Aos 10 anos, Laureni Amorim de Souza se juntou à mãe e à avó para iniciar no ofício que garante a sobrevivência da família há muitas gerações. O mar e o rio Pacoti, que corta o município de Aquiraz, distante 29 quilômetros de Fortaleza, servem, ainda hoje, de cenário e de fonte para pescados e mariscos.
“Tudo que a gente via, pegava para comer, para vender, para trocar por farinha. É assim a nossa vida, sofrida”, conta Laureni, 44 anos. O dia da marisqueira começa, na verdade, de madrugada. Às 4 horas ela sai de casa, em Machuca, povoado de Aquiraz.
A companhia alterna. Quando não vai com um dos filhos, segue rumo ao rio ao lado de uma das filhas. Às 11 horas, retornam e dividem o pescado: os graúdos são vendidos, e os pequenos, consumidos pela família de dez filhos.
As vendas são feitas por onde passam e as encomendas são entregues em mãos. O valor arrecadado ajuda a comprar o que falta na despensa e complementa a única fonte de renda fixa, o auxílio do Bolsa Família, essencial para comprar o feijão e o arroz.
“Quando dá pra gente comprar uma carne, a gente compra. Aí, para não faltar na casinha da gente, vamos pescar, para variar a comida. A gente só tem as coisas trabalhando”, reforça.
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A “mulher do Totó” não entra sozinha no rio. Na sua região, a pesca virou uma fonte complementar de renda, até dos que já têm outros trabalhos. Rodeada de muitas famílias marisqueiras, Laureni explica a importância de manter a distância, para cada um ter seu espaço e “o rio dar de comer”.
A técnica também depende de cada um: mãos, rede, tarrafa, galão. Um bom dia rende R$ 100. “Vendi o camarão. Aí eu comi o siri. Tem tempo que dá bom, tem tempo que dá ruim. Tem tempo que não dá nada.”
No acessório utilizado, passa de tudo. Peixe, siri, sururu, camarão. “Quando a minha avó era viva, ela pegava uma redinha e ia pro rio Pacoti pescar 'mais' nós. Aí ela ensinou a gente a pescar. Não tem outro trabalho, né? Só o rio mesmo.”
Dentre os filhos, poucos a acompanham, seja por vergonha do ofício ou até por não apreciar sabor e aparência de mariscos e peixes. Ela, por outro lado, se divide entre as dificuldades do ofício e o prazer gastronômico dos frutos pescados. Não se envergonha e nem pensa em deixá-lo.
“Eles (os filhos) já foram mais diferentes do que eu. Eu fui criada com negócio de marisco. Ave Maria, eu adoro. Quando eu não como meu siri e meu camarão, eu fico doidinha da minha cabeça”, conta. No preparo, as combinações preferidas são siri no leite do coco e camarão com cará.
No inverno, período de cheia do rio e de defeso, a colônia de pescadores repassa um subsídio que permite que marisqueiros e pescadores sobrevivam. Independentemente da época, a fartura de anos passados não existe mais. O rio, totalmente diferente, não fornece mais cestos cheios. Ao contrário; o mau cheiro incomoda e é comum ver intervenções humanas, como despejo de esgoto e retirada de areia.
Para o futuro, ela vislumbra se aposentar como marisqueira, tal qual os pais, mas deseja aos filhos “uma coisa melhor”, fruto dos estudos e que possibilite ajuda. “Porque vai chegar um tempo que eu não vou poder pescar, né, que eu já tô velhinha”, declara.
Maria Cristina de Sousa Paula, presidente da colônia de pescadores Z8 de Fortaleza, destaca uma questão além da ambiental: a violência e as disputas de territórios que impedem a pesca artesanal nos mangues da Capital.
Filha de marisqueira e pescador, ela afirma a necessidade de realizar estudos para entender a realidade ambiental e social, tendo em vista que as marisqueiras não conseguem sobreviver unicamente dessa renda.
Os planos ainda incluem um levantamento de vendas e a divulgação do trabalho, tornando-o sustentável. “A gente tá lutando por essas políticas públicas, para melhorar esse ativismo, para entender a vulnerabilidade de mariscos, estuários, rios”, explica.
Outros pontos que Maria Cristina cita como importantes para conservar a tradição e a matéria-prima é a capacitação dos mais novos e a apresentação de outras fontes de renda a partir dos mariscos, como o artesanato e a culinária.
Toda essa cadeia envolve fortalecimento, potencialização, encorajamento e empoderamento, principalmente das mulheres.
Na casa de Alexandra Pereira de Oliveira, 53, os alimentos vindos do mar sempre foram o sustento financeiro e também abriram portas para as mais diversas manifestações culturais.
Filha do mestre da cultura Seu Oliveira, de Aquiraz, cresceu vendo o pai pescar e fazer réplicas em miniatura de jangadas. Por influência da mãe, aprendeu a capturar mariscos e a ser rendeira.
Além do artesanato, Alexandra trabalha com a venda de pastéis feitos com sururu, arraia, lagosta, carne de caranguejo e camarão. Não se considera marisqueira como a mãe, mas mantém a prática da pesca e usa os mariscos como fonte de inspiração para os pratos que vende.
“Eu faço comidas da minha cabeça. Eu não sou formada em gastronomia. Eu sou formada na gastronomia da vida”, diz. Há 15 anos, participa do encontro Povos do Mar, promovido pelo Sistema Fecomércio Ceará, por meio do Sesc.
O encontro, que reúne danças, artesanatos, músicas e brincadeiras de 200 comunidades litorâneas, dá atenção especial às práticas de alimentação que fazem parte da história cearense. Ocorre três vezes ao ano, em Fortaleza/Caucaia, Icapuí e Jericoacoara.
Na edição de 2025 do evento em Fortaleza, Alexandra apresentou uma mariscada durante o “DiCumê: Socialização de Práticas Alimentares”, momento destinado a divulgar aos visitantes pratos de vários territórios do litoral.
Para ela, a troca de experiências com os outros povos que carregam a cultura tradicional é “muito rica”. “E dá oportunidade pra gente mostrar nosso trabalho, comercializar e ajudar na nossa renda”, afirma.
Vanessa Santos, consultora de produtos educacionais do Senac Ceará na área da Gastronomia, defende que a cultura começa pela comida. “Não existe um grupo social que tenha se formado que não seja em torno da comida”, diz.
Apesar da importância cultural, manter vivos pratos, temperos e preparos tradicionais exige dedicação. A especialista chama atenção para a “padronização de sabores” como consequência de paladares cada vez mais acostumados com alimentos industrializados e ultraprocessados.
As cozinheiras que levam pratos para o DiCumê têm assistência de professores e alunos do Senac para fazer as comidas. “Mesmo sendo escola, a gente não vem na condição de ensinar, vem na condição de aprender”, diz Vanessa.
Durante as trocas na cozinha, Vanessa conta que percebe a influência da indústria alimentícia até mesmo em quem faz comida tradicional. Algumas preferem usar o leite de coco industrializado, temperos prontos e condimentos para deixar o arroz “soltinho”.
“Elas vêm mesmo completamente dominadas pela falácia de que aquilo ali vai melhorar. A gente pergunta ‘se sua mãe não usava [os temperos prontos] e você já gostava da comida, por que você não tenta?’. A gente começou a fazer fundos de legumes que servem de tempero e oferecia para elas. Hoje já não colocam mais”, conta Vanessa.
O intuito é desenvolver a autonomia e fortalecer a identidade desses povos. “A partir do momento que a gente trabalha isso, empodera eles, dá fortalecimento. Eles criam coragem de apresentar isso pros turistas”, afirma.
Com a autoestima revigorada, o juízo de valor feito por alguns setores, que acaba tentando determinar o que é cultura e excluindo saberes tradicionais, não tem vez. “O Povos do Mar é puro no sentimento de valorizar o que tem [no Ceará]”, diz Vanessa.
O ciclo do trabalho das marisqueiras depende, principalmente, de fatores externos. Há cerca de três anos, o cenário do rio Jaguaribe enfrenta mudanças, conforme explica Luciana dos Santos, marisqueira e membro da Associação Quilombola do Cumbe, em Aracati, a 147 quilômetros de Fortaleza.
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O excesso de chuvas e o escoamento de água do açude “tornou a água do rio mais doce”, descreve, afetando a reprodução dos mariscos. Menos sururu, búzios e ostras significam menos renda para as marisqueiras.
“A gente fala das mudanças climáticas que acontecem hoje no mundo todo e aqui não é diferente. Mas também tem a poluição da carcinicultura”, acrescenta Luciana.
Na região, os criadouros de camarões em tanques são comuns, afetando até mesmo o caminho que as pescadoras percorriam até chegar nos pontos de pesca, tornando-o mais longo.
O cultivo do crustáceo mexe ainda com a água do rio, deixando-a, nesse caso, mais salgada - interferindo no tamanho dos pescados.
Mesmo trabalhando individualmente, as marisqueiras são e dão voz à comunidade atuando na Associação, defendendo seus direitos e se unindo para buscar soluções sustentáveis às mais de 100 famílias que enfrentam de perto essas influências e têm a pesca como recurso direto ou indireto de sobrevivência.
“Se não tiver uma mulher que tá lá dentro do rio, tem o marido que tá trabalhando, que também ajuda nesse processo de pesca”, detalha Luciana dos Santos.
Enquanto lutam pelos seus direitos, os quilombolas se organizaram para propor alternativas, como o turismo comunitário. Atualmente, quatro famílias atuam diretamente na prática e outras participam em diferentes frentes.
As visitas acontecem exclusivamente sob agendamento prévio e as experiências variam. São passeios de barco, trilhas, alimentação e ainda a hospedagem. “E a gente também movimenta a compra do marisco dentro da comunidade”, frisa a marisqueira.
Assim, a alternativa é também uma forma de complementar e valorizar a pesca dentro da comunidade, permitindo que os turistas vivenciem, na prática, todas as etapas, inclusive a degustação dos pratos criados com os mariscos pescados. Além de complementar a renda, frisa a importância da luta pelo direito do território e pela preservação do meio ambiente.
“A gente trabalha mostrando pros visitantes o quanto é importante aquele rio onde as mulheres trabalham, as práticas de mariscagem, fazendo a comida. É um trabalho de fortalecimento das práticas tradicionais que a gente tem no Cumbe, que perpassa por tudo, pelos quintais produtivos, pela mariscagem e assim vai.”
Para agendar, basta entrar em contato pelo instagram do Quilombo do Cumbe (instagram.com/quilombodocumbe) ou pela rede de turismo comunitário, a Rede Tucum (instagram.com/redetucum).
“Às vezes, se fazem leis e as pessoas para quem elas são feitas, não participam (da elaboração)”. A fala é da marisqueira Luciana dos Santos, que sabe na prática que a marisqueira não trabalha só com a pesca.
Ela planta, colhe, faz turismo comunitário… Tudo para aumentar sua renda, já que nem sempre o rio está para peixe - ou marisco. “E aí a gente vai morrer de fome porque a gente não vai poder fazer outra atividade, já que o governo não dá nenhuma assistência, completa.
Confira alguns direitos conquistados e pleiteados pelas marisqueiras
O que elas pleiteiam
O Projeto de Lei 1221/2023, do deputado estadual Renato Roseno (PSOL) estabelece a Política Estadual de Desenvolvimento Socioambiental Sustentável das Atividades das Mulheres Pescadoras no Ceará. A iniciativa visa o acesso a direitos previdenciários e trabalhistas além de reconhecer as condições de saúde dessas profissionais. Lesão de Esforço Repetitivo (LER) e problemas ergonômicos ocasionados pelo agachamento estão entre os listados.
O que já conquistaram
Em 2023, a deputada estadual Larissa Gaspar deu entrada em um pedido para tornar o ofício e a culinária das mulheres marisqueiras como patrimônio cultural imaterial do Estado do Ceará. Em março deste ano, entrou em vigor a Lei Nº 19.197, que reconhece a importância histórica, cultural, social e econômica dessas mulheres para a região, deixando claro.
Cozinhar, compartilhar, comer. Reportagem do O POVO+ mostra práticas, costumes, tradições e saberes que seguem vivos e marcam a identidade cearense.