bicicleta. Um local onde a vida comunitária é estimulada e é possível — é o que o Instituto Pensando Bem ensina.

Aí, sim, entra a renda. Milhares de reais? Quem dera, mas nem sempre. Para quem vive na miséria, uma centena já faz uma baita diferença. Antes de acumular, as pessoas precisam pagar dívidas e comprar a merenda das crianças.

Mais do que isso, elas precisam de oportunidades de geração de renda que sejam flexíveis e cabíveis dentro do universo delas. É o que as mulheres da Ser Ponte ensinam: um emprego formal nem sempre é a solução. Quem cuida das crianças que ficam em casa? Quem paga a passagem do ônibus? Que emprego releva as faltas em dias em que sair de casa é um risco para a vida? Em que atravessar a rua é um ultimato?

Nem sempre o desenvolvimento tem essa cara macro, de pessoas enriquecidas e donas de mil negócios. Às vezes, é uma tinta no muro, um rio drenado, um curso de informática, uma lojinha em casa e a oportunidade de viver a vida com o mínimo de dignidade. Estimulemos isso enquanto exijimos dos governos políticas públicas que possibilitam o ideal de desenvolvimento socioeconômico. Até lá, arte, renda e vida, por favor!

"Catalina Leite é repórter do O POVO+"

Expediente

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Texto Catalina Leite
  • Fotografias Fernanda Barros
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Identidade visual Camila Pontes
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