Logo O POVO+
Farinhadas do Ceará são pontos de encontro e preservação de comidas tradicionais
Reportagem Seriada

Farinhadas do Ceará são pontos de encontro e preservação de comidas tradicionais

Cozinhar, compartilhar, comer. Reportagem do OP+ mostra práticas, costumes, tradições e saberes que seguem vivos e marcam a identidade cearense. E começamos com a farinhada, prática que resiste mesmo sendo pouco lucrativa para as comunidades rurais. Repassar a tradição para as novas gerações é preocupação e territórios procuram formas de engajar a juventude
Episódio 1

Farinhadas do Ceará são pontos de encontro e preservação de comidas tradicionais

Cozinhar, compartilhar, comer. Reportagem do OP+ mostra práticas, costumes, tradições e saberes que seguem vivos e marcam a identidade cearense. E começamos com a farinhada, prática que resiste mesmo sendo pouco lucrativa para as comunidades rurais. Repassar a tradição para as novas gerações é preocupação e territórios procuram formas de engajar a juventude
Episódio 1
Tipo Notícia Por

 

 

Raspar, moer, molhar, espremer, secar, prensar, peneirar, torrar. Esses são os verbos que regem uma farinhada. O processo que começa no plantio da mandioca e resulta em pratos tradicionais da mesa dos cearenses, como o beiju, a tapioca e o bolo de grude, é mais do que só produção de alimento.

É cultura, vínculo e história viva.

“Quando um membro da família - um pai, um tio, um avô -, resolve fazer uma farinhada, a família inteira se envolve no processo”, explica Bárbara Maria Alves dos Santos, 24, historiadora, agricultora e pesquisadora de cultura alimentar e agroecologia.

Na comunidade Coqueiro, pertencente ao assentamento Maceió, no município de Itapipoca, Bárbara aprendeu a apreciar o momento de unir as pessoas para trabalhar a mandioca.

A farinhada, desde a infância, é um ponto de encontro. “Quando a minha mãe ia para a casa de farinha, eu ia junto pensando em encontrar os meus primos que iam estar por lá”, relembra.

Preparos feitos com a mandioca na Festa da Farinhada de 2025, no território tremembé da Barra do Mundaú(Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo)
Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo Preparos feitos com a mandioca na Festa da Farinhada de 2025, no território tremembé da Barra do Mundaú

A reunião não ocorre apenas entre pessoas da mesma família. Como é preciso muitas mãos para os processos, a comunidade se ajuda para fazer a farinhada. “Se eu fui trabalhar na farinhada de fulano, ele vai ter que vir na minha para compensar a troca”, conta Bárbara.

Assim, fazer farinha se torna uma atividade coletiva, envolvendo crianças, idosos, mulheres e homens.

“A gente não faz farinhada sozinha. São quatro ou cinco mulheres só para raspar a mandioca, tem que espremer, tem um homem pra prensar, homem pra mexer, uns para arrancar. A gente ocupa um grupo de pessoas”, diz Erbene Tremembé, liderança do povo indígena Tremembé da Barra do Mundaú, também de Itapipoca.

As mulheres exercem papel fundamental na tradição da farinhada(Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo)
Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo As mulheres exercem papel fundamental na tradição da farinhada

Coletivamente, os povos do Ceará foram consolidando a tradição de produzir o alimento que, para Erbene, não é uma comida qualquer. “Faz parte da nossa alimentação diária, da nossa cultura e sobrevivência. Se a gente for colocar uma comida na mesa e não tiver uma farinha, não é a mesma coisa”, conta.

Com o tempo, a prática foi mudando junto das dinâmicas familiares. A menor quantidade de filhos por mulheres e o menor interesse dos jovens pela agricultura são fatores que influenciaram a capacidade de fazer grandes farinhadas. Os custos aumentaram e as roças de mandioca diminuíram. Continuar a tradição tornou-se mais desafiador.

“Sai muito caro e a gente não tem muita lucratividade. A farinha é barata. Se você for fazer a farinhada pela renda, para ganhar em cima daquilo ali, você nunca vai fazer. Nunca vai ser agricultor. Se for somar tudo que você gasta do plantio até a tarefa de produzir, nunca vai alcançar sua diária de trabalho. Mas é uma coisa que é cultura nossa”, afirma Erbene.

Os processos envolvem familiares e amigos, tornando-se um grande evento social, cultural e gastronômico(Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo)
Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo Os processos envolvem familiares e amigos, tornando-se um grande evento social, cultural e gastronômico

Bárbara relata que no assentamento onde mora a maior parte do trabalho ainda é voluntário, mas em outros territórios é preciso pagar quem tem o conhecimento e a experiência para realizar os processos. Mesmo com uma comunidade engajada e organizada, incluindo jovens, a sucessão rural ainda é uma preocupação.

“A gente está indo para a universidade, mas está pesquisando sobre coisas do território. Nossa preocupação é também de pensar novas formas para utilizar os produtos que têm na casa de farinha, sem perder a ligação com o território, sem perder de vista a importância que é a cultura alimentar”, diz a jovem.

A facilidade de acesso a produtos industrializados, como pão, bolacha e biscoitos altamente palatáveis, também trouxe uma competição desleal aos sabores tradicionais do território. “As crianças foram se habituando a outros sabores e a gente percebeu que a questão da tapioca, do beiju, dessas coisas da farinhada, estavam ficando para trás, estavam sendo esquecidas”, conta Erbene.

Há registros de farinhadas em todo Ceará. Os processos podem ter nomes diferentes, mas o objetivo é sempre o mesmo: festejar(Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo)
Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo Há registros de farinhadas em todo Ceará. Os processos podem ter nomes diferentes, mas o objetivo é sempre o mesmo: festejar

Pensando na perpetuação da cultura alimentar, há nove anos o povo tremembé promove a Festa da Farinhada nos meses de julho. Os quatro povos do território indígena de Itapipoca se reúnem para fazer uma farinhada coletiva por quatro dias, mas também para contar histórias, brincar reisado, cantar, dançar e realizar rituais.

“É um momento de dar muita visibilidade também à nossa luta e à nossa resistência enquanto povo”, explica Erbene. Uma feirinha é realizada para vender os produtos da farinhada e gerar renda para os agricultores. Apesar do pouco retorno financeiro, Erbene acredita que a farinhada vai continuar sobrevivendo. O que mais importa é compartilhar a cultura e o alimento.

“É bonito porque naquele dia muita gente come daquilo que a gente faz. Todo mundo que tá na farinhada, mesmo que seja trabalhador nosso, ganha uma goma, leva para fazer sua tapioca. Para nós, o que o agricultor acha bonito é fazer aquela fartura, nem que seja por pouco tempo”, afirma Erbene.

 

 

Romântico e desvalorizado

“Quando a mão está em contato com a goma fica lisa, macia. Dizem que quando você tá ali mexendo na goma, normalmente você acaba esbarrando sem querer na mão do paquera. Então se aproveitam daquele momento de uma sensibilidade diferente”.

Foram esses e outros relatos que despertaram ainda mais o encanto pela cultura alimentar em Gio Frapiccini, coordenador do programa Comida, Patrimônio e Memória.

À frente do grupo de estudos no Mercado AlimentaCE sobre os sistemas alimentares relacionados à casa de farinha, diz que a farinhada vai além da produção do alimento, sendo vista como uma celebração, um espaço de trocas, aprendizado de técnicas e de construção de relações, inclusive afetivas.

O grupo pesquisa a atual realidade das casas de farinha: como e se a farinhada ainda é realizada; se reúne núcleos familiares diferentes; os ofícios necessários e os objetos utilizados. É uma análise de um patrimônio alimentar e de tudo que envolve os processos.

Um dos maiores desafios para manter viva a tradição é engajar os mais novos(Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo)
Foto: Arquivo pessoal/Yasmim Verissimo Um dos maiores desafios para manter viva a tradição é engajar os mais novos

Em estudos anteriores, o pesquisador detectou situações relacionadas à perda de território e à diminuição do roçado de mandioca. Por sua vez, as casas de farinha são inativadas ou destruídas. Ainda não há um levantamento oficial de quantos equipamentos desse tipo existem e estão ativos no Estado.

Existe ainda a mecanização de processos que não respeitam nem vislumbram uma melhoria na comunidade e a falta de interesse dos mais jovens em seguir as tradições. 

“É um trabalho que é romantizado porque é lindo e faz parte do nosso patrimônio, é muito importante. Mas ele é tão lindo e tão desvalorizado, ao mesmo tempo”, explica Gio. A pesquisa, feita de forma coletiva, com um olhar para o patrimônio e protagonizando as comunidades tradicionais, aproxima o Estado e possibilita a criação de políticas públicas.

A perspectiva é trazer esse olhar das políticas públicas de valorização do ofício, de valorizar os objetos, as técnicas e, principalmente, dos fazedores, as pessoas que estão envolvidas no processo.

“E aí, a partir disso, a gente tem que ter uma política pública transversal. O levantamento é para poder pensar, enquanto um patrimônio, como é que ele pode ser cuidado e como é que a gente pode garantir a continuidade desse fazer”, conclui o coordenador.

O passo a passo da farinhada 

 

 

Se o campo não planta, o povo não janta

Sol a pino, serras no horizonte e uma cachorrinha caramelo compõem o cenário do terreno de Valdir Pereira Vasconcelos, 55 anos, no assentamento Santa Bárbara, em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza.

O agricultor, que nunca trabalhou com outra coisa na vida, tira da terra o sustento e os alimentos da família. Com orgulho, ele mostra o sistema de irrigação que há cerca de seis anos facilita o cultivo de melancias, principal item produzido.

O sistema ajuda ainda no cultivo de alimentos para consumo próprio, como o maxixe, o jerimum e a mandioca. Essa, por sua vez, há 10 anos perdeu o protagonismo e a casa de farinha, que fica logo em frente à sua residência, o mato “tomou de conta”. Essas roças e a produção de farinha não eram rentáveis, mas Valdir não nega o prazer de comer um beiju feito no forno.

Valdir Pereira Vasconcelos, 55 anos, agricultor familiar do assentamento Santa Bárbara, em Caucaia(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Valdir Pereira Vasconcelos, 55 anos, agricultor familiar do assentamento Santa Bárbara, em Caucaia

Hoje, o agricultor celebra bons frutos, tanto na colheita quanto nas vendas. Segundo ele, ao contrário de grandes agricultores, nem sempre era garantida a venda de uma safra. Porém, o cenário mudou com a parceria com a Cooperativa de Produção Agropecuária e Serviços Santa Bárbara (Copasb).

“Eu experimentei (um sistema de) irrigação em 2012, mas foi daquele jeito, ninguém sabia o que ia vender, quem ia comprar, não tinha garantia. Hoje a gente tem a garantia da cooperativa. A gente já sabe que vai vender”, explica.

Na comunidade, há poucas plantações como as dele. Seus filhos seguem a tendência da nova geração e preferem trabalhar na cidade. “A pessoa quer logo ver o resultado, porque aqui é um risco, né? É um tiro no escuro, que a gente chama”, conta.

Casa de farinha desativada na frente da residência de Valdir mostra a dificuldade de continuar a tradição das farinhadas(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Casa de farinha desativada na frente da residência de Valdir mostra a dificuldade de continuar a tradição das farinhadas

Após 70 dias de cultivo, a melancia do Valdir sai do seu terreno já no caminhão da cooperativa Copasb, presidida por Nonato Barbosa. Criada em 1999, hoje funciona no centro de Caucaia.

Ao chegar, a fruta é distribuída entre os compradores, como órgãos governamentais e municipais, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), e pelo projeto Aquisição de Gêneros Através do Credenciamento de Cooperativas da Agricultura Familiar, criado em 2023 pelo Sistema Fecomércio.

Para Nonato, este último, aderido pela cooperativa desde o início, se diferencia não apenas pela melhoria de renda das famílias, mas também pelo aprimoramento da estrutura física e por ensinamentos em áreas como logística, gestão e marketing.

Valdir já chegou a vender sete toneladas de melancia por meio da cooperativa Copasb(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Valdir já chegou a vender sete toneladas de melancia por meio da cooperativa Copasb

Hoje, a Copasb vende hortaliças, maracujá, mamão, melancia, tomate e pimentão, além do frango, em parceria com um abatedouro de Itapipoca. Novos investimentos já estão sendo aplicados, com o intuito de fornecer outros produtos, como polpas.

Diariamente, o Sistema Fecomércio faz cerca de 22 mil refeições com insumos cearenses em todos os restaurantes do Sesc e Senac. Mas o cenário, até 2023, era diferente. Hoje, o negócio de Nonato é uma das 29 cooperativas cearenses que fazem parte do projeto da Federação.

O objetivo, conforme explica Marlea Nobre, diretora administrativa do Sistema Fecomércio, é valorizar o cooperativismo e mostrar ao produtor do Ceará que é possível escoar a safra.

Nonato Barbosa, presidente da Copasb, no centro de distribuição de insumos da cooperativa(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Nonato Barbosa, presidente da Copasb, no centro de distribuição de insumos da cooperativa

Antes do lançamento do projeto, a Fecomércio havia comprado com a agricultura familiar R$ 60 mil. De 1º de agosto de 2023 a 31 de maio de 2025, foram R$ 32 milhões. “É um recurso que ficou no Ceará, que movimentou a economia dos municípios, que as pessoas conseguem inclusive ir em busca de produtos, de serviços que agregam qualidade de vida”, declara Marlea.

A diretora administrativa diz que o projeto proporciona ainda troca de experiências entre as cooperativas, cases que visam plantios mais saudáveis, sem uso de agrotóxico e com mais cuidado ao solo, e o desenvolvimento social das famílias.

Em paralelo, o Sesc redesenhou e padronizou o cardápio em todo Estado, aproveitando melhor o escoamento e a sazonalidade das plantações.

Programa de aquisição de alimentos de cooperativas de agricultores familiares melhora renda e escoamento da produção(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Programa de aquisição de alimentos de cooperativas de agricultores familiares melhora renda e escoamento da produção

O projeto, presente em todas as macrorregiões do Estado, adquire principalmente frango, ovos, polpas, tilápia e hortifruti - inclusive a melancia do Valdir. Em determinados períodos, a lista amplia para licores, cachaças e doces.

Desde o início, todas as cooperativas aumentaram o número de cooperados e 3 mil famílias foram impactadas diretamente pelo projeto e indiretamente pela possibilidade de aprimorar os negócios, adquirir financiamentos e participar de outros editais estatais e municipais.

“A gente fomenta a organização, o associativismo e o cooperativismo, porque é assim que eles se tornam mais fortes. (...) É bom que o cearense não precisa migrar. Se um dia ele quiser sair do nosso Estado, que saia porque quis, não por falta de oportunidade.

Então, a gente acredita que esse projeto fomenta o apego ao território, o enraizamento afetivo de cada produtor, de cada família no território onde estão”, completa Marlea.

O que você achou desse conteúdo?