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Pandemia: isolamento prejudicou linguagem e socialização de crianças
Reportagem Seriada

Pandemia: isolamento prejudicou linguagem e socialização de crianças

Primeira infância, tempo crucial para o desenvolvimento, foi prejudicada. Cinco anos depois da Covid-19, efeitos ainda são notados
Episódio 5

Pandemia: isolamento prejudicou linguagem e socialização de crianças

Primeira infância, tempo crucial para o desenvolvimento, foi prejudicada. Cinco anos depois da Covid-19, efeitos ainda são notados
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Passar alguns dos anos formativos em isolamento social teve impacto no desenvolvimento cognitivo, motor e na socialização de crianças e adolescentes. A distância necessária nos momentos mais críticos da pandemia trouxe consequências que ainda geram desafios para famílias, educadores e profissionais da saúde mental.

Para crianças que atravessaram o período enquanto viviam a primeira infância, até os 6 anos, os principais danos reconhecidos por estudiosos foram nos campos da linguagem e da socialização.

“Principalmente as crianças menorzinhas, que nasceram na pandemia, tiveram um certo comprometimento no desenvolvimento da linguagem. Até porque, para desenvolver a linguagem, a gente precisa estar em relação com o outro, observando o comportamento dos outros, convivendo para ter vocabulário e para conseguir se comunicar”, explica a psicóloga infantil Juliana Lima.

Uso de telas foi exacerbado na pandemia, com danos até mesmo à coordenação motora das crianças(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Uso de telas foi exacerbado na pandemia, com danos até mesmo à coordenação motora das crianças

Na pesquisa Iracema-Covid, coordenada pela professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), Márcia Machado, mais de 300 mães e bebês nascidos na pandemia em Fortaleza são acompanhados desde 2020.

Conforme Márcia, todos os marcos de desenvolvimento das crianças participantes foram afetados durante o isolamento. Ao destacar os prejuízos à linguagem, a pesquisadora afirma que o uso excessivo de telas no período também contribuiu para o cenário observado.

“O uso de telas, mesmo na população de baixa renda, foi muito elevado”, relata. A pesquisa mostra que 68,58% das crianças de até 18 meses acompanhadas ultrapassavam o limite de 1 hora por dia de telas recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

Márcia Machado, professora de Medicina da UFC e coordenadora da pesquisa Iracema-Covid(Foto: EVILÁZIO BEZERRA - 1/8/2017)
Foto: EVILÁZIO BEZERRA - 1/8/2017 Márcia Machado, professora de Medicina da UFC e coordenadora da pesquisa Iracema-Covid

A média de tempo diário de uso de telas era maior em famílias com menor renda: 5,44 horas por dia para aqueles que ganhavam menos de um salário mínimo.

O contato exacerbado com as telas e a falta de estímulos durante o lockdown também influenciou na coordenação motora fina, responsável pelos movimentos precisos dos menores músculos do corpo, como os dos dedos das mãos e dos pés.

“Essa ideia de tirar as telas das crianças em determinadas horas na creche e na escola é bem-vinda por isso, porque elas estão com dificuldade inclusive de pegar lápis, giz de cera. O dedo polegar está perdendo um pouco a função, porque as crianças apontam mais o dedo indicador”, explica.

A falta de exercícios e acesso a ambientes espaçosos foi outro fator que interferiu no desenvolvimento da coordenação motora grossa, aquela necessária para movimentar os músculos grandes, como braços e pernas.

“Para o desenvolvimento motor, a criança precisa experimentar o mundo, correr, se sujar, cair, ela precisa aprender a levantar”, diz Juliana.

 

 

Superação depende de fatores socioeconômicos e emocionais

Com o passar dos meses de acompanhamento, a pesquisa Iracema-Covid registrou uma melhora nos indicadores de desenvolvimento infantil dos participantes. A socialização começou a melhorar a partir dos 18 meses.

“Em torno de 64% das crianças melhoraram porque elas começaram a interagir com outras crianças. Foi a época que você sai do lockdown e começa a abrir creches, abrir as escolas”, conta Márcia.

Para a psicóloga Juliana Lima, muitas das crianças que foram corretamente estimuladas conseguiram reverter os danos. No entanto, diversos fatores socioeconômicos e emocionais influenciam no acesso aos estímulos necessários para desenvolver as áreas afetadas pelo isolamento.

Contação de histórias é essencial para melhorar linguagem e ensinar novas palavras(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Contação de histórias é essencial para melhorar linguagem e ensinar novas palavras

“A gente percebe as crianças que não tiveram a oportunidade de reverter esses danos com um certo atraso na fala, dificuldade de socialização. Nos casos mais graves, algumas desenvolveram fobia social, medo de estar em ambientes públicos com muita gente, não conseguindo interagir com os pares, desenvolver uma conversa”, explica.

Por isso, a psicóloga defende que alguns pontos precisam ser avaliados para mensurar os danos da pandemia nas crianças: idade, suporte social da família, se familiares desenvolveram sintomas psicológicos e psiquiátricos, suporte escolar e especializado, se houve isolamento total, se tinha acesso a espaços para brincar ou atividades lúdicas dentro de casa e se interagia com outras crianças, até mesmo por videochamada.

A linguagem também apresentou melhora entre as crianças participantes da pesquisa Iracema-Covid com o passar do tempo. “Mas há uma necessidade de se avançar, principalmente na contação de histórias para as crianças. Isso talvez seja uma coisa tão simples, mas todas as evidências apontam que contar histórias ativa a imaginação, o sonhar, a interação, o vínculo e principalmente o aumento do número de palavras”, diz Márcia.

BRINCADEIRAS ao ar livre, impedidas durante boa parte da pandemia, influenciam na coordenação motora e na socialização na infância(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves BRINCADEIRAS ao ar livre, impedidas durante boa parte da pandemia, influenciam na coordenação motora e na socialização na infância

As duas profissionais concordam que a valorização e ampliação das políticas públicas da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) são necessárias para superar o problema.

“Não adianta a gente individualizar o problema, achar que isso é uma questão meramente do indivíduo que adoece. Todo o sistema precisa se organizar para esse novo mundo. Várias variáveis precisam de uma atenção específica e, se a gente não olhar, acaba correndo o risco de agravar mais ainda a situação”, afirma Juliana.

 

 

O mundo em um jardim

Luiza tinha quase dois anos quando foi preciso se isolar do mundo para proteger a saúde. A mãe, Natália Pires, já pesquisava e visitava escolas para a menina iniciar a educação formal. Foi preciso adiar.

Por um ano, Luiza ficou sem interagir com nenhuma outra criança. O mundo dela, na maior parte do tempo, se resumia à mãe, aos avós maternos e aos bisavós. Mil e um cuidados eram necessários para ver o pai, que mora em outra residência.

Um dos desafios de Natália era ampliar as brincadeiras e exercícios de forma lúdica no jardim da casa. O único lugar disponível naquele momento para se mexer, gastar energia e tomar sol.

Luiza, 6, passou um ano sem ter contato com outras crianças(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Luiza, 6, passou um ano sem ter contato com outras crianças

O aniversário de três anos, feito por videochamada com os parentes, não teve a presença da avó paterna. A avó contraiu covid-19 e precisou ser internada, em um tempo ainda com vacinas escassas e perigo iminente.

“Quando ela [a avó] faleceu, a gente tentou explicar de uma forma que ela entendesse, mas sem esconder o fato de que ela não ia voltar. E foi bem sofrido. Ela passou um tempo em que todo dia perguntava onde era que tava a vovó e a gente tentava contar uma história para ela entender”, conta Natália.



Passar pelo luto, isolamento de pessoas queridas e não interagir com crianças fez com que Luiza tivesse uma dificuldade de socializar. “Por um tempo ela ficava bem mais tímida quando encontrava outras pessoas. Mas com o tempo isso foi passando. Aos poucos ela foi relaxando”, diz a mãe.

A matrícula na escola só veio aos 3 anos e meio. A escola teve um importante papel de ensinar Luiza a viver em sociedade com seus pares.

“Quando a criança convive muito só com adultos, todos estão voltados para os interesses e as necessidades dela. Então, quando você tem outras crianças que têm suas vontades, suas necessidades, a criança aprende que não tem só ela no mundo”, afirma Natália.

 

 

Sofrimento materno atingiu níveis elevados e recuperação não foi total

Quando uma mulher vira mãe, é comum que a vida inteira mude. Com isso, alguns transtornos de saúde mental podem aparecer, como ansiedade e depressão. Em tempos normais, uma proporção de 5% é esperada que manifeste essas questões. Durante a pandemia, o número chegou a 45,7%.

Esse foi um dos achados da pesquisa Iracema-Covid, que acompanha mães e bebês nascidos na pandemia em Fortaleza desde 2020. De acordo com a coordenadora do estudo, Márcia Machado, o resultado “assustou”.

Saúde mental de mães foi impactada pelo isolamento durante pandemia(Foto: ELIF ONER/Freepik)
Foto: ELIF ONER/Freepik Saúde mental de mães foi impactada pelo isolamento durante pandemia

Com o passar do tempo, a prevalência de transtornos mentais comuns entre as mães acompanhadas, no entanto, ainda é considerada alta, com 17%.

Márcia explica que alguns aspectos socioeconômicos também foram determinantes para a manifestação dos transtornos, como baixa escolaridade, mães que perderam ou se separaram do companheiro na pandemia, negras e pardas e mulheres que sofreram algum tipo de violência.

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