"É um alívio falar que somos, finalmente, técnicas em desenvolvimento de sistemas", comentam as adolescentes Eduarda Oliveira, 17, e Júlia Lopes, 18 anos, duas das três co-fundadoras da OxenteGirls em Recife (PE). Juntas com Cibele Benício, as nordestinas criaram a equipe para competir em competições de tecnologia. Dois anos depois, a iniciativa cresceu e agora o grupo mostra para mulheres e outros grupos em vulnerabilidade social que a tecnologia também é um espaço de direito para eles e elas.
Duda se apaixonou pela área ainda na escola pública, com um projeto de robótica. Para Júlia, o interesse apenas veio, sem demais estímulos. O ensino técnico garantiu para as estudantes o primeiro contato com a ciência aplicada. "No técnico, nunca observamos tanta desigualdade entre meninos e meninas. Aquilo virou nosso normal. Mas, quando saímos da caixinha, vimos que a coisa é bem diferente", cita Júlia. No instante, Duda relembra que chegou a ir para uma competição fora do País e precisou ser acompanhada por outras duas professoras. O motivo? Dentre os 12 integrantes da equipe, era a única menina preta. "Eu vi que eu tinha de provar duas vezes mais as coisas."
As situações de disparidades sociais foram ficando mais presentes ainda na construção do caminho profissional e estudantil das jovens. As próprias competições, que deveriam ser um espaço de apoio e acolhimento, eram algumas das infelizes validações. "Tinha evento que todo mundo parava para olhar para a gente, porque eram três meninas adolescentes de escola pública onde a maioria do participantes eram homens e adultos. Foi nossa principal dificuldade, mas nossa principal motivação", recorda Júlia.
O OxenteGirls não se intimidou. Teimosas como são, brincam, elas contam que foram ensinadas na base de perceberem um problema e logo buscar soluções para tal. Daí surgiu a ideia de disponibilizar o ensino e ajuda na área da tecnologia com foco, principalmente, em mulheres.
As três estudantes ganharam o primeiro lugar do Nordeste na competição Technovation Challenge, voltada para tecnologia e informação apenas para meninas. Foi desenvolvido na competição o aplicativo Twogether, que visa integrar gestantes com uma pessoa de confiança por meio da ferramenta. Assim, ambos acompanham o período da gestação de forma compartilhada.
Desde 2019 no ramo da tecnologia, Júlia e Duda acumulam conquistas sobre as dificuldades em mulheres desenvolvedoras de tecnologias de inovação no Nordeste. "Aos poucos, vamos observando isso e vimos que todo o ecossistema estava em prol de mais mulheres na área da tecnologia. Isso é um incentivo gigantesco. Quando surgiu o OxenteGirls, achávamos que era uma coisa que ia passar batido", rememora Duda.
Júlia concorda com a amiga, com ressalvas. “Mas ainda há poucas mulheres no mercado. Isso tá relacionado com o fato de não termos esse incentivo em escolas e universidades. Não adianta as empresas incentivarem mais vagas para mulheres se elas se sentem desmotivadas a estudar em um curso onde 80% da sala é formada por homens."
A fala de Júlia foi comprovada com a pesquisa Estatísticas de Gênero - Indicadores sociais das mulheres no Brasil, divulgada este ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quando calculada a proporção de mulheres matriculadas em cursos de graduação presencial, as áreas da Engenharia e da Computação abrangem os menores índices de participação de mulheres no Brasil: 21,6% e 13,3%, respectivamente.
"Embora você veja mulheres no mercado da tecnologia, a maioria não tá em cargo de liderança, não tá sendo presidente"
Uma empresa de Recife disponibilizou uma sala para desenvolvimento dos projetos da OxenteGirls. Com a pandemia, a demanda aumentou: pequenos proprietários vêm buscando as meninas para viabilizar aplicativos e outros atendimentos online, alternativas para driblar o enfraquecimento do comércio.
Porém, a equipe não vem se encontrando para obedecer às medidas sanitárias do Estado, o que inviabiliza o desenvolvimento dos sistemas. Júlia, por exemplo, não tem computador em casa para desenvolver os pedidos tão solicitados. Ambas já se inscreveram para o curso de Engenharia da Computação em uma instituição pública de Pernambuco e aguardam, por ora, o resultado da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Quando questionadas sobre inspirações, as adolescentes respondem: "Nossas professoras", citando carinhosamente Lili e Gabi. "É engraçado porque elas se parecem com a gente: Lili é branca do cabelo liso e Gabi é preta do cabelo bem cacheado. É massa", comemora Duda.
Outras referências são as comunidades de programação, um "clube" que reúne programadores e aspirantes com o mesmo intuito tecnológico. Duda cita o AfroPython, movimento de inclusão e empoderamento de pessoas negras na área de Tecnologia. Júlia destaca comunidades de programação feminina e outras lideranças locais, como a PortoDigital Minas.
O ser líder é outro fator-chave para a dupla. “Embora você veja mulheres no mercado da tecnologia, a maioria não tá em cargo de liderança, não tá sendo presidente”, percebe Júlia. Duda acrescenta que não é por falta de qualificações, mas é difícil promover inclusão quando não há incentivo no mercado. Ainda, cita a dificuldade de encontrar mulheres pretas nas posições. "Falta mais incentivos para vários públicos, incluindo LGBTs. Me parece que as empresas têm um tipo de 'eu aceito, mas vou podar, limitar'".
Esse ponto também é citado na pesquisa do IBGE. A participação feminina em cargos gerenciais vem caindo no Brasil. Pernambuco fica em quarto lugar no ranking de proporções de mulheres no comando de entidades públicas ou privadas. E mesmo sendo mais escolarizadas do que os homens, não recebem o mesmo salário.
“Quem vai querer um trabalho em que você recebe 17% a menos só porque corre o risco de engravidar e ficar alguns meses sem trabalhar? Isso não tem sentido”, lamenta Júlia.
Sob obstáculos e apoios, ambas concordam que a área deve ser mais diversa. "Pensamos que aquela situação é o fim, mas sempre conseguimos uma solução. É o nosso instinto de mulheres que conseguem tudo. Siga firme e apoie outras mulheres. Você é mais forte do que possa imaginar", reforça Duda.
Sou graduanda em Jornalismo pela UFC, tenho interesse pelos estudos de mulheres na comunicação digital e sou grata em seguir compartilhando vivências por meio da mãe, irmã, avós, editoras e amigas — uma rede de apoio essencial para seguir desafiando e mudando a sociedade à minha maneira.
Especial sobre o novo pensamento feminino. Quem são as mulheres que inspiram outras mulheres