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As consequências da pandemia na saúde mental de uma população já adoecida
Reportagem Seriada

As consequências da pandemia na saúde mental de uma população já adoecida

A pandemia causou aumento de diagnósticos de ansiedade e depressão, além do agravamento de casos preexistentes. O distanciamento físico, embora necessário na época, prejudicou relações sociais
Episódio 3

As consequências da pandemia na saúde mental de uma população já adoecida

A pandemia causou aumento de diagnósticos de ansiedade e depressão, além do agravamento de casos preexistentes. O distanciamento físico, embora necessário na época, prejudicou relações sociais
Episódio 3
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Já faz cinco anos. Ao puxar na memória, grande parte de nós situa os acontecimentos entre antes e depois da pandemia. Além de alterar a forma como nos localizamos no tempo, o período de emergência de Covid-19 trouxe inúmeras consequências para a saúde mental da população, que já apresentava tendência de aumento de transtornos.

Inúmeros fatores contribuíram para isso: isolamento social, rotinas alteradas, medo da infecção, mudanças nas dinâmicas de trabalho, luto por familiares e amigos, crise econômica, entre outros aspectos que impactaram a vidas das pessoas rapidamente.

"Uma mudança muito abrupta em um recorte cronológico muito pequeno. Nós saímos de um Carnaval para um isolamento social", lembra a psicóloga Eveline Câmara, gestora e fundadora do Instituto de Especialidades Integradas.

Casos de ansiedade e depressão aumentaram na pandemia(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Casos de ansiedade e depressão aumentaram na pandemia

Houve aumento de diagnósticos de ansiedade e depressão, além do agravamento de casos preexistentes. Segundo ela, a "pandemia exacerbou problemas de saúde mental preexistentes no Brasil".

Segundo o Global Mind Project, relatório anual com dados sobre o bem-estar no planeta, o Brasil é um dos países cuja saúde mental foi mais afetada. Dados de 2023 mostram que mais de um terço dos brasileiros está "angustiado". Os jovens com menos de 35 anos são os mais afetados.

O documento foi elaborado a partir de enquetes feitas com 420 mil pessoas, em 71 países e em 13 idiomas, e usou um quociente de saúde mental que avalia capacidades cognitivas e emocionais. 

Cláudio Martins, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), acrescenta que o home office, embora tenha sido uma solução para a continuidade do trabalho, misturou a vida pessoal e profissional, exigindo adaptações nem sempre fáceis, como trabalhar em espaços inadequados e conciliar as demandas do trabalho com as familiares. 

Conforme o médico, o isolamento imposto pela pandemia afetou a forma como as pessoas interagem e se relacionam. Mesmo após o retorno à "vida normal", as relações interpessoais enfrentaram desafios devido ao aumento do tempo de tela e à dificuldade de interação pessoal.

Movimentação do VLT estação Parangaba na fase 1 de flexibilização do isolamento social em Fortaleza(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Movimentação do VLT estação Parangaba na fase 1 de flexibilização do isolamento social em Fortaleza

Elton Yoji Kanomata, médico psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein, também destaca um nível de estresse bem mais elevado e transtorno de estresse pós-traumático, bem como de casos de suicídio e de abuso de álcool e drogas. 

"Antes da pandemia, enquanto o mundo inteiro estava tendo uma leve diminuição no número de suicídios — por conta de política, saúde pública, conscientização — no gráfico da OMS, nas Américas, em toda América Central, Sul, Norte estava sendo observado um aumento do número de suicídios. O aumento da incidência de transtornos mentais acaba levando a um nível de sofrimento psíquico, que é um dos fatores que acaba levando à tentativa de suicídio", relaciona o psiquiatra. 

Na avaliação de Elton, o "pico" desse aumento de doenças mentais já passou. Mas isso não significa que, após o pico, a situação cessa. "É um processo que vai desacelerando, mas esse processo de desaceleração não vai ser rápido, vai ser algo gradual. Até por conta desses processos de tratamento que não são rápidos. É um tratamento que dura alguns anos", analisa. 

 

 

Retorno ao convívio físico e os prejuízos para a socialização

Quando havia diminuição de casos e a regras de isolamento eram afrouxadas, a interação deveria ser feita com regras. É importante lembrar que esses cuidados salvaram milhares de vidas. Não obstante, é importante discutir como eles nos afetaram enquanto seres sociais.

"Existia esse medo. O outro agora não era só aquela pessoa com quem eu queria e sentia falta de me relacionar. Ele podia ser a pessoa que podia transmitir alguma coisa para mim. Então, acho que essas relações também foram atravessadas por esse medo", destaca a psicóloga Eveline Câmara.

Pessoas usando celulares. Foto ilustrativa (Foto: Freepik)
Foto: Freepik Pessoas usando celulares. Foto ilustrativa

Ela destaca que, considerando a cultura brasileira, na qual "o toque" e proximidade das relações é uma marca forte, isso teve um peso ainda maior. “Então, esse aumento de uma intolerância, um aumento de uma agressividade, acredito também por conta de todo esses cercamentos que a gente teve de uma hora para outra e que a gente não teve tempo subjetivo para lidar com isso”, relaciona.

A tecnologia também se impôs de uma forma mais forte. Quase tudo era mediado pela tela. Segundo ela, muitas pessoas acabaram tomando a rede social como uma relação real demais. 

”Ela não substitui essas relações reais. Eu acho que houve uma confusão nesse sentido. Como se algumas pessoas tivessem tido um pouco mais de dificuldade de sair desse isolamento que agora já não era mais real, mas era subjetivo. E elas usam a rede social como único objeto de interação, quando, na verdade, ele é um objeto de interação”, analisa.  

 

 

Como mitigar os transtornos em um população mentalmente adoecida 

Elton Yoji Kanomata, médico psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein, enfatiza a importância da prevenção de problemas de saúde mental por meio de políticas públicas e conscientização, além de combater o estigma associado a esses transtornos e garantir o acesso ao tratamento. 

A primeira etapa, segundo ele, é prevenir. Políticas de saúde pública voltadas à prevenção de transtornos mentais são cruciais. 

No que se refere ao tratamento, um ponto deve ser trabalhado: a conscientização e combate ao estigma. Para Kanomata, é importante conscientizar as pessoas sobre a existência de transtornos mentais e combater o estigma e o preconceito associados a eles. Muitas vezes, isso impede que as pessoas busquem ajuda profissional e aceitem o tratamento.

Lazer no Parque do Ibirapuera após a flexibilização do isolamento social durante a pandemia de Covid-19.(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil Lazer no Parque do Ibirapuera após a flexibilização do isolamento social durante a pandemia de Covid-19.

Outro ponto crucial é o acesso à saúde. Se uma pessoa tem consciência da sua condição, mas não tem acesso aos serviços de saúde, é mais provável que os transtornos mentais se prolonguem e o tratamento seja mais difícil. A população precisa ter acesso à saúde para que possa receber o tratamento necessário. 

Outro fator que o médico levanta é que as empresas podem desempenhar um papel importante na prevenção de problemas de saúde mental, implementando programas e políticas que promovam o bem-estar de seus colaboradores. Isso inclui conscientizar os colaboradores e gestores sobre a importância da saúde mental, oferecer apoio e criar uma cultura que favoreça a prevenção. 

Além disso, a promoção de hábitos saudáveis, como atividade física e alimentação adequada, e o combate a hábitos não saudáveis, como o consumo de álcool e tabaco, também são importantes.

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