O vazio da Aldeota, bairro rico de Fortaleza, descortina realidades socioeconômicas que vão muito além de um mercado represado pela pandemia. Na esquina das ruas Monsenhor Bruno e Eduardo Salgado – em meio a lojas e restaurantes fechados –, sentados, dois flanelinhas observam o agora inconstante vaivém de veículos.
Os irmãos Charles Nascimento, 43, e Neto Nascimento, 40, guardam carros naquele entorno há mais de 10 anos. Sem casa, eles fazem das calçadas dos empreendimentos cobertos o abrigo. Há dois meses, a situação ficou ainda mais crítica, perdendo o ganha-pão com a queda do movimento. Hoje, conseguem, no máximo, duas refeições por dia, graças a ajuda vizinhança.
Para quem está à margem da sociedade, não há chances de isolamento social, lavar as mãos com frequência e tampouco acesso ao álcool em gel. Sobrevive-se.
Neto tem uma certidão de nascimento, um colchão infantil e algumas roupas. Charles não tem nenhum documento, dorme sobre uma cama improvisada com madeira e papelões. Ambos têm cobertores. Mas não foi sempre assim.
Eles lembram de uma infância e início da vida adulta “com tudo do melhor” mesmo quando a mãe teve de assumir a casa após a morte do pai. Uma pensão da avó segurou as principais despesas, mas, aos nove anos e 12 anos, precisaram começar a vender jornal para ajudar – período em que pararam de estudar. “Não havia luxo, mas um teto e alimentação digna”, recorda Charles.
Há 15 anos, com a morte da matriarca, ficaram sem lar. Os irmãos então se separam, mas tiveram experiências similares. Fizeram trabalhos esporádicos em restaurantes, como garçons e “faz tudo”. Quando o expediente acabava, procuravam um lugar por perto das empresas para passar a noite.
Os critérios para definir a dormida eram uma câmera para mais segurança, um telhado para se protegerem da chuva e bastante movimentação para inibir situações de violência.
Foi assim por muito tempo até decidirem ficar juntos, há 12 anos. Diante das poucas oportunidades, Charles já tinha desistido do emprego formal. Começou a “pastorar” os veículos, na Aldeota. Chamou o irmão.
Os flanelinhas ficaram conhecidos no bairro, por serem prestativos e passarem confiança. Fizeram amizades com os moradores e donos dos estabelecimentos, e decidiram ficar por ali. “Graças a Deus o pessoal gosta da gente, dá comida”, relata Neto.
Os trocados que eles ganham são para comprar comida. Quando precisam de remédios, colocam em prática a medicina caseira da avó. O chá de “banha de galinha” é a receita mais usada para as gripes.
Os ingredientes vêm de doações e o preparo é feito em um galpão abandonado, onde pessoas em situação de rua conseguem fazer a comida em gambiarras de fogões.
Quando não dá jeito, pedem remédios aos médicos conhecidos. Neto soube da pandemia por meio dos moradores que foram avisando, orientando que tivessem cuidado. Mas se preocupou mesmo quando ouviu uma mulher falar ao telefone, chorando, que tinha Covid-19. Ele saiu correndo para pedir álcool em gel a alguém. Charles estranhou o esvaziamento das ruas e entendeu a gravidade da doença.
Ganharam máscaras de tecido, que usam de forma um pouco atrapalhada, tirando-as para falar. Lavam as mãos sempre que podem, com a água utilizada para lavar os carros. O sonho de uma casa foi trocado pelo fim da pandemia. A fome tem mais pressa.
Série de reportagens faz um recorte sobre os impactos econômicos da pandemia do novo coronavírus em nossas vidas. Mostra como todos empobrecemos juntos, situação que se agrava para quem já vive em uma realidade de baixa renda. As reportagens oferece soluções para sair da crise.