Logo O POVO+
Direito de não reproduzir: uma história de obstáculos, preconceitos e avanços
Reportagem Seriada

Direito de não reproduzir: uma história de obstáculos, preconceitos e avanços

Garantias dos direitos reprodutivos contribuem para a saúde e a autonomia de todas as pessoas, principalmente sobre a decisão de querer ou não ter filhos, além de dar mais liberdade na vida sexual, contribuindo para saúde reprodutiva
Episódio 3

Direito de não reproduzir: uma história de obstáculos, preconceitos e avanços

Garantias dos direitos reprodutivos contribuem para a saúde e a autonomia de todas as pessoas, principalmente sobre a decisão de querer ou não ter filhos, além de dar mais liberdade na vida sexual, contribuindo para saúde reprodutiva
Episódio 3
Tipo Notícia Por

 

 

Seguir o roteiro de namorar, casar e ter filhos nem sempre é uma escolha de todas as pessoas, mesmo que a sociedade, muitas vezes, imponha esses padrões como meta para a felicidade pessoal. O roteiro parece natural para algumas, mas nem todas têm o desejo de obrigatoriamente seguir esses caminhos: algumas têm o desejo de não ter filhos e ter autonomia sobre a vida própria reprodutiva.

A decisão que, muitas vezes, significa sofrer discriminação social, não costuma ser bem aceita no ambiente familiar e até no campo médico, apesar de ser uma autonomia da mulher e do homem a escolha sobre a sua vida reprodutiva. Além disso, os direitos reprodutivos permitem que, principalmente, as mulheres tenham condições de planejar se terão filhos ou não.

Direitos reprodutivos(Foto: Designed by Freepik)
Foto: Designed by Freepik Direitos reprodutivos

A decisão de não reproduzir engloba, muitas vezes, uma série de posicionamentos e desejos pessoais de cada mulher, assim como de homens. Com a garantia dos direitos reprodutivos, as pessoas podem ter mais controle sobre sua vida reprodutiva e sexual, o que deve ocorrer com o acesso ao planejamento familiar.

De acordo com o Ministério da Saúde (MS), o planejamento familiar é dar à família o direito de ter quantos filhos quiser, no momento que lhe for mais conveniente, com toda a assistência necessária para garantir isso integralmente. Para o exercício do direito, devem ser oferecidos métodos e técnicas de concepção e contracepção que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantindo a liberdade de opção. 

A lei de planejamento familiar também estabelece as regras de esterilização cirúrgica, e apesar do desafio da aceitação da não reprodução, alguns avanços nesse tema já podem ser notados. No Ceará, quase 6 mil procedimentos de laqueadura tubária foram realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de 2018 a julho de 2022, com destaque para 2019, que registrou 1,5 mil cirurgias. O método consiste na ligadura ou no corte das trompas uterinas, canais que ligam os ovários ao útero.

O cenário da esterilização voluntária também se aplica aos homens. Nos últimos cinco anos, 2,8 mil cirurgias de vasectomia foram realizadas no Ceará. Também em destaque para 2019, onde 799 vasectomias foram feitas na rede pública de saúde.

O número total de cirurgias de esterilização nos homens, no entanto, não chega ao dobro dos procedimentos femininos realizados no mesmo período no Estado. Os dados são do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), do MS.

 

 

Laqueaduras e vasectomias feitas pelo SUS (2018-2022)


Para o psicólogo e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Jorge Lyra, que coordena o núcleo de pesquisas feministas em Gênero e Masculinidades da UFPE (Gema), a diferença entre o quantitativo das cirurgias masculinas e femininas está relacionado com efeitos dos estereótipos de gênero sobre os cuidados e as escolhas reprodutivas.

É um imaginário que recai na história da própria cirurgia de vasectomia. “Mito que se cria da própria cirurgia, como se você fosse ficar broxa porque fez a vasectomia. Também tem todo um processo de convencimento do contrário porque é muito jovem, ou era muito bonito, ele não tinha filho ainda, de boa parte da instituição, da parte do médico, e o plano cultural tem todo esse machismo também. Além disso, é interessante olhar também quanto o SUS paga por laqueadura e por vasectomia”, analisa.

 

 

Laqueadura e outros métodos contraceptivos

A reivindicação sobre o direito reprodutivo é uma pauta iniciada pelo movimento feminista que conquistou, recentemente, um avanço na autonomia dos corpos das mulheres sobre o desejo de não ter filhos. No dia 2 de setembro, foi sancionada, pela Presidência da República, a Lei 14.443, de 2022, que altera a lei do planejamento familiar, de 1996.

Ela diminui de 25 para 21 anos a idade mínima de homens e mulheres para a realização de esterilização voluntária. O texto também dispensa o consentimento do cônjuge para o procedimento tanto da laqueadura como da vasectomia. A lei entrará em vigor em março de 2023 após 180 dias da sua sanção.

Para a ginecologista, supervisora da residência médica da Escola de Saúde Pública do Ceará e integrante da Rede Feminista de Ginecologia e Obstetrícia (RFGO), Liduina Rocha, o principal avanço da lei está na autonomia do direito reprodutivo de mulheres e homens, principalmente por dispensar o consentimento do cônjuge para os procedimentos. Anteriormente, era necessário a mulher ter 25 anos ou dois filhos e o consentimento do parceiro para a cirurgia.

Liduina Rocha, ginecologista, supervisora da residência médica da Escola de Saúde Pública do Ceará(Foto: Aurelio Alves/ O POVOS)
Foto: Aurelio Alves/ O POVOS Liduina Rocha, ginecologista, supervisora da residência médica da Escola de Saúde Pública do Ceará

“A não necessidade igual do cônjuge ou da cônjuge é um aspecto que eu acho o mais importante no avanço dessa lei. Existe uma construção cultural muito forte que é a confusão entre ser mulher e ser mãe. A maternidade é quando ela é uma escolha, tem uma potência imensa e é revolucionária, mas ela precisa ser um escudo. Infelizmente, nós estamos no país em que cerca de 60% das gestações são mal planejadas”, disse Liduina.

Cerca de 62% das mulheres já tiveram pelo menos uma gravidez não planejada no Brasil. Esse índice foi revelado por uma pesquisa da Bayer, em parceria com a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e realizada pelo Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec). A pesquisa foi realizada entre agosto e setembro de 2021 e ouviu mil mulheres que já engravidaram. As participantes, das classes sociais A, B e C, residentes em todas as regiões do Brasil, foram entrevistadas on-line sobre gestação e acesso aos métodos contraceptivos. Os dados foram revelados em dezembro do ano passado.

Ainda segundo o texto da lei, é mantido o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico. Nesse tempo, a pessoa poderá acessar o serviço de regulação da fecundidade, com o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, para possibilitar ao paciente uma eventual desistência do procedimento. Por outro lado, a proposição inova ao permitir à mulher a esterilização cirúrgica durante o período de parto.

Para a ginecologista Liduina Rocha, a orientação é necessária desde que não dificulte o acesso ao procedimento. “Eu acho que esse tempo de 60 dias, entre a manifestação do desejo e o ato cirúrgico, é período para se pensar, já que a gente está falando de um método definitivo, e hoje a gente tem vários métodos de longa duração que são tão eficazes quanto laqueados”, comenta.

 

"A maternidade é quando ela é uma escolha, tem uma potência imensa e é revolucionária, mas ela precisa ser um escudo. Infelizmente, nós estamos no país em que cerca de 60% das gestações são mal planejadas"

 

Ainda segundo a especialista, a orientação multidisciplinar envolve diversos profissionais, como médicos ginecologistas e obstetras, assistentes sociais e psicólogos.

“A gente tenta ouvir as mulheres e os homens a partir das suas necessidades e construir um diálogo ao longo desse período. É uma construção de diálogo interdisciplinar e muito profissional no sentido de que as pessoas reflitam sobre a sua escolha e tenham convicção de que é isso mesmo, e que suas escolhas sejam respeitadas e acolhidas”, pontua.

No caso das mulheres que queiram ter filhos após a cirurgia de laqueadura, Liduina explica que existe a possibilidade de retenção cirúrgica do procedimento. No entanto, dependendo de como foi feito e de quanto tempo o procedimento foi feito, há menor possibilidade de reversão. Há ainda outros métodos, como reprodução assistida de fertilização in vitro.

Em relação à vasectomia, há possibilidade de reversão, mas a taxa de sucesso da cirurgia de reversão pode variar, a depender também do tempo do procedimento e como ele foi feito. 

 

 

Confira os métodos contraceptivos criados em cada época

(Fonte: Ministério da Saúde)

 

 

“Sempre tive aversão a ter filhos”

O desejo de não ter filhos da médica veterinária Rebeca Frota, 31, vem, segundo ela, desde de sempre. E, apesar de utilizar diversos métodos contraceptivos para não engravidar, como anticoncepcionais e preservativos, sempre tinha receio de ter uma gravidez indesejada. “Eu sempre tive meio que aversão de ter filhos. Eu cheguei a fazer três métodos em conjuntos que era o DIU cobre, anticoncepcional e o preservativo, mas ainda tinha o receio da questão de engravidar”, comenta.

Ainda segundo Rebeca, ela nunca foi atrás de um procedimento irreversível para não engravidar devido ao julgamento da sociedade, principalmente da rede médica. “Eu me afeto com a questão dos outros darem pitaco na minha vida. E médicos são bastante complicados porque a maioria são conservadores. Eles querem que as mulheres não tirem nada e não façam nenhum procedimento mais concreto nisso. Eu nunca fui atrás antes de uma laqueadura ou uma histerectomia porque achava que era bem mais complicado de conseguir”, disse.

A oportunidade, como ela traduz, para concretizar esse desejo e evitar a reprodução indesejada veio apenas após ser diagnosticada com endometriose, doença inflamatória crônica causada pelo crescimento anormal de células do endométrio fora do útero, há cerca de um ano. Apesar de realizar um tratamento contra a doença, foi necessário fazer uma cirurgia para endometriose.

 

"... não queria de jeito nenhum um filho, a todo momento de relação sexual ou de alguma coisa que eu projetar com a relação sexual eu já caía no meu medo de engravidar e ter que lidar com isso. Então, pensar que eu não tenho mais isso é muito libertador"

 

Durante os procedimentos para o tratamento da doença, a médica veterinária conta que resolveu solicitar a cirurgia de histerectomia, onde ocorre a remoção do útero. Para a sua surpresa, o desejo foi aceito sem nenhum julgamento do campo médico. Os procedimentos para a doença e para a esterilização voluntária foram realizados no mesmo dia, em agosto deste ano.

“Eu aproveitei essa chance pra ter o meu final feliz. Tanto eu como meu esposo também não quer ter filhos. Mas, de fato, seria uma decisão muito mais autônoma, mas eu contei com o apoio dele, claro. E da minha família foi mais uma aceitação”, disse.

Rebeca Frota, médica veterinárias, nunca quis ter filhos. Após o diagnóstico de endometriose, decidiu por uma histerectomia
Rebeca Frota, médica veterinárias, nunca quis ter filhos. Após o diagnóstico de endometriose, decidiu por uma histerectomia (Foto: AURÉLIO ALVES)

A médica veterinária lembra que ser recebida por profissionais que aceitassem sua decisão de optar por métodos para não engravidar sem questioná-la ou fazer julgamentos proporcionou à ela, pela primeira vez, o sentimento de que ela realmente estava no comando do seu corpo e da sua vida.

Para ela, hoje, após o procedimento concretizado, o sentimento é de liberdade na sua vida reprodutiva e sexual. “Posso dizer que tornou extremamente mais leve a questão da minha vida, de receios, porque como eu não queria de jeito nenhum um filho, a todo momento de relação sexual ou de alguma coisa que eu projetar com a relação sexual eu já caía no meu medo de engravidar e ter que lidar com isso. Então, pensar que eu não tenho mais isso é muito libertador”, pontua.

 

 

O que muda com a legislação aprovada

Olga Loiola, advogada e membro da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Ceará (OAB-CE)(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Olga Loiola, advogada e membro da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Ceará (OAB-CE)

Antes da nova regra para o procedimento de esterilização voluntária, pessoas casadas precisavam ter ao menos 25 anos ou dois filhos, além da autorização do cônjuge, para fazer o procedimento. Os solteiros só podiam passar pela esterilização depois dessa idade e se já fossem pais.

Conforme Olga Loiola, advogada e membro da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Ceará (OAB-CE), a mudança na legislação da Lei 14.443, de 2022, altera a lei do planejamento familiar, de 1996.

A idade mínima para a realização da laqueadura ou da vasectomia caiu para 21 anos e não há mais a exigência de ter filhos nem consentimento do cônjuge. Já homens e mulheres com dois filhos podem passar pela esterilização voluntária em qualquer idade. “Observado um prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade, que já tinha antes, e por último a esterilização cirúrgica da mulher ou do homem”, disse Olga. 

 

Laqueadura e vasectomia: saiba o que é

Além disso, o Sistema Único de Saúde (SUS) terá o prazo de 30 dias para oferecer métodos contraceptivos após o pedido oficial do procedimento. A nova regra proporciona outros benefícios às mulheres. Agora, elas podem fazer a laqueadura logo após o parto, sem precisarem comprovar que teriam riscos à saúde com uma nova gravidez.

No entanto, a lei, apesar de aprovada, só entra em vigor após 180 dias depois de sancionada, o que ocorreu no último dia 2 de setembro. A previsão é que em março de 2023 o texto entre em prática no Brasil.

A advogada da OAB-CE explica que o prazo ocorre para que o estado se organize para prestar esse serviço e que a lei seja, de fato, cumprida. “Esse período serve para essa organização. Como existem políticas públicas envolvidas, o estado precisa se preparar para, sobretudo o poder executivo, fornecer e servir o que a lei deve cumprir”, explica Olga.

 

 

Como solicitar a esterilização voluntária

Para fazer uma laqueadura ou vasectomia, até que a nova legislação entre em vigor, é necessário ainda ter mais de 25 anos ou pelo menos dois filhos. Conforme orientação do Ministério da Saúde, a pessoa deve ir a uma Unidade Básica de Saúde (UBS) que tenha atendimento ginecológico ou de planejamento familiar e iniciar o atendimento acerca dos procedimentos para esterilização.

Na ausência de atendimento ginecológico ou urológico na UBS, é necessário pedir um encaminhamento para algum hospital que faça o planejamento familiar. Em ambos os locais, após a manifestação da vontade do procedimento, o paciente deve aguardar cerca de 60 dias entre o dia da manifestação até o dia da cirurgia. Nesse período, ocorre a orientação multidisciplinar por uma equipe sobre o procedimento.

Entre janeiro de 2021 e julho de 2022, foram realizadas 1.169 cirurgias de laqueadura tubária em Fortaleza, entre cirurgias eletivas e cirurgias de parto cesariano com laqueadura em maternidades da Rede SUS. Os dados são da Secretaria Municipal da Saúde (SMS).

O POVO buscou redes particulares de saúde em Fortaleza que realizam os procedimentos de laqueadura para mulheres e vasectomia para homens. Nos locais, os custos variam. As laqueaduras custam entre R$ 5 mil a R$ 10 mil, dependendo dos hospitais e equipe médica. Já na vasectomia, os preços estão entre R$ 1 mil a R$ 3 mil, também a depender dos locais e equipe médica.

 

 

Hospitais públicos que atendem à demanda dos procedimentos de esterilização voluntária em Fortaleza

O que fazer em caso de procedimento recusado

A membro da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Ceará (OAB-CE), Olga Loiola, ressalta que a Lei 14.433/2022 reduziu para 30 dias o prazo para que o SUS forneça os métodos contraceptivos requeridos e orientados pelos médicos. “Em caso de descumprimento do prazo ou até mesmo da recusa em fornecer o contraceptivo, há um descumprimento claro de um direito líquido e certo do cidadão”, informa.

A advogada explica que a pessoa pode procurar a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) ou um advogado particular para ingressar com um mandado de segurança a fim de obter o benefício. O interessado pode também fazer a denúncia diretamente ao Ministério Público, que é o fiscal do cumprimento das leis, para que este possa tomar as medidas cabíveis no âmbito coletivo.

Em relação aos planos de saúde, as pessoas podem informar sobre o caso à Central de Atendimento ao Plano e registrar a reclamação, além de informar à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), operadora de planos de saúde, que é responsável por fiscalizar, multar e atuar na garantia dos serviços de saúde da rede privada.

O que você achou desse conteúdo?