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Sem saída: como o Estado impede as mulheres de controlarem o próprio corpo
Reportagem Seriada

Sem saída: como o Estado impede as mulheres de controlarem o próprio corpo

Lei sancionada pelo prefeito de Fortaleza José Sarto (PDT) expõe os fundamentalismos impostos às mulheres quando o assunto é direitos reprodutivos
Episódio 1

Sem saída: como o Estado impede as mulheres de controlarem o próprio corpo

Lei sancionada pelo prefeito de Fortaleza José Sarto (PDT) expõe os fundamentalismos impostos às mulheres quando o assunto é direitos reprodutivos
Episódio 1
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Alguma mulher que você conhece já sofreu um aborto. Independente das condições: se clandestino em alguma clínica mais profissionalizada, se induzido com remédios, se introduzindo objetos pelo canal vaginal, se com agressões externas, se legalmente… Não importa. De alguma maneira, alguma mulher que você conhece já teve um aborto.

Mais exatamente, uma em cada cinco mulheres brasileiras já induziram pelo menos um aborto na vida. A tendência é ainda maior entre as adolescentes e jovens adultas (29% entre as meninas de 12 a 19 anos e 28% entre as de 20 a 24 anos). É o que indicam os dados da Pesquisa Nacional de Aborto 2016.

A Câmara dos Deputados da Argentina aprovou em janeiro de 2021 um projeto de lei para legalizar o aborto.(Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP)
Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP A Câmara dos Deputados da Argentina aprovou em janeiro de 2021 um projeto de lei para legalizar o aborto.

Ao mesmo tempo, 28,2% das mulheres entre 15 e 49 anos usavam anticoncepcional oral em 2014, segundo dados da Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (Pnaum). Ainda que existam outros tipos de anticoncepcional, o oral é um dos mais comuns entre as brasileiras. A taxa de uso do País é superior à da América Latina e Caribe (de 24%).

Ambas as questões envolvem a possibilidade de quando e como dizer “não” ou “sim” para a maternidade. No entanto, o que era para ser simples e um direito fundamental das mulheres, vira ferramenta de coerção nas mãos de Estados fundamentalistas há séculos - como no Brasil.

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No dia 10 de setembro, o prefeito de Fortaleza José Sarto (PDT) sancionou a Lei nº 11.159, que instituiu a “Semana Pela Vida”, uma campanha contra o aborto e disposta a divulgar os malefícios dos anticoncepcionais. Pode parecer simples, mas o dispositivo abre brechas para diversas interpretações de uso da campanha.

A repercussão foi tanta que o prefeito Sarto recuou quatro dias após a publicação da lei, incluindo o dever do município em esclarecer à população sobre as políticas públicas e direitos de acesso a métodos contraceptivos.

 


“É um plano de governo”, define a advogada Patrícia Marxs, mestranda em Direito na Unichristus com pesquisa sobre justiça de gênero e direitos reprodutivos, destacando que projetos similares têm sido aprovados em outros estados.

Para entender o imbróglio legal aprovado pelo prefeito José Sarto e seus efeitos, é preciso compreender conceitos de direitos reprodutivos, direitos humanos, dignidade e escolha. Vamos lá:

 
 

Direitos reprodutivos são direitos fundamentais

 

Os direitos reprodutivos consistem, basicamente, em fazer uso dos conhecimentos e recursos existentes (sejam eles farmacológicos, físicos ou comportamentais) para poder planejar e controlar a fertilidade. Muito mais do que constituir uma família, eles consistem em um fator essencial para o planejamento pessoal e de futuro. Portanto, eles abrangem tanto as pessoas que querem e as que não querem ter filhos.

Especialmente para as mulheres (e outras pessoas com útero, como homens trans e pessoas não-binárias), os direitos reprodutivos significam autonomia e liberdade.

Há séculos, a maternidade tem sido imposta compulsoriamente a elas; em alguns casos, a própria identidade como mulher estava atrelada à da mãe. Por outro lado, mulheres de grupos marginalizados - como negras, indígenas e mulheres em situação de rua - já viveram casos de esterilização compulsória no Brasil e em outros cantos do mundo.

Defensores da legalização do aborto participam de uma manifestação no âmbito do Dia Internacional do Aborto Seguro, em Guadalajara, México, em setembro de 2020(Foto: ULISES RUIZ / AFP)
Foto: ULISES RUIZ / AFP Defensores da legalização do aborto participam de uma manifestação no âmbito do Dia Internacional do Aborto Seguro, em Guadalajara, México, em setembro de 2020

Em 1990, por exemplo, 43,9% das mulheres que usavam algum método contraceptivo no Brasil estavam esterilizadas - boa parte delas era do Norte e Nordeste do País, regiões com maior população negra. O dado é destacado no artigo Direitos reprodutivos e racismo no Brasil, da pesquisadora Edna Roland, uma das fundadoras do Geledés Instituto da Mulher Negra.

Assim, os direitos reprodutivos das mulheres não foram, e ainda não o são, respeitados em sua integridade. Acontece que negar a oportunidade de definir o próprio futuro reprodutivo afeta a saúde física e mental das mulheres, assim como as possibilidades de acesso à educação e ao trabalho.

Além disso, é uma quebra de vários direitos humanos, como defendem as pesquisadoras Diya Uberoi, Maria de Bruyn e Beatriz Galli: direito à vida; à não-discriminação e igualdade; à saúde; à informação e aos benefícios do progresso científico; à privacidade e à decisão quanto ao número e espaçamento de/entre crianças; e liberdade contra o tratamento cruel, inumano e degradante.

Mesmo atentando contra tantos direitos básicos, os governos insistem em restringir e estigmatizar as informações sobre métodos contraceptivos e direitos femininos; em muitos casos, a motivação vem de fundamentalismos religiosos. Não parece ser coincidência que a autoria do projeto de lei da Semana pela Vida seja do vereador Jorge Pinheiro (PSDB), que têm pautas centradas no catolicismo, “contrárias ao aborto, em apoio à família e no combate à ‘ideologia de gênero’”.

Marcha contra o aborto, em novembro de 2019, na Av. Beira mar.(Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima Marcha contra o aborto, em novembro de 2019, na Av. Beira mar.

 

 

Generalizando os métodos contraceptivos

 

Camisinha, pílula anticoncepcional, dispositivo intrauterino (DIU), laqueadura, vasectomia… Todos são métodos contraceptivos (também chamados anticoncepcionais) com diferentes abordagens e taxas de falha. Então, o que seriam os “malefícios médicos e psicológicos da utilização de anticoncepcionais”?

“É um dispositivo frágil, que coloca no mesmo saquinho aborto e métodos anticoncepcionais. Além de generalizar, sem discriminar a qual anticoncepcional se refere”, analisa a advogada Patrícia.

“Trazer possíveis campanhas sobre possíveis malefícios à saúde da mulher dos métodos contraceptivos seria propagar desinformação”, ressalta a ginecologista e sexóloga Rayanne Pinheiro. “Nós temos uma gama de métodos contraceptivos muito seguros para a saúde da mulher, com segurança comprovada. E que vão propiciar para a mulher uma saúde mental de estar segura contra uma gravidez indesejada, de estar tranquila para exercer a sua sexualidade de forma plena, autônoma”, diz.

Em 11 de dezembro de 2020, manifestantes comemoram com lenços verdes - o símbolo dos ativistas pelos direitos do aborto (Foto: AFP)
Foto: AFP Em 11 de dezembro de 2020, manifestantes comemoram com lenços verdes - o símbolo dos ativistas pelos direitos do aborto

Ela destaca como o investimento em métodos contraceptivos de longa duração na cidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, reduziu as taxas de aborto provocado em 75%. Já o México, que recentemente decidiu pela descriminalização do aborto, reduziu para 36% a taxa de gestações não planejadas com um programa que ampliou acesso ao dispositivo intrauterino (DIU) e implantes. 


"Trazer possíveis campanhas sobre possíveis malefícios à saúde da mulher dos métodos contraceptivos seria propagar desinformação." Rayanne Pinheiro, ginecologista e sexóloga

 

No Brasil, apesar da legislação prover pelo Sistema Único de Saúde (SUS) o acesso a métodos contraceptivos variados, a prática é mais dura. A advogada Patrícia Marxs, também ativista de direitos reprodutivos pelo Instagram @laqueadurasemfilhossim, relata que a própria experiência e a das seguidores é de escassez de anticoncepcionais nos postos de saúde, demora de meses no encaminhamento das mulheres e, às vezes, ausência de ginecologistas.

Ainda, nenhum método é 100% confiável. Apesar de todos os cuidados, é possível que gestações indesejadas aconteçam, sem culpa nenhuma (se é que esse é o problema) das mulheres. Como proceder em situações do tipo?

 

 

 

O polêmico aborto e a coerção do Estado

 

“Eu costumo dizer que você só tem escolha quando há ao menos duas opções. Caso contrário, é coerção”, comenta Patrícia. No Brasil, o aborto é permitido apenas em três ocasiões: gestação oriunda de um estupro; gestação que põe em risco a vida da mulher; e gestação de um feto com anencefalia (sem cérebro). Em qualquer outro cenário, o aborto é crime com pena de detenção de um a três anos para a mulher, e um a quatro anos para a pessoa que realizar o procedimento.

Em nenhuma das situações há uma escolha na íntegra. Quase literalmente, as opções estão entre a vida ou a morte. E quando se engravida sem planejamento - seja porque o método contraceptivo falhou ou porque nunca se teve acesso a ele -, também não há escolha. É parir ou ser presa. Não à toa, a terceira via é forçada: abortos clandestinos e inseguros, que podem causar até a morte da mulher.

 

 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 4,7% a 13,2% dos óbitos maternos anuais podem ser atribuídos ao aborto inseguro. “A grande maioria dos abortos inseguros acontecem em países onde há barreiras para o acesso ao planejamento reprodutivo ou onde as leis para acesso a interrupção de gestação são mais restritivas”, descreve a ginecologista e sexóloga Débora Britto.

No entanto, a probabilidade de mulheres engravidarem de forma indesejada e tentarem induzir um abortamento é praticamente a mesma, independente do país. É por isso, opina Débora, que a grande discussão deve envolver em quais condições e quem está realizando o aborto. Nesse sentido, o Estado deveria garantir a segurança e a saúde das suas cidadãs, considerando os direitos humanos à vida e à saúde.

A Câmara dos Deputados da Argentina aprovou em janeiro de 2021 um projeto de lei para legalizar o aborto.(Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP)
Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP A Câmara dos Deputados da Argentina aprovou em janeiro de 2021 um projeto de lei para legalizar o aborto.

Além disso, se o Brasil permite o aborto em pelo menos três situações, o dever do Estado é promover este conhecimento - não o contrário. “Você legisla em cima do que é legal. Se o aborto é proibido em outras ocasiões, então ele não existe [no momento de legislar]”, explica a advogada Patrícia Marxs.

Ou seja: considerando a legislação brasileira, promover campanhas contra o aborto não faz sentido, porque ele é permitido com restrições. Assim, a campanha poderia ser interpretada como inconstitucional.

 

 

“Quando a discussão é só teórica, de valores, fica muito fácil você dizer que é contra o aborto. É uma questão vazia, porque ninguém é contra ou a favor”, reforça a advogada Beatriz Galli, pesquisadora na área de direitos humanos relacionados a direitos sexuais e reprodutivos e relatora nacional da Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil (Plataforma Dhesca).

“As pessoas, às vezes, se veem em situações em que elas querem interromper uma gestação por questões pessoais ou circunstâncias de vida. (Logo,) Qualquer tentativa de pré-julgamento em relação a isso é uma artificialidade”, completa.

>> No próximo episódio, a advogada Beatriz Galli analisa os cenários de descriminalização do aborto na América Latina, além de destacar a fundamentalidade dos direitos das mulheres.

 
 

Expediente

  • Edição Fátima Sudário
  • Texto Catalina Leite
  • Edição de arte Cristiane Frota e Isac Bernardo
  • Concepção visual Isac Bernardo
  • Recursos digitais Catalina Leite
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