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Dos pequenos aos grandes gestos, o poder nas mãos do cidadão
Reportagem Seriada

Dos pequenos aos grandes gestos, o poder nas mãos do cidadão

Como o simples ato de pedir a nota fiscal na hora da compra pode ajudar a combater a sonegação e fortalecer uma nova cultura de relação com o Fisco
Episódio 2

Dos pequenos aos grandes gestos, o poder nas mãos do cidadão

Como o simples ato de pedir a nota fiscal na hora da compra pode ajudar a combater a sonegação e fortalecer uma nova cultura de relação com o Fisco
Episódio 2
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Mudar o que está errado nem sempre é fácil ou simples. Quando se coloca isso numa perspectiva de sociedade, é ainda mais complexo. Mas, se tratando de educação fiscal, pequenos gestos podem fazer uma enorme diferença.

A nutricionista Suiane Sales foi uma das sorteadas no programa Sua Nota Tem Valor, do Governo do Estado, que concede premiações em dinheiro para quem exige nota fiscal no momento da compra (Foto: Barbara Moira)
Foto: Barbara Moira A nutricionista Suiane Sales foi uma das sorteadas no programa Sua Nota Tem Valor, do Governo do Estado, que concede premiações em dinheiro para quem exige nota fiscal no momento da compra

A nutricionista Suiani Sales, 32, sabe bem disso e há alguns anos incorporou como hábito sempre pedir a nota fiscal com CPF na hora da compra. Além de garantia para uma eventual troca, ela sabe que essa atitude vai ajudar o Fisco, seja ele municipal, estadual ou federal, a identificar que aquele imposto que estava embutido no preço do produto ou serviço que comprou terá de ser declarado pela empresa.

E o dinheiro que vem dos impostos, uma vez recolhido, é o que financia as políticas públicas. Ou seja, é o que possibilita a construção de estradas, financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) ou como agora, na pandemia, pagar o auxílio emergencial.

É uma forma de exercer a cidadania, é um direito do consumidor, além de ajudar na arrecadação e na fiscalização dos estabelecimentos que não emitem nota fiscal”, afirma Suiani.

A prática já lhe rendeu boas surpresas. Em setembro, ela foi uma das sorteadas no programa Sua Nota Tem Valor, do Governo do Estado, que concede premiações em dinheiro para quem exige nota fiscal no momento da compra. Além do prêmio de R$ 15 mil, também teve o direito de indicar uma instituição sem fins lucrativos para ganhar o mesmo valor.

“Eu escolhi o Instituto dos Cegos porque minha mãe e meu irmão são deficientes visuais, então, eu sei como é o dia a dia deles. E não é nada fácil. Por isso, quis contribuir com a causa”, destaca.

 

"No início, a pessoa se inscreve pelo dinheiro do prêmio, mas depois vira hábito, inclusive, o de exigir que os estabelecimentos forneçam a nota sob pena de não fazer mais a compra ali. E isso provoca uma mudança também na postura das empresas” . Luiz Zanon, cordenador do Grupo de Trabalho 66

 

Desde que foi lançado, há quatro meses, o programa já conta com a adesão de mais de 63,3 mil pessoas e 283 instituições. Os números são considerados uma vitória pela titular da Secretaria da Fazenda do Ceará (Sefaz), Fernanda Pacobahyba, já que o cidadão é uma peça-chave no combate à sonegação. “Seria humanamente impossível fiscalizar tudo, em todos os lugares, ao mesmo tempo, por isso, essa parceria com a população é importante”, diz.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 03.02.2020:  Fernanda Pacobayba, secretária da Fazenda do Ceará, ressalta importância do programa que incentiva a emissão da nota fiscal (Foto: FÁBIO LIMA/O POVO)
Foto: FÁBIO LIMA/O POVO FORTALEZA, CE, BRASIL, 03.02.2020: Fernanda Pacobayba, secretária da Fazenda do Ceará, ressalta importância do programa que incentiva a emissão da nota fiscal

Ela esclarece que o simples fato de o estabelecimento emitir a nota fiscal não quer dizer que vai ter arrecadação, porque a empresa pode emitir a nota e não pagar o tributo. “Mas, se não emitir a nota, é uma derrota certa porque não temos como compor o tributo. É como se o fosse um rastro que o contribuinte vai deixando e que ajuda no nosso trabalho”, acrescenta.

Também reforça que esse pequeno gesto é um passo fundamental para melhorar a consciência fiscal da sociedade sobre o que são os impostos, para que se destinam e a importância de acompanhar esse processo. “Afinal, é ele o dono dos recursos e o principal destinatário dos serviços públicos”.


Luiz Antonio Zanon, coordenador do Grupo de Trabalho 66, voltado à educação fiscal, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), endossa o discurso. No Brasil, das 27 unidades federativas, 19 têm programas próprios de premiação da nota fiscal. O que muda é a modelagem e o valor oferecido aos participantes nos sorteios.

E, embora não existam ainda estudos que apontem em números quanto a arrecadação cresceu após esses programas, a experiência tem apontado para um efeito pedagógico extremamente eficaz em relação à mudança de postura de empresas e dos cidadãos.

“É como se fosse um vento que vai mudando uma postura e que, aos poucos, vai causando também transformações coletivas. No início, a pessoa se inscreve pelo dinheiro do prêmio, mas depois vira hábito, inclusive, o de exigir que os estabelecimentos forneçam a nota sob pena de não fazer mais a compra ali. E isso provoca uma mudança também na postura das empresas”, afirma.

Ele conta que, nos estados onde esse programa já existe há mais tempo, o comerciante já não pergunta se a pessoa quer a nota, mas se deseja que inclua o CPF na nota. “Ou seja, aquela primeira pergunta, que é uma obrigação óbvia, já foi ultrapassada. Pode parecer besteira, mas não é, mostra um outro nível de conscientização”, observa.

Sua Nota Tem Valor já pagou mais de R$ 1,3 milhão em prêmios

Em quatro meses, o programa Sua Nota tem Valor, do Governo do Ceará, já pagou mais de R$ 1,3 milhão em prêmios aos contribuintes que pedem a inclusão do CPF na nota fiscal no momento da compra
Foto: Divulgação/Sefaz
Em quatro meses, o programa Sua Nota tem Valor, do Governo do Ceará, já pagou mais de R$ 1,3 milhão em prêmios aos contribuintes que pedem a inclusão do CPF na nota fiscal no momento da compra

Em quatro meses, o programa Sua Nota tem Valor, do Governo do Ceará, já pagou mais de R$ 1,3 milhão em prêmios aos contribuintes que pedem a inclusão do CPF na nota fiscal no momento da compra. Além de chamar a atenção da população para a importância deste hábito, o programa estimula a cidadania fiscal, a solidariedade e a inclusão social.

Isso porque, além da possibilidade de ser contemplado em um dos sorteios, o contribuinte cadastrado no programa pode escolher uma instituição sem fins lucrativos para receber um prêmio de igual valor.

O que é o programa Sua Nota Tem Valor?

Por mês, são sorteados R$ 150 mil em seis prêmios, sendo o primeiro de R$ 25 mil, o segundo de R$ 20 mil, o terceiro de R$ 15 mil e os demais de R$ 5 mil cada. Ou seja, se a pessoa for contemplada com R$ 25 mil, a entidade também recebe igual quantia.

Além disso, é feito o rateio de R$ 300 mil para as instituições que alcançarem o Índice de Engajamento Social de 0,1% de todos os pontos apurados no sorteio.

Programas que incentivam o engajamento e a conscientização do cidadão sobre a nota fiscal existem no Ceará desde a década de 50, mas a secretária estadual da Fazenda (Sefaz), Fernanda Pacobahyba, explica que a atual versão foi reformulada para tornar mais simples e assertivo o processo.

Dentre as novidades, está o fato de que o contribuinte não precisa mais guardar a nota fiscal e depositá-la numa urna. Agora, o processo é todo digital. “Basta pedir para incluir o CPF na nota que o sistema armazena automaticamente. Inclusive, se ele quiser consultar depois essa nota pelo aplicativo, ele pode”, explica.

Linha do tempo


Pelas regras do programa, os pagamentos das premiações devem ser feitos em até 30 dias. Mas, a média tem sido de 15 dias após a divulgação do resultado do sorteio.

A iniciativa também contribui para que o Estado possa conhecer melhor o comportamento das empresas e dos consumidores. Por exemplo, a maior parte das notas cadastradas no programa são de compras em farmácias e supermercados. O próximo sorteio está previsto para o dia 23 de dezembro.

Saiba como conhecer e fiscalizar os gastos públicos

A cada R$ 50 acumulados em compras, o participante ganha um ponto, que será convertido em um bilhete eletrônico
Foto: OPOVO.DOC
A cada R$ 50 acumulados em compras, o participante ganha um ponto, que será convertido em um bilhete eletrônico

Exigir a nota fiscal na hora da compra é uma etapa importante, mas não a única. Para garantir um controle social mais efetivo, é fundamental que o cidadão entenda e acompanhe também a forma como os recursos são aplicados. E, para isso, é preciso transparência e informação.

O economista Alexandre Cialdini explica que a própria Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) criou vários mecanismos que ajudam o cidadão a fazer essa fiscalização e participar de forma mais ativa do processo de decisão de como os recursos públicos serão gastos.

Um deles, por exemplo, é a obrigatoriedade da realização de audiências públicas para elaboração e aprovação das peças orçamentárias, como a Lei Orçamentária Anual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Plano Plurianual (PPA). Nesses projetos de lei são definidos como e o quanto de recurso será destinado para cada área.

Outra forma é acompanhar, na Assembleia Legislativa, na Câmara Municipal ou no Congresso Nacional, as sessões públicas de prestação de contas fiscais que são realizadas a cada quadrimestre.

Ou ainda acompanhar os portais de transparência. Por meio desses canais, é possível ter acesso a diversos níveis de informações, desde quanto ganha um servidor público, quanto custa uma determinada obra ou quanto do orçamento já foi efetivamente aplicado. A regra vale, inclusive, para créditos extras como os disponibilizados para o enfrentamento da pandemia.

Poder  Legislativo é responsável pelas leis que regem a carga fiscal no Estado (Foto: Junior Pio / AL-CE Divulgação)
Foto: Junior Pio / AL-CE Divulgação Poder Legislativo é responsável pelas leis que regem a carga fiscal no Estado

“E vários estudos internacionais mostram que o Brasil é considerado um dos países mais transparentes do mundo em dados abertos. O nosso problema não é tanto em disponibilizar a informação, mas o de tornar esses portais mais pedagógicos e acessíveis para todos. Ou seja, que a pessoa vá lá e consiga entender e achar com facilidade a informação”, afirma Cialdini.

Embora fiscalizar a correta aplicação dos recursos públicos seja uma das responsabilidades dos órgãos de controle, como os Tribunais de Contas, Controladorias e do Ministério Público, o envolvimento do cidadão de forma mais ativa no ciclo dos recursos públicos pode ser a senha para a virada de mesa.

 

 

“Se eu tenho três empresas que oferecem o mesmo produto e uma sabidamente é uma grande sonegadora, por que não optar por comprar das outras duas? Da mesma forma, nas eleições, por quem não aplica corretamente os recursos públicos”. Alexandre Cialdini, Economista

 

Assim, como a pressão popular é capaz de mudar um posicionamento mais predatório de uma empresa em relação à questão ambiental, por exemplo, o mesmo poderia ocorrer no que diz respeito aos impostos pagos pelas empresas ou à correta aplicação dos recursos públicos por um gestor, acredita o tributarista Thiago dos Santos.

“Se eu tenho três empresas que oferecem o mesmo produto e uma sabidamente é uma grande sonegadora, por que não optar por comprar das outras duas? Da mesma forma, nas eleições, por quem não aplica corretamente os recursos públicos”, observa.

A vice-presidente da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), Maria Aparecida Lacerda, acredita que o Brasil ainda está muito distante de um cenário satisfatório, sendo o maior desafio despertar a consciência da população.

Nesse contexto, o atual sistema tributário brasileiro é um obstáculo a ser superado, já que o sistema, na avaliação dela, é estruturalmente injusto, complexo e sem transparência. “Se o cidadão nem sabe o tamanho da sua fatia de contribuição, ele fica sem condição de fazer uma avaliação real, de exigir dos governos as contrapartidas em serviços e de fiscalizar o gasto público”.

Para ela, a vida em sociedade advém de um “pacto entre os cidadãos” que conta com o tributo como um fator de sustentação para prover bens comuns e vida digna para todos. “Assim, quanto maior a consciência desse pacto e da sua importância para a vida em coletividade, mais próximos estaremos do ideal de viver num país mais justo, próspero e menos desigual”, reforça.

Projetos ajudam a reduzir a distância entre o cidadão e o conhecimento

No Ceará, desde 2018, existe uma lei, a de nº16697/18, que torna obrigatório o investimento de parte do orçamento do Estado, o equivalente a até 0,03% do valor total da Receita Corrente Líquida, em ações que estimulem a educação fiscal.

Fortaleza também tem lei própria sobre isso e é até mais antiga, de 2011. Dentre outros pontos, o que esses programas têm em comum é o estímulo à conscientização da população sobre o assunto.

Há dois anos, o professor de física Ricardo Normando ministra aulas de educação fiscal e financeira para os alunos da Escola de Tempo Integral Walter de Sá Cavalcante, em Fortaleza(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Há dois anos, o professor de física Ricardo Normando ministra aulas de educação fiscal e financeira para os alunos da Escola de Tempo Integral Walter de Sá Cavalcante, em Fortaleza

Inclusive, há uma previsão para introdução, de forma direta ou transversal, de conteúdos de educação fiscal nos currículos pedagógicos das secretarias de educação. Na rede estadual, por exemplo, essa é uma das disciplinas eletivas das escolas de tempo integral.

E a depender da forma como o tema é abordado, pode despertar grande interesse dos estudantes, afirma o professor Ricardo Normando, professor de física. Ele explica que, há dois anos, ministra aulas de educação fiscal e financeira para os alunos da Escola de Tempo Integral Walter de Sá Cavalcante, em Fortaleza, e essa é sempre uma disciplina eletiva muito requisitada.

“A procura nos surpreendeu, até mesmo de pais de alunos. Por isso, decidimos também abrir turmas abertas para comunidade. E o que a gente faz é mostrar a eles a função do Estado na vida deles, os direitos e deveres e como eles podem acompanhar isso na prática e tomarem decisões mais conscientes”.

 

Não é incomum, por exemplo, reduzir o número de cadeiras quebradas ou banheiros riscados. Isso porque eles mesmo passam a fiscalizar o que ocorre na escola, eles sabem que uma cadeira a menos, é um dinheiro a mais que é gasto para repor e que poderia ser usado em outras melhorias”. Ricardo Normando, professor

 

Os resultados não tardaram a aparecer. Se, antes do projeto, 80% dos alunos não sabiam o que era um tributo e 90% nunca tinham acessado um portal da transparência, agora, fazem trabalho de campo estimulando os comerciantes do entorno a adotarem a nota fiscal, além de passar a zelar mais pelo patrimônio da escola.

“Eles saem diferentes. Não é incomum, por exemplo, reduzir o número de cadeiras quebradas ou banheiros riscados. Isso porque eles mesmo passam a fiscalizar o que ocorre na escola, eles sabem que uma cadeira a menos, é um dinheiro a mais que é gasto para repor e que poderia ser usado em outras melhorias”, explica.

Ouça "O contribuinte pai d'égua" no Spreaker.

Já no município de Acaraú, na região Norte do Ceará, o conteúdo é trabalhado de forma transversal nas disciplinas desde 2008. A Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação (Crede 3) também fez parcerias com a Sefaz e o Sindicato dos Fazendários do Ceará (Sintaf) para realização de um concurso de redação com o tema educação fiscal.

“Nós preparamos oficinas com o tema da educação fiscal, fazemos a formação dos professores e preparamos os alunos a desenvolverem o que aprenderam em uma redação, seguindo os critérios de competência do Enem. A gente une as duas coisas”, afirma a articuladora do Crede 3, Erlane Muniz.

Neste ano, em razão da pandemia do novo coronavírus, toda preparação e material foram adaptados para encontros virtuais. Ao todo, 3,2 mil pessoas participaram das oficinas, 23 escolas estiveram no concurso e 758 redações foram produzidas.

Projeto incentiva a consciência fiscal no público infantil e adolescente(Foto: Acervo Pessoal )
Foto: Acervo Pessoal Projeto incentiva a consciência fiscal no público infantil e adolescente

 Destas, foram escolhidas as melhores em três categorias: escolas de tempo integral ou de ensino profissionalizante, escolas regulares e escolas indígenas. O aluno e o professor-orientador da redação vencedora em cada categoria ganhou, respectivamente, um smartphone e um tablet.

“Mas os ganhos vão muito além disso, os alunos saem com uma maior consciência fiscal. Não é do dia para noite que as mudanças acontecem, mas o que a gente aprendeu ao longo desses anos é que os ganhos são significativos. Eles passam a ter, por exemplo, um cuidado maior com o espaço escolar e até a se interessar mais e a cobrar da direção das escolas informações sobre como os recursos estão sendo aplicados”, comemora Erlane.

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