Em contraste à experiência brasileira, outros países latinoamericanos têm avançado na discussão sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Neste mês de setembro, o a Suprema Corte do México aprovou a descriminalização do aborto, garantindo que as mulheres do território mexicano possam ter acesso seguro e legal ao procedimento. Além dele, apenas a Argentina, a Cuba, o Uruguai e a Guiana permitem a interrupção da gravidez sem nenhuma restrição na América Latina.
Advogada e pesquisadora na área de direitos humanos relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos, Beatriz Galli considera que o Brasil ainda precisa avançar em aspectos relacionados ao acesso à informação sobre os direitos femininos. A relatora nacional da Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil (Plataforma Dhesca) também considera que falta vontade política brasileira para firmar, definitivamente, a igualdade de gênero no País. Confira a entrevista:
O POVO - Recentemente, o México descriminalizou o aborto, virando o quinto país da América Latina a permitir o procedimento sem nenhuma restrição. Como a senhora analisa esse cenário?
Beatriz Galli - Eu acho que é uma tendência crescente os países revisarem, cada vez mais, as suas legislações em relação ao aborto pra tentar ampliar o acesso das mulheres à interrupção da gestação de forma segura. No caso do México, foi uma decisão importante, já que lá é um pouco diferente daqui. No México, cada estado tem uma legislação própria em relação ao aborto, então ter uma decisão no âmbito da Suprema Corte é importante porque é uma diretriz. No sentido de que as autoridades dos estados devem então modificar suas legislações para poder se adequar a esse precedente da jurisprudência, e uniformizar a legislação em todo o país.
Mas nós também vemos algumas tentativas de retrocesso em alguns países. Mais recentemente, um país que de fato houve um retrocesso foi em Honduras, que fez uma reforma legal na qual se incluiu um artigo na Constituição proibindo, inclusive, a possibilidade futura de revisão da legislação em relação ao aborto. E isso aconteceu muito em reação a legalização do aborto na Argentina (em janeiro de 2021). Foi logo depois. Então foi introduzida essa reforma legislativa para tentar barrar qualquer reforma futura da legislação. Isso é muito preocupante, mas é uma iniciativa minoritária.
O POVO - Quando falamos sobre aborto legal e acesso integral a métodos anticoncepcionais, quais aspectos dos direitos humanos são abordados?
Beatriz Galli - Olha, esses direitos são direitos humanos e fazem parte dos direitos chamados sexuais e reprodutivos, principalmente reconhecidos a partir da década de 90, na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo. O documento final dessa conferência foi chamado de Programa de Ação do Cairo e estabeleceu o que seria o conceito de saúde reprodutiva - um estado geral de bem-estar físico, mental e social -, além de estabelecer que a saúde reprodutiva inclui a capacidade de desfrutar de vida sexual satisfatória e sem risco. Assim como o direito à liberdade pra decidir se procriar ou não e com que frequência. Isso inclui, por exemplo, o direito a obter informações e acesso a métodos seguros e eficazes acessíveis da escolha dos homens e mulheres, e também o direito de receber serviços de saúde adequados que permitam uma gravidez de partos sem risco.
No Brasil, a gente tem garantido os direitos sexuais e reprodutivos a partir dos direitos da Constituição. Inclusive, o direito ao planejamento familiar é previsto na nossa Constituição, o direito de decidir livremente sobre o número de filhos, um espaçamento entre eles e receber informação, educação e os meios pra que se possa decidir. Tudo livre de qualquer tipo de discriminação, coerção e violência. Então isso é importante, porque a gente sabe que têm contextos em que as mulheres vivem situações de discriminação, de coerção e de violência que impede que elas possam exercer esses direitos.
O POVO - No Brasil, o aborto é permitido em casos de estupro, perigo de vida para a mãe e quando o feto tem anencefalia. Mas sabemos que o acesso ao aborto, mesmo dentro dos padrões legais, é muito complicado no País. O que a senhora considera que causa esse cenário?
Beatriz Galli - No Brasil a gente tem um problema sério: as pessoas não têm conhecimento sobre os seus direitos. As mulheres não têm acesso a essa informação de quando podem interromper a gestação legalmente. Então campanhas de informação seriam necessárias para a população, que os próprios serviços de saúde deveriam estar promovendo quando elas buscam assistência.
Além disso, eu acho que tem também um esforço, às vezes por parte de grupos que são contrários aos direitos sexuais e reprodutivos, de barrar o acesso a informação. Por exemplo, essa lei que foi aprovada agora pela Prefeitura de Fortaleza é uma lei que eu chamo de um desserviço, porque ela gera desinformação em relação aos direitos sexuais e reprodutivos. E a gente sabe que se você tem uma legislação que criminaliza o aborto, aumenta-se o número de abortos realizados em condições de insegurança e clandestinidade. Não faz com que as pessoas parem de fazer aborto, isso já tem pesquisas científicas mostrando. Ao contrário, quando você tem uma lei mais progressista em relação ao aborto, a tendência é que os números de abortos diminuam no longo prazo.
"Cria-se o clima de desinformação, como se a gente tivesse uma legislação que fosse mais regressiva do que a gente tem de fato."
A gente também tem hoje um número insuficiente de serviços de saúde que realizam o aborto nos casos previstos em lei, e esse número vem decrescendo nos últimos anos. E a maioria está localizada nas capitais, então as mulheres e adolescentes que moram no interior, por exemplo, têm que ir até a capital para conseguir ter acesso ao serviço. Além de que a maioria dos profissionais desses serviços se recusam a realizar, alegando diversos motivos e isso também adiciona mais uma barreira paras mulheres.
Esse cenário é de acesso insuficiente, de falta de informação e principalmente de falta de vontade política por parte eu acho os governantes, das autoridades em garantir o direito que existe em lei. Cria-se o clima de desinformação, como se a gente tivesse uma legislação que fosse mais regressiva do que a gente tem de fato. No Brasil, existe sim a possibilidade de interromper a gestação. Mas a gente age, por parte dos nossos políticos, como se nossa legislação não permitisse.
O POVO - Como o cerceamento do direito reprodutivo afeta a vida das mulheres e da sociedade?
Beatriz Galli - Muitas vezes, as pessoas não têm a dimensão da importância de garantir os direitos sexuais e reprodutivos para a vida das mulheres e parece que é uma questão apenas de saúde. Você comentou sobre ter ou não ter filhos, mas a gente sempre fala, dentro da área, de que na verdade esses direitos são pré-condição pro exercício de outros direitos. Se a mulher não tem condição de decidir quando é o melhor momento de ter ou não ter filho, isso vai encaminhar a vida dela em uma direção, de repente, totalmente diferente do que ela gostaria. Porque ela vai ser, em um país em que o aborto não é permitido, obrigada a levar adiante uma gravidez contra a sua vontade. E impedida de dizer sobre o melhor projeto de vida que ela queira ter no futuro.
Isso impede a mulher de exercer outros direitos. Como ter uma participação maior na vida política. Podendo, por exemplo, contribuir de alguma forma economicamente com o sustento da sua família. Ou escolher um tipo de trabalho que ela gostaria de ter que, às vezes, naquele momento ela não gostaria de levar uma gravidez adiante. É mais do que só a questão da saúde, é uma questão de fazer escolhas de acordo com o seu estilo de vida e, às vezes, com os seus ideais também.
Então esses são direitos fundamentais, que determinam o futuro da vida das meninas, das mulheres e das pessoas que podem ficar grávidas, como homens trans.
O POVO - Um dos objetivos de desenvolvimento sustentável definido pela Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), é o da igualdade de gênero. Como esse fator é considerado na análise de desenvolvimento humano dos países?
Beatriz Galli - A igualdade de gênero é fundamental nessa discussão. Os países onde existem maior igualdade de gênero terão leis que não discriminam as mulheres. Uma lei que criminaliza o aborto é uma lei discriminatória, porque ela tem um impacto diferenciado na vida das mulheres e na saúde das mulheres. Nesses lugares, as mulheres correm um risco maior, por exemplo, de morrerem por aborto inseguro. Então você cria condições para a igualdade de gênero quando você tem leis e políticas que garantem o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. É um indicador para a igualdade de gênero.
No caso do Brasil, nós estamos longe de alcançar a meta em relação à redução da mortalidade materna, que é um outro indicador. E isso tem relação direta com a lei em relação ao aborto que nós temos, porque uma lei que criminaliza, uma lei mais restritiva, leva a mortes maternas evitáveis por aborto inseguro. E a gente infelizmente está andando para trás em relação à igualdade de gênero. Um exemplo é toda essa discussão de acesso à educação sexual nas escolas, com leis municipais que tentam impedir o acesso à educação sexual com base na "ideologia de gênero".
O POVO - Como fazer para as pessoas compreenderem a dimensão básica e fundamental dos direitos reprodutivos e sexuais?
Beatriz Galli - Olha, eu acho que quando as pessoas passam a ver o impacto disso na vida das pessoas próximas a elas, elas começam a repensar. Quando a discussão é só teórica, de valores, fica muito fácil você dizer que é contra o aborto. É uma discussão vazia, porque ninguém é contra ou a favor. As pessoas, às vezes, se veem em situações em que elas querem interromper uma gestação por questões pessoais ou circunstâncias de vida. Então assim, qualquer tentativa de pré-julgamento em relação a isso é uma artificialidade, porque estamos lidando com questões de vida que dependem de cada circunstância pessoal.
Quando as pessoas param para pensar que essa lei pode criminalizar pessoas próximas a elas, elas começam a repensar se realmente o aborto deve ser tratado como crime. Porque é uma questão de saúde pública. Gera morte, gera sequelas para a saúde das mulheres, gera desigualdade, gera injustiça social. E afeta mais as mulheres que estão mais empobrecidas, as mulheres negras, as mulheres indígenas, as mulheres que vivem nas áreas rurais, que têm menos acesso a informação e a serviço de saúde.
"É querer obter mais uma lei que criminaliza as mulheres, uma legislação igual a de países como da América Central, onde as mulheres podem ser presas por 40 anos por terem cometido um aborto."
Tudo isso tem que ser levado à discussão. Deve haver mais debates sobre isso, devem ser promovida campanhas sobre esses temas, para que as pessoas possam ter mais elementos para poderem se posicionar em relação a esses temas. Na verdade, ninguém é contra a vida, todo mundo é a favor da vida. Uma semana pela vida é importante, mas se a gente discutir o que está por trás da Semana pela Vida, o que está por trás de ser contra o aborto...
É querer obter mais uma lei que criminaliza mais as mulheres, uma legislação igual a de países como da América Central, onde as mulheres podem ser presas por 40 anos por terem cometido um aborto, por terem tido uma emergência obstétrica na hora do parto. Então assim, tudo isso a gente tem consequências. Eu acho que isso sim deve ser levado ao debate público.
O POVO - Considerando o fervor da discussão sobre a descriminalização do aborto em outros países da América Latina, a senhora acredita que o Brasil está perto de ao menos restringir menos o aborto?
Beatriz Galli - Nós temos uma possibilidade concreta de mudança na legislação através do Supremo Tribunal Federal. Tem uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 que propõe a legalização do aborto até a 12ª semana. Então talvez a gente possa, de fato, ter uma mudança em relação a legislação via STF. Agora, pode levar anos.
Essas coisas levam tempo, então talvez aqui no Brasil a gente ainda leve algum tempo até, por exemplo, essa ação ser julgada. Mas pelo menos isso já está sendo debatido, e eu acho que a gente até avançou muito em termos de debate público. Eu acho que estamos avançando, sim, mas em passos ainda muito lentos comparado com outros países da América Latina.
Como o acesso pleno aos direitos reprodutivos da mulher e de pessoas que podem engravidar é dificultado pelo Estado