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5 anos de Covid-19: o legado da ciência
Reportagem Seriada

5 anos de Covid-19: o legado da ciência

Para pesquisadores e acadêmicos, o compartilhamento de conhecimento científico foi essencial para que avanços e descobertas fossem realizadas. Mas ciência poderia ter evoluído ainda mais
Episódio 1

5 anos de Covid-19: o legado da ciência

Para pesquisadores e acadêmicos, o compartilhamento de conhecimento científico foi essencial para que avanços e descobertas fossem realizadas. Mas ciência poderia ter evoluído ainda mais
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O que você pensou quando viu a primeira notícia sobre o chamado, à época, novo coronavírus? E agora, o que você lembra da pandemia? Seja um trauma ou uma memória distante, ela atingiu a todos. O Sars-CoV-2 infectou e foi se espalhando pelo mundo como ele age no nosso corpo. De forma fulminante e inesperada. Nesse cenário, a pesquisa científica ficou sob os holofotes e provou seu valor. Além do vírus, enfrentou a desinformação.

Foram quase 13 milhões de vidas perdidas no mundo entre 2020 e 2021, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS). A tragédia seria ainda maior se não fosse o esforço dos profissionais e pesquisadores da saúde. A ciência salvou milhares de vidas e vai continuar a salvar tantas outras. Ela evoluiu e os esforços realizados no contexto de pandemia perduram.

Enquanto as ruas se esvaziavam e os hospitais ficavam abarrotados, cientistas buscavam respostas e soluções. Na luta contra o vírus, a tecnologia de vacinas deu um salto e a vigilância genômica se fortaleceu. O Elmo saiu da academia como alternativa de respiração assistida menos invasiva para pacientes na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Número de artigos e pesquisas deu um salto durante a pandemia  (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Número de artigos e pesquisas deu um salto durante a pandemia

Com a urgência do cenário de emergência em nível global, o compartilhamento de dados foi mais intenso, bem como o investimento nessas tecnologias.

Sandra Monteiro, secretária da Ciência, Tecnologia e Educação Superior (Secitece) do Ceará, cita que houve um aumento significativo nas publicações científicas durante a pandemia relacionadas à crise de saúde, com um rápido compartilhamento de informações para acelerar as investigações.

Foi observada uma intensa integração entre governo, academia e setor empresarial para o desenvolvimento de produtos e soluções para a sociedade.

Na perspectiva de Fábio Miyajima, chefe da Rede de Vigilância Genômica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor/pesquisador voluntário da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), a pandemia demonstrou a importância da colaboração entre cientistas, universidades e governo para o desenvolvimento de soluções tecnológicas e vacinas em tempo recorde.

Por outro lado, segundo o pesquisador, a pandemia expôs a necessidade de autossuficiência na produção de insumos e medicamentos no Brasil. “Seja para fazer os testes diagnósticos, para produzir medicamentos, para produzir EPI (equipamentos de proteção individual), para ter um plano de contingência em que a gente não dependa de importação para situações de emergência como a pandemia”, frisa.

Sobre o legado, ele calcula:

"A gente pode dizer que tem um avanço em relação ao que a gente tinha antes da pandemia, mas não é o ideal dentro do que a gente sabe que poderia ter caminhado" Fábio Miyajima, da Fiocruz Ceará

Fábio ressalta que, apesar dos avanços, ainda há um longo caminho a percorrer para alcançar um cenário ideal em termos de preparação e resposta a futuras emergências sanitárias. Há ainda a necessidade de investir em ciência, tecnologia e capacitação de profissionais, além de promover a autossuficiência na produção de insumos e medicamentos no Brasil. 

 

 

As vacinas e a tecnologia de RNA mensageiro

Embora o RNA mensageiro seja pesquisado há décadas, os primeiros imunizantes com a tecnologia inovadora a serem aprovados e aplicados em larga escala foram no contexto combate à Covid-19.

Raquel Stucchi, médica infectologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destaca a vacina de RNA mensageiro como o principal ganho tecnológico do período de emergência em relação à Covid-19, tanto pelo impacto no controle da pandemia quanto pelo potencial para utilização em outras doenças.

A vacina da Pfizer contra a Covid-19 é uma vacina de mRNA desenvolvida em parceria com a BioNTech(Foto: Myke Sena)
Foto: Myke Sena A vacina da Pfizer contra a Covid-19 é uma vacina de mRNA desenvolvida em parceria com a BioNTech

As vacinas de RNA mensageiro são baseadas em sequências do vírus que induzem o sistema imune a produzir uma resposta mais direcionada contra o patógeno. Para isso, se identifica a parte responsável pela formação de anticorpos que conferem proteção ao entrar em contato com o vírus. Esses genes são isolados e utilizados para criar o RNA mensageiro.

O RNA mensageiro é incorporado em uma molécula de gordura. Ao entrar no organismo, esse RNA mensageiro passa a produzir a parte do vírus que induz o organismo a fabricar anticorpos. Houve várias modalidades e variações da vacina de RNA, por exemplo, produzidas pela Moderna e pela Pfizer.

“O principal avanço tecnológico real e que acho que todos puderam perceber, com um impacto importante no controle da pandemia, foram as vacinas”, avalia. Ela inclui as vacinas de vírus inativado e de vetor viral, que foram extremamente importantes no início da vacinação porque conseguiram garantir a proteção da população prioritária e que tinha maior risco de morrer.

Estado recomendou o uso de máscaras em estabelecimentos de ensino a partir desta segunda-feira, 13(Foto: Getty Images)
Foto: Getty Images Estado recomendou o uso de máscaras em estabelecimentos de ensino a partir desta segunda-feira, 13

Ela destaca também os antivirais. Atualmente, temos dois antivirais importantes para impedir que os pacientes de risco tenham formas mais graves de Covid-19 e que pacientes em estado mais grave possam ter uma chance maior de recuperação: o Paxlovid e o Remdesivir. A pesquisadora também cita o desenvolvimento de anticorpos monoclonais, embora com limitações devido às variantes do vírus.

Flávio Guimarães da Fonseca, pesquisador do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, concorda que a rapidez no desenvolvimento de vacinas, especialmente as de RNA mensageiro, foi o legado crucial.

“A pandemia de Covid-19 trouxe a oportunidade de testar novos protocolos vacinais. As vacinas de RNA mensageiro talvez levassem muito mais tempo para chegar eh à população”, afirma. Ele acredita que a pandemia acelerou o processo de desenvolvimento e testagem de vacinas, mostrando que é possível criar vacinas em tempos menores, mantendo a segurança e eficácia.

 

 

Vigilância genômica foi impulsionada

Fábio Miyajima, da Fiocruz Ceará, afirma que houve um progresso significativo na capacidade de vigilância, identificação e caracterização de vírus e bactérias, permitindo uma resposta mais rápida e eficiente a novas epidemias. Segundo ele, as lições aprendidas com a pandemia de SARS-CoV-2 foram aplicadas no monitoramento de arbovírus, como dengue e chikungunya, e outros vírus respiratórios.

Ele cita também que a pandemia impulsionou a capacitação de milhares de profissionais de saúde em exames moleculares e diagnósticos mais precisos, o que representa um legado importante para o sistema de saúde.

Teste do Plano Nacional de Testagem para a Covid-19, na Feira dos Importados, em Brasília(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Teste do Plano Nacional de Testagem para a Covid-19, na Feira dos Importados, em Brasília

Para Flávio Guimarães da Fonseca, pesquisador da UFMG, o processo de vigilância genômica se tornou mais atento e rápido na detecção de novas doenças, vírus, bactérias ou fungos. “Os órgãos de saúde estão mais atentos a alterações e novos patógenos, novas doenças e monitoram mais de perto”, explica.

A pesquisadora Raquel Stucchi, da Unicamp, frisa que a importância das unidades sentinelas, centros de vigilância para diagnóstico precoce de microrganismos com alta capacidade de transmissão e de adoecimento da população e, potencialmente, causar uma nova pandemia.

A identificação do vírus, segundo ela, só foi possível graças ao desenvolvimento dessas novas plataformas porque houve um grande investimento no mundo todo na ciência e muitos profissionais do mundo todo trabalhando em conjunto para tentar vencer a doença.

 

 

Saúde estreita laços com TI e ciência de dados

No contexto pandêmico, a saúde estreitou conexões com a ciência de dados e a tecnologia da informação. Sandra Monteiro, titular da Secitece, destaca a importância do desenvolvimento de softwares para modelar e prever eventos epidemiológicos, auxiliando na mitigação de seus impactos.

A ciência de dados pode prever cenários e auxiliar na tomada de decisões da gestão que podem modificar aquela que seria a tendência natural, relaciona Antonio Silva Lima Neto (Tanta), secretário executivo de Vigilância em Saúde da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa).

“A gente também trabalhou aqui no Ceará e o mundo todo trabalha hoje. Se eu tenho uma situação epidemiológica agora, ela não é suficiente para mim. Eu tenho que prever, com as modelagens”, explica.

Sandra Monteiro, secretária da Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará, e o médico Antonio Silva Lima Neto (Tanta), secretário executivo de Vigilância em Saúde da Secretaria da Saúde do Estado(Foto: Montagem / O POVO )
Foto: Montagem / O POVO Sandra Monteiro, secretária da Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará, e o médico Antonio Silva Lima Neto (Tanta), secretário executivo de Vigilância em Saúde da Secretaria da Saúde do Estado

Sandra também cita a evolução da telessaúdeque utiliza as tecnologias da informação e da comunicação (TICs) para prestar serviços de saúde à distância — durante a pandemia.

O avanço do uso da tecnologia no atendimento dos serviços de saúde já era uma tendência prevista há algumas décadas, mas foi impulsionado pela necessidade de uma comunicação rápida e eficiente durante o isolamento social.

Tanta acrescenta que a pandemia alertou para a necessidade de uma rede de atenção hospitalar mais adequada, com mais leitos e acesso.

 

 

Quando a ciência “sai” do laboratório para combater a desinformação

A crise sanitária causada pela Covid-19 suscitou uma reavaliação do papel da comunicação por diversas instituições de pesquisa e por parte dos próprios pesquisadores. As entidades de pesquisa e de saúde precisaram equilibrar dois processos que caminham em ritmos diferentes: a ciência e a informação.

“Pela população e pela imprensa, havia a necessidade legítima de buscar respostas, mas a ciência tem um tempo um pouco mais lento para oferecer isso”, analisa Wilson Borges, pesquisador do Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces) do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (ICICT/Fiocruz).

A telessaúde apresentou aumento significativo tanto no sistema público quanto privado(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS A telessaúde apresentou aumento significativo tanto no sistema público quanto privado

Isso gerou “uma certa dissonância” entre o que a população queria saber e os órgãos de imprensa faziam e “o que a ciência podia oferecer com uma certa solidez”.

Um ponto crucial nesse contexto foi a descrença na ciência e na comunicação por parte do Governo Federal. O que gerou informações contraditórias e dificultou o combate à pandemia. “A gente tinha no poder central um certo investimento no descrédito, tanto da ciência, quanto da pesquisa, da vacina e também, por extensão, da comunicação”, diz o pesquisador.

Mas, quem ganhou essa disputa? Segundo o pesquisador, a resposta está em “uma dimensão pendular”. Isso porque a natureza daquilo que a ciência gera de conhecimento é determinada “pelo tempo e pelas condições que ela tem para avançar”.

ASSISTA| Não é Fake News, é desinformação

 

“A população tá muito alicerçado a uma ideia de que a ciência só produz verdade e não é. A gente trabalha também, e sobretudo, com uma ideia de que a ciência produz plausibilidade”. Em alguns casos, a população entende que a ciência não tem muita certeza do que diz.

“É nosso papel dizer para a sociedade que, até aquele momento, com as condições que nós temos, aquela é a resposta possível e não determinar peremptoriamente que aquilo é verdade. Então, essa dimensão da ciência acabou fazendo com que ela fosse se distanciando cada vez mais da população”, pormenoriza.

De 71 países, apenas 2 e União Europeia não criminalizam desinformação(Foto: © Wilson Dias/Agência Brasil)
Foto: © Wilson Dias/Agência Brasil De 71 países, apenas 2 e União Europeia não criminalizam desinformação

Com isso, há “quase um encastelamento” da ciência, muito distante da sociedade. Diante do medo, na perspectiva de Wilson, as pessoas começaram a fazer um movimento de busca para entender o que que era a ciência, o que que era vacina, o que estava acontecendo. “Nesse sentido, a ciência acabou saindo um pouquinho fortalecida desse processo”, diz.

“A ciência não quer abrir mão do poder que tem de definir, às vezes, posições no mundo, rumos que devemos tomar em vários dos campos da nossa vida. E se fragiliza na medida em que ela não consegue responder tudo na velocidade que a população demanda”, reflete.

Nessa batalha entre informação e desinformação, a ciência, apesar de ter ganhado destaque, ainda enfrenta o desafio de comunicar descobertas de forma rápida e compreensível ao público. Nesse cenário, a mídia exerce um papal determinante.

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