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As Baías e a resistência da pluralidade artística
Reportagem Seriada

As Baías e a resistência da pluralidade artística

As cantoras Raquel Virgínia e Assucena Assucena, integrantes do trio musical abrem novos caminhos no cenário artístico brasileiro por meio do trio "As Baías"
Episódio 5

As Baías e a resistência da pluralidade artística

As cantoras Raquel Virgínia e Assucena Assucena, integrantes do trio musical abrem novos caminhos no cenário artístico brasileiro por meio do trio "As Baías"
Episódio 5
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“Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor / Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu”. A cantora Assucena Assucena recita os versos de Fernando Pessoa ao descrever o processo de identificação enquanto mulher trans. A integrante do trio “As Baías” sabia que atravessaria a dor e a solidão durante a transição, mas entendia que a coragem de cumprir a “natureza de ser quem se é” traria a conquista do novo. Nordestina, Assucena encontrou na arte, mais precisamente na música e na poesia, força para seguir o processo após um marcante show em homenagem à cantora Amy Winehouse, em 2011.

Raquel Virgínia e Assucena Assucena - As Baias e a Cozinha Mineira. (Foto Remota: Thais Mesquita/OPOVO)(Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Raquel Virgínia e Assucena Assucena - As Baias e a Cozinha Mineira. (Foto Remota: Thais Mesquita/OPOVO)

“Se para pessoas cis um ato de resistência é abandonar o salto, a maquiagem, o que é justo, para as pessoas trans é o contrário. O movimento de resistência vem pela proibição compulsória que foi imprimida durante toda a vida das pessoas trans”, explica ao relembrar o momento de externalização de trejeitos socialmente considerados como femininos. No mesmo ano, Assucena conheceu Raquel Virgínia e Rafael Acerbi na Universidade de São Paulo, com quem idealizou a banda inicialmente nomeada como “As Bahias e a Cozinha Mineira”.

Raquel, sua companheira nos vocais, veio da periferia de São Paulo e gosta de “fazer as coisas acontecerem”. A “estrela maior” da artista é a mãe, uma inspiração de como ser e prosseguir na vida. “A gente faz críticas, analisa, pensa, mas chega uma hora que é: levantei e botei a mão na massa, sabe? É nisso que eu tenho minha mãe como um espelho”, conta. Raquel foca a ação em utilizar o seu local público para oferecer oportunidades para pessoas trans “sem precisar pedir licença”.

 

 

Juntas, Raquel e Assucena, com a parceria constante de Rafael, trilham caminhos prósperos na cena musical brasileira desde o primeiro lançamento oficial da banda, “Mulher”, em 2015. Elas fizeram história na música ao serem as primeiras mulheres trans a conseguiram duas indicações consecutivas ao Grammy Latino, com o disco “Tarântula”, de 2019, e o EP “Enquanto Estamos Distantes”, produzido durante o período de isolamento social rígido em 2020.

O processo musical de reconhecimento, ressaltam as artistas, é importante para que a diversidade artística possa ser legitimada no Brasil. "A gente ainda está no início de uma inclusão e integração real. A gente tem um processo tímido, para que o mercado absorva as pessoas trans, ele tem que ser educado para isso (...) O mercado existe porque é feito por pessoas, e as pessoas precisam dessa educação antes de tudo", frisa Assucena. A educação a respeito da liberdade de gênero é, segundo as vocalistas, primordial para que as vozes trans adentrem as rádios e façam parte das casas brasileiras.

Os caminhos que estão sendo percorridos pelas duas só se tornam possíveis a partir do apoio de outras mulheres. Os maiores espelhos de suas vidas estão na família, como já sinalizou Raquel, e Assucena enfatiza ao citar a avó, a mãe e a irmã. Nas inspirações artísticas, a memória de Gal Costa cantando “Da Maior Importância”, de Caetano Veloso, é vívida, enquanto o repertório cresce com nomes como Bethânia, Elza Soares, Amelinha, Liniker e Linn da Quebrada.

 

 

As mestras, como são chamadas por Assucena, são primordiais no caminho que Raquel encontra para contornar as possíveis dificuldades: colocar beleza no mundo. A sua companheira de grupo afirma que a arte funciona como “farol em tempos sombrios” e é a ferramenta que ambas encontram para conquistar espaços na sociedade. “São degraus de uma justiça social que a gente tá tentando deixar pra posterioridade, pros nossos descendentes trans, porque as minhas ancestrais trans já fizeram isso”, desenvolve Assucena.

A harmonia entre as três existências diversas que compõem “As Baías” resulta em trabalhos com sonoridade múltipla, gerada a partir da escuta ativa nos processos criativos. No último ano, a banda adentrou ainda mais no gênero pop pela vontade de mudança e lançou, em janeiro de 2021, o álbum “Drama Latino”, com participação de Xand Avião, Luísa Sonza, Kell Smith, Cleo e Linn da Quebrada. O trabalho é uma ode à paixão, latinidade e pluralidade. “A gente quis fazer um álbum romântico, assumir um romance de vários ritmos”, explica Raquel.

Raquel Virgínia(Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Raquel Virgínia

O amor, tão defendido e pautado pelas artistas, é chave na relação que elas constroem no decorrer destes anos. “Eu acho que é uma relação muito bonita para a música brasileira, é uma dupla de mulheres trans fazendo música há seis anos, sem parar, isso é muito potente”, diz Raquel sobre a parceria com Assucena. A união das duas potências, uma libriana e outra geminiana, é visível nos palcos e nas trajetórias pessoais das cantoras. Para continuar desbravando mares em outros dias de luta como simboliza este 8 de março, Raquel se espelha na amorosidade e generosidade da companheira baiana, enquanto Assucena encontra o reflexo da paulista em três palavras femininas: inteligência, coragem e força.

 


Lara Montezuma(Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Lara Montezuma

 

Lara Montezuma

Tenho 21 anos, sou estagiária do núcleo de Cultura e Entretenimento do O POVO, faço parte de família formada por muitas mulheres e enxergo na individualidade o reflexo das principais referências femininas: a mãe, avós e tias.

 

 

Thais Mesquita, publicitária e fotógrafa(Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Thais Mesquita, publicitária e fotógrafa

 

 

Thais Mesquita, repórter fotográfica

Sou publicitária, artista, professora e fotojornalista do O POVO. Criada por uma família de mulheres fortes, que fizeram florescer a ideia de união, luta e resistência tão pertinentes em mim.

 

 

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