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Há 200 anos, Nordeste lutou para ser um país independente: a Confederação do Equador
Reportagem Seriada

Há 200 anos, Nordeste lutou para ser um país independente: a Confederação do Equador

Os revolucionários sonhavam com uma República Federalista em que cada província tinha a chance de tomar suas decisões longe da figura nada querida de Dom Pedro I
Episódio 1

Há 200 anos, Nordeste lutou para ser um país independente: a Confederação do Equador

Os revolucionários sonhavam com uma República Federalista em que cada província tinha a chance de tomar suas decisões longe da figura nada querida de Dom Pedro I
Episódio 1
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Quem anda por Fortaleza muitas vezes passa alheia aos nomes das ruas que compõem a história do Ceará, do Nordeste e do Brasil. No coração da Aldeota, passa a rua Pereira Filgueiras. No Centro, a avenida Tristão Gonçalves vai do Cemitério São João Batista até outros bairros. A rua Pessoa Anta abriga monumentos culturais como o Centro Dragão do Mar e a Caixa Cultural. Os nomes não são aleatórios.

Atualmente mencionados em endereços, eles foram figuras destacadas na Confederação do Equador, movimento revolucionário que começou em Pernambuco e se estendeu para Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, com a intenção de formar uma república no que hoje é o Nordeste.

Antes de avançar para 2 de julho de 1824, quando a revolução começou a tomar contornos e Manoel de Carvalho Paes de Andrade, presidente da província de Pernambuco, conclamar todos os brasileiros a aderirem ao movimento, é preciso voltar alguns anos no tempo.

 

 

Tempo de revoluções

O fim do século XVIII e o começo do XIX foi marcado por diversas revoluções e movimentos pelas Américas. Exemplos foram o processo de independência nos Estados Unidos em 1776, no Haiti em 1804 e na Argentina em 1816. Todos tinham, entre os diversos componentes históricos individuais, o desejo de expulsar as forças colonizadoras do território.

Enquanto o resto da América pensava em independência, o Brasil fez o caminho inverso quando, em 1808, a família real portuguesa chegou a terras tupiniquins fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte. O Rio de Janeiro se tornou a capital do império colonial português, com a transferência de instituições para o Brasil.

 

 

Revolução pernambucana de 1817 e a república do Crato

Até então, o que hoje se chama de Nordeste era protagonista da economia da colônia: a produção e exportação de açúcar e do algodão, além da pecuária, era a menina dos olhos da Coroa. A chegada da Coroa inverteu os papéis e mudou as regras do jogo. Cresceu, especialmente nas famílias tradicionais, um sentimento de insatisfação.

"A região Norte era a mais rica e a mais próspera e, no século XIX, houve uma predileção pelas províncias do Sul, até porque a Corte já estava instalada lá. Há uma questão econômica devido a não mais potencialização do açúcar, à cobrança de impostos para as províncias do Norte para manutenção da Corte de Rio de Janeiro”, analisa Weber Porfirio, membro do Grupo Sociedade de Estudos do Brasil Oitocentista da Universidade Federal do Ceará (Sebo/UFC).

Em 1817, Pernambuco proclamou independência de Portugal. Os revolucionários queriam uma conjuntura política completamente nova longe do domínio da Coroa com a proposta de um projeto constitucional e com ares federalistas. Com a participação de padres, militares, comerciantes, proprietários de terras e a elite política, o movimento clamava o desejo de ter autonomia nas províncias.

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"Eu gosto de chamar de revolução porque foi uma tentativa realmente de fazer uma revolução republicana, eles chegaram a tomar o poder por 74 dias, queria uma Constituição, condenavam moralmente a escravidão, o que época é um grande avanço", explica o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Marcus Carvalho.

Ele destaca a proximidade ideológica e até familiar entre Pernambuco e o Ceará. Até 1799, o Ceará era capitania subordinada. As famílias que os colonizaram têm grande proximidade, alguns primos de primeiro grau. "Tanto que o Ceará demora muito a aderir ao Rio de Janeiro, não tinha nenhuma vantagem", avalia.

O reflexo é nítido. Enquanto a revolução pernambucana acontecia, no Ceará os ventos de revolução também sopravam. Na Igreja Matriz da vila do Crato, um padre não falava de Deus e sim da República. Ele lia um documento escrito por José Luiz de Mendonça, membro do Governo Provisório de Pernambuco, no qual eram narrados os acontecimentos em Pernambuco.

O padre era José Martiniano de Alencar, parte de uma influente família do interior do Estado, os Alencar. Ele e outros que falavam em revolução na época foram presos. O jovem padre e a mãe passaram quatro anos presos na Bahia, pela adesão ao movimento revolucionário. O líder da resposta da Coroa: o militar José Pereira Filgueiras.

Outra revolução também aconteceu em 1820, a do Porto, que pedia o retorno da família real para Portugal. Também represada, ela modificou aumentou a autonomia local do Brasil capitanias viraram províncias e que poderiam ser governadas por Juntas de Governo, escolhidas pela população, que responderiam diretamente a Lisboa.

"Revolução do Porto anistia todos os presos políticos e tinha preso político no Brasil inteiro. Esse pessoal todinho volta para Pernambuco", destaca o professor Carvalho. Figuras de 1817 ganham liberdade e voltam a aparecer em 1824, como Frei Caneca, Padré Mororó e os irmãos Alencar, Tristão e José Martiniano. 

 

 

Por que o Nordeste se rebelou há 200 anos

A independência do Brasil começou a partir de São Paulo, no grito do Ipiranga dado por dom Pedro, e nos movimentos no Rio de Janeiro conduzidos por Leopoldina. A adesão do Norte foi conflituosa. Os portugueses tentaram preservar ao menos uma parte do império colonial nas Américas. Houve combates em lugares como então Grão-Pará, no Maranhão, na Bahia e no Piauí. Neste último houve intensa participação cearense no mais sangrento de todos esses combates, a Batalha do Jenipapo. Estavam envolvidas várias personagens que estavam na revolução de 1817 e estariam na Confederação do Equador, como Tristão Gonçalves, Pessoa Anta e Pereira Filgueiras.

Porém, no processo que se seguiu, a insatisfação que vinha de longa data em relação a Portugal se manteve com o império ainda sob governo dos Bragança. E tornou-se insustentável quando o imperador dom Pedro I decidiu dissolver a Assembleia Constituinte em 12 de novembro de 1823. A data ficou conhecida como “a noite da agonia”.

“Dom Pedro não gosta do resultado porque claramente o documento a princípio é que o entendimento reduzia sua influência até mesmo seu poder político e ele manda dissolver a constituinte e não aceita o projeto de Constituição. Esse episódio chega às províncias do Norte, sobretudo no Ceará, Piauí, Pernambuco, como um forte impacto negativo”, ressaltou Porfirio. 

Grito Ipiranga, de Pedro Américo, obra do acervo do Museu do Ipiranga é a representação mais icônica do momento da independência do Brasil (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil Grito Ipiranga, de Pedro Américo, obra do acervo do Museu do Ipiranga é a representação mais icônica do momento da independência do Brasil

Na época, as províncias tinham eleito deputados para representá-las na elaboração da Carta constitucional. A assembleia conseguiu reunir 84 de seus 100 deputados, de 14 províncias. Estava representada a elite política e intelectual da época, composta de magistrados, membros do clero, fazendeiros, senhores de engenho, altos funcionários, militares e professores. As províncias do Pará, Maranhão, Piauí e Cisplatina (hoje Uruguai) não se fizeram representar por estarem envolvidas nas guerras de independência.

"Os republicanos diziam: qual o pais mais rico das Américas? Os Estados Unidos da América. O que fazem eles serem unidos é serem estados independentes. O México, que nasceu república, nunca se separou", ressaltou o professor da UFPE, Marcus Carvalho.

Ele destaca também que há uma simbologia na escolha da bandeira do Brasil Imperial, já que há um ramo de café e outro de fumo, enquanto no Nordeste a economia era movida pelo açucar e o algodão. Até 1832, dez anos após a independência, o açucar ainda valia mais financeiramente que o café. 

Assembleia Constituinte de 1823 que foi dissolvida pelo imperador (Foto: Ilustração/Notices of Brazil in 1828 and 1829 / Via Agência Câmara de Notícias)
Foto: Ilustração/Notices of Brazil in 1828 and 1829 / Via Agência Câmara de Notícias Assembleia Constituinte de 1823 que foi dissolvida pelo imperador

A dissolução da constituinte também resultou no exílio de muitos dos deputados. À manifestação de absolutismo se seguiu a outorga de uma carta constitucional que impunha juramento de obediência. As províncias viram a movimentação como uma afronta por, além de não verem suas demandas escutadas, viram ainda um texto que não concordaram e consideraram como não representativa ser aprovada.

A Constituição imposta deixava clara a preocupação com o que hoje é a região sudeste brasileira, especialmente o Rio de Janeiro, em detrimento das demais regiões do Brasil, além de ter no "Poder Moderador" um elemento que dava poderes quase que ilimitados ao imperador. A “permissão” colocou dom Pedro no posto de "déspota" na visão da ala política das províncias do Norte, como lembra Porfírio.

Causou revolta ainda a nomeação de governadores, ação que passou pelo crivo do imperador. Segundo o membro do Sebo/UFC, os boatos de que portugueses iriam voltar a invadir a região, e reação do imperador de recolher tropas, também levaram a situação a um ponto de ruptura. 

 

 

O Ceará se rebela

Em 9 de janeiro de 1824, os membros da Câmara de Campo Maior de Quixeramobim pronunciaram-se contra as decisões do imperador e declararam que, a partir daquele momento, eram uma república e não respondiam aos mandos da corte no Rio de Janeiro.

A situação se agravou quando, em 25 de março de 1824, foi outorgada uma Constituição que não contou com a participação de nenhum deputado. Para piorar, em 14 de abril chega o primeiro presidente da província enviado por dom Pedro I, em substituição ao governo provisório liberal. Trata-se de outro nome de rua importante: Pedro José da Costa Barros, escolhido a dedo para representar os interesses imperiais. O mesmo foi feito em outras províncias.

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Em janeiro, haviam retornado ao Ceará Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras, após combaterem no Piauí e no Maranhão contra os adeptos de Portugal e em favor da independência, na defesa do trono de dom Pedro. Tomaram então conhecimento da dissolução da Constituição.

Filgueiras e os membros do extinto governo provisório se dirigiram para Arronches, atual Parangaba, onde organizam a resistência. Tentativas de acordo não duraram e, em 25 de abril, as tropas marcharam sobre Fortaleza. Em 28 de abril de 1824, sob protesto contra o golpe que sofria, Costa Barros renunciou e foi deportado para o Rio de Janeiro. Em assembleia com presença dos membros da Câmara e das pessoas mais ricas de Fortaleza, Tristão Gonçalves, foi eleito presidente da província.

 


Escalada em Pernambuco

A agitação no Recife era ainda maior. Polo econômico e político das províncias ao norte da Bahia, era o principal foco de rebeldia contra a corte no Rio de Janeiro, com ecos de 1817 muito vivos. Manoel de Carvalho Paes de Andrade, participante do movimento anterior, teve apoio local para ser presidente da província de Pernambuco, frente ao escolhido de dom Pedro, Francisco Paes Barreto.

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A nomeação imperial não foi aceita pelos líderes políticos pernambucanos, que enviaram representação ao Rio de Janeiro para manifestar a oposição e tentar reverter a posição do monarca. A cidade sofreu bloqueios navais, suspensos em 1º de julho diante do temor de ataque português ao Rio de Janeiro, o que demandou o regresso de todas as embarcações. Livre da pressão naval, em 2 de julho de 1824, Paes Barreto proclamou o manifesto, redigido por Frei Caneca, da Confederação do Equador.

“Não é preciso, brasileiros, neste momento fazer a enumeração dos nefandos procedimentos do imperador, nem das desgraças que acarretamos sobre nossas cabeças por havermos escolhido, enganados, ou preocupados, tal sistema de governo e tal chefe do poder executivo! Vós todos, e todo o mundo que os têm observado, os conhecem e enumeram; porém, conquanto estivessem prevenidos na expectativa de males, nunca a ninguém podia passar pela idéia, talvez como possibilidade que, o imperador havia trair-nos, e abandonar-nos ao capricho de nossos sangrentos e implacáveis inimigos lusitanos, no momento em que teve notícia de estar fazendo-se à vela a expedição invasora! E é crivei que não fosse preparada de acordo com ele? É possível, mas não provável.

“Segui, ó brasileiros, o exemplo dos bravos habitantes da zona tórrida, vossos irmãos, vossos amigos, vossos compatriotas; imitai os valentes de seis províncias do norte que vão estabelecer seu governo debaixo do melhor de todos os sistemas - representativo -; um centro em lugar escolhido pelos votos dos nossos representantes dará vitalidade e movimento a todo nosso grande corpo social. Cada Estado terá eu respectivo centro, e cada um destes centros, formando um anel da grande cadeia, nos tomará invencíveis.”

 

 

O que seria a República do Equador

O projeto era criar uma república confederada, sustentada com um pacto ligando as províncias umas às outras, mas com estruturas políticas formadas por estruturas livres e soberanas. Haveria independência nas decisões, apesar de também deixarem claro que seria realizada uma Assembleia Constituinte e Legislativa para decidir sobre diversos temas, entre eles, o tráfico de escravos.

Um dia após a proclamação da chamada República do Equador, nome que seria usado oficialmente para definir a unidade, Paes Andrade emitiu decreto suspendendo o tráfico escravo. Historicamente, o mesmo só aconteceu no Brasil apenas em 1850, quando passou a vigorar a Lei Eusébio de Queirós, enquanto a abolição da escravatura que aconteceu só em 1888.

Primeira página do jornal paraense que comemora o primeiro centenário da Confederação do Equador (Foto: Biblioteca Nacional )
Foto: Biblioteca Nacional Primeira página do jornal paraense que comemora o primeiro centenário da Confederação do Equador

“Convindo não somente aos interesses da humanidade, porém ainda mesmo aos desta província, que se extinga de todo um comércio que está em completa oposição com os princípios do direito natural e as luzes do presente século, tenho resolvido que fica suspenso o tráfico de escravos para este porto, até que a soberana Assembleia Constituinte e legislativa resolva este negócio afinal. As autoridades a quem o conhecimento deste competir assim o tenham entendido e façam cumprir", diz uns dos documentos do livro O Ceará na Independência do Brasil. Esse e os livros mencionados estão disponíveis na biblioteca do Instituto do Ceará. 

Banhados pelo nacionalismo, marcam oposição ao imperador, português de nascimento, muitos dos revolucionários passam a usar sobrenomes indígenas, como visto no nomes: Mororó, Carapinima, Anta, Ibiapina e Araripe. Nos banquetes substituem o vinho do porto pela cachaça e portavam distintivos em forma de barata de prata, em homenagem ao jornalista Cipriano Barata, rebelde liberal famoso de Pernambuco.

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Confederação do Equador 200 anos

Um pedaço do Nordeste revoltou-se contra dom Pedro I e realizou movimento para criar uma república independente. O Ceará teve participação destacada