"Não dá para igrejas com arrecadações milionárias terem dívida com o INSS, com a Previdência. Se houvesse de fato um controle, o olhar fiscal sobre essa arrecadação, a gente se espantaria com o volume de recursos movimentado nas portas das igrejas”.
A declaração, contundente, é de um pastor que já não prega institucionalmente em uma igreja [Ensina que não deve ser identificado como 'ex-pastor'. "Os votos de ordenação não podem ser desfeitos, por isso continuo pastor"]. Jamieson Simões tem 45 anos, hoje é pesquisador de violência, mas segue sua caminhada eclesiástica por outros percursos.
Conhecedor de ambos os cenários em toda a cidade, o religioso e os mais hostis, dominados pelo crime. Tem certeza no que está afirmando porque tem a experiência pastoral em duas organizações evangélicas pentecostais. “As igrejas têm um trabalho social fundamental, mas esse trabalho não pode ser uma brecha para correr o dinheiro sem controle", completou.
As dívidas às quais o religioso se refere já somam R$ 7,96 milhões. Os dados da Receita Federal apontam que, de 1996 a setembro de 2021, o órgão tem 329 cobranças feitas a 167 organizações religiosas, dessas 83% são evangélicas. Os números foram informados pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) à Central de Jornalismo de Dados do O POVO - DATADOC, via Lei de Acesso a Informações (LAI).
É o que consta na Dívida Ativa da União referente somente a organizações religiosas da Capital formalizadas junto à Receita. De todos os credos e cultos. Dessas 329 dívidas, 233 estão em "situação irregular". Duas escolas são as principais devedoras e, juntas, passam de R$ 3,5 milhões em valores acumulados.
As cinco maiores devedoras do fisco na Capital, cadastradas como organizações religiosas, são: Colégio São Vicente, Escola São Rafael, Comunidade Cristã Videira, Mitra Arquidiocesana de Fortaleza e Igreja Comunidade Cristã Logos. Ao longo dos anos as pendências com a receita são referentes, em sua maioria, a questões previdenciárias, ou seja, valores não pagos pela organização aos funcionários, por exemplo.
"Essas associações recolhem o dinheiro, por exemplo, da função trabalhista e não repassam para o INSS. Isso gera uma dívida gigante das organizações religiosas com a Previdência. O que se alega é que não haveria recursos nessas fundações para pagar os direitos trabalhistas nem saldar a dívida com o INSS", explica Jamieson Simões.
Juntas, essas cincos empresas são responsáveis por 72% da dívida ativa de organizações religiosas com a União, um total de R$ 5.750.754,56. Os titulares dessas organizações possuem relações, são sócios , em outras 20 empresas, que vão de igrejas, escolas, rádios, hospitais e cemitérios - ou seja, um ramo empresarial diverso.
Os dados dessas relações empresariais e sociedades foram obtidos por meio da ferramenta CruzaGrafos, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) , que permite verificações cruzadas e investigações avançadas de dados. A ferramenta possui dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Receita Federal e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A reportagem entrou em contato com as empresas citadas nesta reportagem, e apenas a Comunidade Cristã Videira deu esclarecimentos sobre a situação em que se encontra com o Fisco.
O pastor Cícero Francisco da Costa Neto, criador da organização, informou que desde 2017 a instituição aderiu ao Programa de Recuperação Fiscal (Refis) e atualmente o saldo devedor é de R$ 391.258,19.
“O parcelamento encontra-se em dia, com certidão positiva e com efeito negativo pela existência do parcelamento”, explicou o pastor. Além de líder religioso, ele é o atual coordenador executivo de Articulação do Terceiro Setor e Instituições Religiosas da Prefeitura de Fortaleza.
O colégio São Vicente, dono da maior dívida, encerrou suas atividades em dezembro de 2011. O processo foi acatado pela Câmara de Educação Básica do Conselho Estadual de Educação (CEE) em janeiro de 2013. Já a Escola São Rafael, de 1º e 2º Graus, no Centro, também não funciona mais. Existia desde 1970 e até pelo menos 2018 mantinha atividades na avenida Imperador, número 1.490. Era uma das unidades de educação da ordem vicentina na Capital.
No mesmo prédio hoje funciona a Escola Nossa Senhora Auxiliadora, gerida pela mesma ordem religiosa. O POVO tentou falar com a irmã Vilanneide Ferreira, principal gestora, mas foi informado que o setor jurídico responderia, o que não aconteceu até o fechamento desta matéria.
Sobre a dívida da Mitra Arquidiocesana de Fortaleza, O POVO não avançou em mais detalhes, a partir do contato feito com o padre Evanilson Raquel de Oliveira, ecônomo da Arquidiocese.
"No momento não estou podendo falar sobre isso. Terei que falar com superiores. Agradeço sua compreensão", explicou. Padre Evanilson assumiu o cargo em abril de 2021.
Criador da Igreja Comunidade Cristã Logos, o pastor Everaldo da Silva não foi localizado em três telefones identificados pela reportagem.
Das dívidas de organizações religiosas informadas pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, 136 são previdenciárias, 188 não previdenciárias e 5 se referem a repasses do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Das organizações religiosas que constam no Quadro Societário da Dívida Ativa, 74% são igrejas evangélicas.
As críticas ao benefício constitucional que garante imunidade tributária aos templos religiosos não é de hoje. Uma das principais é referente à possibilidade de evasão fiscal atrelada à lavagem de dinheiro.
Fragilidades na fiscalização, falta de regulamentação da Lei, e uma crescente de templos são terreno fértil para a ocorrência de organizações religiosas de fachada ou igrejas fantasmas, por exemplo. Ambos utilizados para prática de evasão fiscal, lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio.
O levantamento da Central DATADOC encontrou 22 templos religiosos no cadastro de imunidade da Secretaria de Finanças do Município (Sefin), que não constam nos respectivos endereços declarados ao órgão municipal. Nos locais estão terrenos vazios, residências particulares ou mesmo a numeração do imóvel não consta no endereço declarado.
Esses estabelecimentos estão espalhados por 16 bairros, presentes em 75% das Secretarias Regionais de Fortaleza, apenas nas Regionais 2, 5 e 12 não foram encontradas inconsistências.
A situação desperta para uma possível fraude, porém a imunidade de templos religiosos não abrange somente o local do culto, mas todos os outros ambientes diretamente ou indiretamente relacionados com o prédio onde se situa a igreja, o culto.
A jurisprudência tem alargado ainda mais essa imunidade dizendo que compra e venda feita por igrejas, desde que reverta o produto desta comercialização a favor da consecução da finalidade religiosa está acobertado pelo princípio da imunidade .
Porém, como saber se os benefícios arrecadados com aluguéis de imóveis de organizações religiosas, por exemplo, estão sendo revertidos para a finalidade da causa das igrejas e credos?
Outro ponto levantado é referente às doações de fiéis. O pesquisador e pastor Jamieson Simões aponta que é impossível auditar essas quantias. Segundo ele, é o cenário ideal para quem precisa camuflar o aumento de renda, escapar da tributação ou até lavar dinheiro do crime.
“Sou pesquisador da violência na periferia. O dinheiro mais perigoso que tem é o dinheiro em espécie, sem controle. Porque serve para a corrupção, para o arrego, para toda espécie de crime, compra de arma, munição, lavagem. Todo crime é feito com dinheiro em espécie”, explica Simões.
Ele descreve as segundas-feiras como o dia da semana em que as portas das igrejas estão sempre movimentadas. Porque há a transferência de valores coletados nos fins de semana nas doações.
“O dinheiro, em espécie, sai das igrejas filiais para as sedes. É como uma organização piramidal. Tem as células nos bairros e a arrecadação sobe para a sede. Toda segunda-feira tá lá, em espécie".
Todas as movimentações descritas nesta reportagem fazem parte da realidade das igrejas. Para o especialista em direito tributário e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (IBEDAFT), Kiyoshi Harada, demonstram que as igrejas praticam atos de comércio, sendo necessária uma regulamentação.
“Há desvios de finalidade de toda ordem. Deveria haver uma lei complementar regulamentando a atividade. Não para reduzir a imunidade, mas regulamentando uma forma eficiente de fiscalização. O brasileiro é bastante religioso e o que ocorre é a exploração da fé”, aponta Harada.
Ele cita o exemplo do que há na legislação cooperativista, em que os atos cooperativos não são passivos de tributação. “Agora aqueles relacionados com terceiros, compra e venda, são os que devem ser escriturados em separado e oferecidos à tributação”.
A criação de uma lei que torne efetiva a fiscalização dos templos religiosos, é algo considerado improvável para o tributarista, por conta do avanço gradativo da bancada evangélica no Congresso Nacional e nos parlamentos municipais e estaduais. O que também é obstáculo para as auditorias fiscais.
“O lobby na Câmara é muito grande e ao mesmo tempo muitos disputam a proteção dessa bancada evangélica. Então não acredito que seja possível a edição de uma lei complementar que torne efetiva a fiscalização. Isso também reprime a atuação fiscal. Fuçar muito é querer comprar briga política”.
Segundo a Célula de Análise e Informações Tributárias da Secretaria de Finanças do Município (Ceint-Sefin), a desoneração fiscal - a renúncia de tributos - para imóveis religiosos em Fortaleza mais que triplicou em uma década. Saltou de R$ 3.805.255,06, no ano 2011, para R$ 12.279.166,98 em 2021. O valor de 2020 chegou a ser até maior, R$ 12,4 milhões.
Esta série de reportagens mostra que há pelo menos 910 imóveis desfrutando dos benefícios de isenção e imunidade tributárias na Capital, inclusive alguns que fogem do perfil religioso, como faculdade, banco e construtora. O tema será abordado em novo episódio na próxima terça-feira, 8.
São números que não cercam, de fato, o universo das lideranças religiosas que não buscam a formalização. Fortaleza é uma cidade com muito mais templos, terreiros, paróquias, centros espíritas, mesquitas, sinagogas e outros espaços de fé.
"Todo ano há mais imóveis cadastrados. Aumenta a renúncia fiscal, a desoneração, mas também aumenta a arrecadação. Quase todo dia é criada uma nova igreja de uma ordem religiosa. Muitas igrejas não têm o documento do imóvel, não têm nada que prove, às vezes são documentos de posse", diz o gerente da Ceint-Sefin, Paulo César Leitão.
Organizações religiosas formalizadas, com cadastro de pessoa jurídica e seguindo protocolos estatutários e contábeis, podem requerer benefícios de isenção e imunidade tributárias. O principal é o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). A imunidade de tributação é um direito constitucional garantido independente do credo, mas uma realidade acessível a poucos.
"Devem existir diversas igrejas que realizam seus cultos mas não têm o benefício porque o imóvel não é patrimônio dela, principalmente na periferia", afirma Leitão.
A gestora da União Espírita Cearense de Umbanda (Uecum), Mãe Tecla de Oxóssi, afirma que mapear os terreiros sempre será um trabalho difícil. Registrar um terreiro como pessoa jurídica já será complicado por questões financeiras. No primeiro episódio deste especial, a reportagem mostrou a ausência dos templos de matriz africana nas bases de beneficiários da Sefin.
“As pessoas, na maioria, são realmente do povão. Os terreiros não têm condições de pagar o contador, maioria não é nem casa própria. Muitos são carentes que só trabalham a caridade”. Além disso, ela aponta que os umbandistas temem perseguições ao serem localizados. “Têm medo de dar nomes, endereços, não aceitam. É uma proteção. É medo ancestral”.
A docente e pesquisadora do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Christina Vital, que também coordena o Laboratório de Estudos Socio-Antropológicos em Política, Arte e Religião da UFF explica que no Rio de Janeiro, mesmo com o incentivo para formalização, foi identificado um número reduzido de terreiros regularizados.
“Mesmo no Rio de Janeiro, onde a gente teve um incentivo da Secretaria Estadual muito forte e do Governo Federal na época do governo Lula, observou-se um número muito baixo de inscrição, e isso tem a ver com uma dinâmica que é do próprio campo”, explica.
A legalização dos terreiros, além de garantir a imunidade fiscal, envolve a possibilidade de aposentadoria dos sacerdotes.
Cada organização religiosa é obrigada a se formalizar como Pessoa Jurídica junto à Receita Federal. Para abrir/criar uma igreja, basta que um grupo leve a um cartório um estatuto social, a ata de fundação, a lista qualificada dos fundadores e dos eleitos aos cargos estatutários. Preenchendo o Documento Básico de Entrada (DBE), mais alguns dias de espera e confirmações, a custa cartorial principal é barata. Abre-se uma igreja a partir de R$ 451,52.
Apenas a Igreja Católica tem um trâmite diferente: uma carta do representante apostólico - um monsenhor ou um bispo - bastam para o registro de um novo templo junto à Receita. A organização religiosa deve atuar sem fins lucrativos, ou que suas movimentações financeiras devem ser somente para a manutenção da atividade religiosa.
O registro feito em cartório segue direto para a Receita Federal. Apenas a informação em cartório não valida a existência da organização religiosa. Qualquer cidadão pode constar no registro dessa pessoa jurídica. A condenação em última instância por um crime pode ser um impeditivo legal.
Com direito garantido pela Constituição Federal, a organização religiosa pode requerer a imunidade tributária - benefício dado quando é proprietária do endereço. É um direito permanente, enquanto a casa/igreja/templo pertencer à instituição. A Secretaria de Finanças do Município de Fortaleza (Sefin) concede a isenção quando os imóveis usados pelas organizações religiosas são alugados. O direito é dado por lei municipal e vale durante a vigência da locação.
Para as análises e mapeamentos dos credos existentes em Fortaleza, a central DATADOC utilizou dados da Secretaria Municipal das Finanças (Sefin) e Superintendência da 3ª Região Fiscal da Receita Federal do Brasil, obtidos via Lei de Acesso à Informação. A categorização das religiões usada pelo IBGE foi norteadora do trabalho de classificação dos templos pela Central.
Como forma garantir a integridade e confiabilidade deste material, disponibilizamos aqui a metodologia detalhada do projeto, as fontes de dados utilizadas, nossas análises, dados agregados resultantes e o conjunto de códigos desenvolvidos.