Das poucas certezas que uma pessoa pode ter ao longo da vida é a de que vai pagar impostos. Muito embora, provavelmente, ninguém goste de fazê-lo. Na energia elétrica, nas compras de supermercado, quando recebe o salário com carteira assinada, quando abastece o carro ou vai ajustar as contas com o Imposto de Renda no início do ano.
Da mesma forma, também vai precisar do serviço público. Seja quem não tem plano de saúde e precisa ir a um posto de saúde, na hora de tirar o documento de identidade, de pegar uma estrada para uma viagem, abrir uma empresa, para ter segurança da qualidade da carne que come ou da higiene do restaurante que frequenta. Em todos esses serviços há dinheiro público envolvido.
O dever geral de pagar tributos, assim como o direito de ter acesso a serviços públicos e cobrar que sejam executados com qualidade, são faces da mesma moeda e têm estreita relação com a própria noção de cidadania. Por mais que nem sempre este caminho do dinheiro, da forma como ele se apresenta no dia a dia, seja fácil de entender e de rastrear, explica a vice-presidente da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), Maria Aparecida Lacerda.
“A complexidade do sistema tributário, combinada com a sua falta de transparência, é um obstáculo até mesmo para o trabalho de corrigir seus maiores defeitos, como por exemplo, o fato de tributar muito o consumo e quase nada o patrimônio e a renda do capital”.
Daí a importância, na avaliação dela, de as pessoas conhecerem o sistema fiscal, os seus deveres e direitos e despertarem para uma maior consciência cidadã. “Se isso fosse de domínio público, se os mecanismos de cobrança fossem simples e claros, certamente isso já teria mudado. A educação fiscal procura jogar luz, fazer conhecer para transformar a realidade”.
Apesar de ainda estar longe do cenário ideal, o Brasil tem avançado muito em relação à transparência ao longo dos anos. A Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, que condicionou os gastos públicos a sua capacidade de arrecadação, também tornou obrigatório que os gestores públicos publiquem em portais de transparência a forma como os recursos são aplicados.
Também desde 2012, a Lei do Imposto na Nota (nº 12.741/12) tornou obrigatória a inclusão de informações nos documentos fiscais ou equivalentes de quanto se paga de imposto (federais, estaduais e municipais), valores aproximados e percentuais. O objetivo é informar ao cidadão o quanto representa a parcela dos tributos em cada compra realizada.
“Infelizmente, muitas pessoas ainda acham que a nota fiscal somente serve como garantia para troca. Mas não isso, é importante para que os fiscos possam ajudar a ter controle maior sobre a arrecadação, para uma concorrência mais leal entre as empresas, e para conscientizar a população quanto à alta carga tributária que pagamos no Brasil”, explica o presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), João Eloi Olenike.
A carga tributária brasileira hoje equivale a 32,6% do Produto Interno Bruto (PIB). Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que o Brasil é o segundo país que mais tributa consumo, 49,7%, e perde apenas para o Chile. Enquanto a média dos países membros da OCDE é de 32,4%. “E o mais grave é que o Brasil tributa muito, gasta muito e gasta mal”.
Ele explica que, desde 2011, o IBPT realiza estudos sobre o Índice de Retorno de Bem Estar à Sociedade (Irbes). O cálculo é feito a partir da somatória da carga tributária em relação ao PIB, a partir de dados da OCDE, com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). E, em todas as edições, que leva em consideração os 30 países com a maior carga tributária, o Brasil permanece na última colocação.
Para Olenike é preciso destinar de forma mais assertiva e qualitativa o orçamento brasileiro. “Se gasta muito com Previdência, com juro da dívida, com a estrutura da máquina, mas pouco com o que pode trazer melhoria efetiva na qualidade de vida da população”.
O cidadão, na avaliação dele, tem papel fundamental para uma mudança de paradigmas. “A falta de conhecimento da população sobre educação fiscal e engajamento sobre viver em sociedade faz com que, de modo geral, os governos não sejam cobrados e continuem agindo dessa forma”.
A pandemia impôs uma série de desafios. E com a cidadania fiscal não é diferente. No Ceará, o programa de educação fiscal desenvolvido pela Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz), que existe há 22 anos, está se reinventando para continuar levando conhecimento para a população.
Dentre as novidades implementadas neste ano está o circuito Engaja Cidadão, com lives transmitidas no perfil oficial do Instagram @sefazceara. Já foram 20 edições do programa, realizadas quinzenalmente, abordando diferentes temáticas como cidadania, transparência, ética ou ferramentas de controle social.
“E conseguimos alcançar a marca de 21 mil visualizações, o que, para a gente, é muito quando se fala de educação fiscal. Foi uma grata surpresa”, afirma a gestora do programa de educação fiscal da Sefaz, Imaculada Vidal.
Ela conta que historicamente o programa sempre foi muito pautado na proximidade com os parceiros, seja, com visitas guiadas à Sefaz, ações nas escolas, cursos presenciais abertos ao público e capacitação nas universidades para preparar professores e alunos para atuar nos Núcleos de Apoio Contábil e Fiscal (NAF), serviços gratuitos de assistência fiscal à população. Na pandemia, tudo isso passa a ser revisto. Neste ano, os cursos de formação a distância tiveram mais de 1,1 mil inscritos e mais de 400 pessoas certificadas.
“Com a educação como um todo tivemos que nos adaptar ao novo momento, realizando webinários, formações virtuais, novas didáticas para chegar de forma cada vez mais acessível às pessoas. Também resgatamos e disponibilizamos os programas de tele-ensino”, afirmou Imaculada.
A pandemia, e o impacto econômico decorrente dela, foi um tema que não podia ficar de fora desses encontros. Ela afirma que em poucos momentos da história recente brasileira ficou tão evidente essa relação do tributo que a sociedade paga, com o retorno das políticas públicas.
“As pessoas puderam ver com os próprios olhos a importância dos recursos públicos, o quanto é crucial termos um estado forte, que garanta infraestrutura de saúde, o impacto do auxílio emergencial na economia, o próprio Sistema Público de Saúde, de termos uma vacina. E, por outro lado, o preço que se paga por não ter esses serviços acessíveis e de qualidade".
Uma das principais frentes de trabalho do programa de educação fiscal do Estado é a parceria com as escolas. Na rede estadual, por exemplo, essa é uma das disciplinas eletivas das escolas de tempo integral. Neste ano, um total de 43 escolas participam do projeto neste segundo semestre. Mais de 1.300 alunos estão matriculados nessa disciplina.
A Escola de Ensino Médio em Tempo Integral Albaniza Rocha Sarasate, em Maracanaú, é uma delas. É lá que o professor de geografia Guilardo Holanda da Silva busca novas formas de familiarizar os alunos com o tema.
Até o ano passado, o resultado das aulas teóricas e práticas culminava em uma exposição de um grande mercado popular no pátio da escola, com produtos confeccionados por eles, onde eram discriminados os impostos e a importância deles para sociedade. Neste ano, com as aulas virtuais, tem usado da criatividade, e de muitos recursos visuais, para tornar o conhecimento acessível e ao mesmo tempo estimular o engajamento da turma no projeto.
“Acredito que estamos alcançando o nosso objetivo que é formar cidadãos mais ativos e conscientes. Há uma mudança na percepção deles sobre como as coisas funcionam e vemos eles assumirem posturas mais relevantes no seu dia a dia. Além disso, como a eletiva vem sendo bastante prestigiada tanto pela escola, como pelos alunos, a gente percebe que a participação deles incentiva outros alunos a quererem conhecer também”, diz Guilardo.
A marca cearense de roupas e acessórios artesanais Catarina Mina, em 2015, decidiu dar um passo à frente no seu relacionamento com o consumidor. Mais do que apenas especificar a quantidade de impostos embutida em seus produtos, conforme prevê a Lei 12.741/12, decidiu abrir todas as componentes que formam o preço das peças que vende. Foi a primeira loja de custos abertos do Brasil.
O projeto “Uma Conversa Sincera” tem como objetivo aguçar no consumidor o interesse sobre o que há por trás da cadeia de moda e do produto acabado. A fundadora e diretora criativa da Catarina Mina, Celina Hissa, explica que, cada vez mais, comprar é um ato político que influencia toda uma cadeia produtiva.
“Eu entendo que quando o consumidor tem acesso à informação, em como se chegou até aquele produto, quais pessoas e setores ele impactou, como aquela peça é trabalhada, ele pode fazer escolhas mais conscientes”, afirma.
Quem navega pelo site da loja, por exemplo, consegue identificar em reais, em cada produto, quanto custou a matéria-prima; quanto foi pago pelo trabalho das artesãs ou costureiras (o fixo e o percentual nas vendas); o gasto em embalagem; impostos, despesas com sistema de pagamento virtual; envio; custos operacionais ou até mesmo as perdas presumidas para se chegar no preço daquela peça.
E não se tratam de letras miúdas no rodapé. São informações expostas de forma clara, direta, com a mesma dimensão da descrição da peça, por exemplo, dos tamanhos disponíveis e da concepção da coleção.
Celina explica que a iniciativa já rendeu à marca várias premiações como Prêmio Vogue Ecoera (2015) e o Prêmio Brasil Design 3M (2016). E mais que isso. Em cinco anos trouxe também aumento de público, retorno em vendas e mais emprego e renda às artesãs colaboradoras do projeto.
“Se a gente quer uma sociedade melhor tem sim que entender a importância do nosso poder de compra e nosso papel em tudo isso. Na pandemia, por exemplo, eu quero comprar de uma grande empresa que importa da China, com preços baixíssimos e sabe-se lá com que condições de trabalho, e que não paga impostos, ou do pequeno que gera emprego e renda no local em que vive?”
Veja os outros episódios do especial Educação Fiscal
+Sonegação fiscal causa prejuízo de R$ 562 bilhões ao Brasil
+Dos pequenos aos grandes gestos, o poder nas mãos do cidadão
Educação fiscal para todos
A série Educação Fiscal para Todos mostra a importância da educação fiscal para a economia e para a sociedade. Neste episódio, o quarto, O POVO mostra a importância da educação fiscal para o exercício de cidadania. O primeiro episódio mostra o peso da sonegação para economia e a sociedade e como boas práticas adotadas no Ceará estão ajudando a reverter esses índices. O segundo aborda a importância de exigir a nota fiscal e outras formas do cidadão participar de forma mais ativa como fiscal da sociedade. Já o terceiro episódio traz a questão da reforma tributária, os projetos que tramitam no Congresso Nacional e como isso pode impactar a vida do cidadão.
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Série de reportagens aborda os efeitos da sonegação no Brasil e aponta soluções com base na educação do consumidor.