“As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura”.
A primeira estrofe de Los Nadas (Os Ninguéns, em português), do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano, precede o retrato crítico da exclusão social na América Latina. Nas linhas seguintes do poema são esquadrinhadas as aflições de uma gente invisível que somente é vista quando convém. “Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata”.
Os ninguéns de hoje foram descobertos pelo Governo Federal quando tiveram de receber a renda básica emergencial de R$ 600. Uma população que não tinha CPF e tampouco era bancarizada (24 milhões). Muitos ainda não foram alcançados. Uma ferida aberta que foi exposta pela pandemia do novo coronavírus, mas que está onde a vista alcança há muito mais tempo.
Nesta reportagem, vamos explicar os vícios de origem da pobreza no Brasil e os caminhos possíveis para solucioná-la. Os detalhes não estarão na frieza dos números, mas na história de pessoas que estão à margem da sociedade e agora estão encarando mais um desafio da luta diária pela sobrevivência. Pessoas que moram em casas esborrotadas e sem energia elétrica, na rua, na Praça do Ferreira, numa esquina da Aldeota.
No Brasil, a pobreza é fruto das desigualdades extremas. Uma miséria em ascensão devido à pandemia; especialistas explicam as estrutura dessa realidade dramática
O caos humanitário provocado pela pandemia deve arrastar mais 5,4 milhões de brasileiros para a extrema pobreza até o fim deste ano, conforme estimativa do Banco Mundial. Hoje, já são 9,3 milhões de pessoas a sobreviver com apenas R$ 145 por mês (US$ 1,90 por dia) no Brasil. Nos próximos meses, deverão ser 14,7 milhões.
O câmbio utilizado para o cálculo da renda considera o custo de vida dos países. Os dados também mostram uma retração do Produto Interno Bruto (PIB) maior dos últimos 120 anos (5%). Já a taxa de extrema pobreza também pode vir a ser a maior desde 2006 — quando ficou em 7,2% — , atingindo 7% da população.
Uma economia de escassez pervasiva que não é de agora e foi escancarada pela crise sanitária. No Brasil, a pobreza é resultado da multifacetada desigualdade. Que tem no arcabouço o regime escravocrata, gerando a assimetria racial; a concentração de terra, cuja consequência é muita gente sem um teto e pouca com muito; o machismo, que oprimiu a força de trabalho feminina.
Esse anacronismo econômico é visto nas ruas, nas favelas, no mercado de trabalho. Como falar de isolamento social para famílias numerosas que vivem num único cômodo? E para aqueles que sequer têm moradia? Como recomendar lavar as mãos com frequência aos que não têm água encanada e saneamento básico? Como estudará a distância a criança que não tem acesso à internet e a um computador? Como ficará em casa a mãe que precisa sustentar sozinha os filhos?
Questionamentos que apenas existem porque não houve até então políticas públicas suficientes implementadas para mudar essas realidades. Para Lauro Chaves Neto, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), conselheiro Federal de Economia (Corecon) e PHD em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, a desigualdade é um drama que predestina os mais pobres mesmo antes de chegarem ao mundo.
“Começa no pré-natal, que é feito em condições diferentes. Uma parte da população brasileira tem menores condições de nascer mais saudável”, frisa, acrescentando que, na gravidez, tem-se ainda as condições de habitabilidade.
“E, acima de tudo, a assimetria deve-se às diferentes oportunidades de educação. Então, você pega as condições de saúde e educação e vai chegar à raiz da questão da desigualdade. Se houvesse esses dois fatores numa maneira universal e de qualidade, teríamos oportunidades maiores para grande parte dos vulneráveis e, consequentemente, um mercado consumidor maior”, avalia.
No Ceará, observa, há uma aglutinação da economia na Região Metropolitana de Fortaleza, que concentra as oportunidades e marginaliza a grande periferia. Além disso, há um abismo entre as zonas urbanas e rurais.
Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), explica que 70% da massa dos rendimentos no País vêm do trabalho e outros 20% da Previdência, ocasionando a desigualdade de renda.
“Desde a crise de 2015, tivemos uma perda do trabalho concentrada principalmente nos mais pobres. Para piorar, o valor pago pelo Bolsa Família reduziu significativamente em termos reais”, recorda.
Em 2017 e 2018, frisa, o crescimento de renda se acumulou para os mais ricos (não apenas do trabalho, mas, também, do capital). Já em 2019, a classe média ganhou mais renda, enquanto os mais ricos tiveram uma estagnação e os mais pobres perderam rendimentos novamente.
No contexto de pandemia, destaca, o mercado de trabalho também tende a reforçar sua desigualdade. Trabalhadores altamente qualificados, principalmente no setor de tecnologia, que já ganhavam muito acima da média, agora tenderão a ter aumentos ainda maiores. “Dificilmente essa mudança será revertida”, diz.
O crescimento da economia brasileira manteve-se fraco em 2019 (1,1%), sustentado principalmente pelos setores de serviços e agricultura. A atividade industrial sofreu uma desaceleração devido à baixa produção de minério de ferro após o colapso de uma barragem, e a manufatura foi impactada pela baixa demanda externa, inclusive da Argentina.
As exportações, por sua vez, vacilaram. Uma inflação benigna, um aumento no ciclo de crédito e uma modesta recuperação no mercado de trabalho sustentaram o consumo privado, embora os investimentos tenham permanecido tímidos.
As importações aumentaram em consequência do modesto fortalecimento da demanda doméstica e das exportações líquidas contratadas, em geral. Como resultado, o déficit em conta corrente aumentou, financiado por IEDs.
No início de 2020, as saídas de portfólio aceleraram-se com a expansão global da epidemia de Covid-19 e o choque da oferta de petróleo. Em março, o Banco Central do Brasil usou algumas de suas amplas reservas para estabilizar a taxa de câmbio, mas o Real perdeu cerca de um quinto do seu valor.
Com as expectativas de inflação bem ancoradas, o Banco Central reagiu ao choque econômico com mais cortes nas taxas de juros. O governo, tendo mantido anteriormente sua trajetória de consolidação fiscal, enfrentou a epidemia Covid-19 com um pacote de estímulo em 2020, o que resultou em um aumento significativo do déficit primário e em níveis mais altos de dívida pública.
A economia brasileira deve sofrer uma contração de 5% em 2020, pois terá de enfrentar três choques: baixa demanda externa; preços do petróleo (o Brasil é um exportador líquido); e interrupção econômica consequente das medidas de contenção da epidemia.
Esses choques reduzirão o consumo privado e podem afetar a produtividade do trabalho, ao passo que o desemprego deverá aumentar. O choque das demandas global e interna levará a uma queda significativa nos níveis de investimento.
Para conter a crise, o governo pode ter de implementar medidas adicionais, inclusive para apoiar os estados em dificuldades. É esperado algum afrouxamento monetário adicional, embora a taxa básica de juros já esteja significativamente abaixo da taxa neutra.
Supondo que os choques externos e internos sejam transitórios, espera-se que a economia se recupere até o fim de 2020 e durante o ano de 2021, o que resultaria em uma taxa de crescimento de 1,5% em 2021 e 2,3% em 2022. Por ser um crescimento ainda baixo, haveria pouco espaço para acelerar a redução da pobreza.
Os riscos negativos são significativos e dependerão da gravidade, duração e eficácia das medidas de contenção, tanto em nível global quanto no Brasil. Uma crise sanitária mais longa ou profunda pode aprofundar e prolongar a crise econômica.
Uma recessão mais profunda também implicaria recuperação mais lenta, pois a interrupção causaria danos de longo prazo às finanças das empresas e das famílias, bem como ao mercado de trabalho.
A implementação inadequada das políticas em resposta à crise pode deixar de mitigar os impactos nos índices de pobreza e desigualdade, possivelmente alimentando o descontentamento social.
Encontrar o justo equilíbrio entre alívio eficaz e sustentabilidade fiscal permanece de grande importância. As fontes de resiliência incluem bancos bem capitalizados e reservas consideráveis, o que pode mitigar os riscos de contágio financeiro e interrupções repentinas.
Pequenas e médias empresas correm um risco maior e, portanto, exigirão mais apoio. Os desafios para a redução da pobreza têm aumentado devido à crise econômica.
Fonte: Banco Mundial
Série de reportagens faz um recorte sobre os impactos econômicos da pandemia do novo coronavírus em nossas vidas. Mostra como todos empobrecemos juntos, situação que se agrava para quem já vive em uma realidade de baixa renda. As reportagens oferece soluções para sair da crise.