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Mulheres e trabalho: Jornada 24/7, uma carga horária que nunca acaba
Reportagem Seriada

Mulheres e trabalho: Jornada 24/7, uma carga horária que nunca acaba

A professora e ex-ministra Matilde Ribeiro, convidada para conversar sobre as relações históricas e contemporâneas entre o trabalho e a mulheres, explica como as desigualdades raciais e de gênero seguem prejudicando as mulheres, mesmo após conquistas históricas no mercado de trabalho. Acompanhe a segunda temporada do Especial Elas, o que pensam as mulheres
Episódio 2

Mulheres e trabalho: Jornada 24/7, uma carga horária que nunca acaba

A professora e ex-ministra Matilde Ribeiro, convidada para conversar sobre as relações históricas e contemporâneas entre o trabalho e a mulheres, explica como as desigualdades raciais e de gênero seguem prejudicando as mulheres, mesmo após conquistas históricas no mercado de trabalho. Acompanhe a segunda temporada do Especial Elas, o que pensam as mulheres
Episódio 2
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Sou otimista com a possibilidade de mudança

Com carteira de trabalho assinada ou não, toda mulher é necessariamente uma trabalhadora. Responsabilizadas pelo cuidado do lar, elas trabalham como faxineiras, cozinheiras, cuidadoras, gestoras e em tudo o que estiver pelo caminho. Praticamente nenhuma dessas funções sai da carga horária quando as mulheres entram no mercado de trabalho. E mesmo que saia, nas famílias com mais condições financeiras, são mulheres, majoritariamente negras, as substitutas. 

A ex-ministra e assistente social Matilde Ribeiro discute o cenário do trabalho para as mulheres no Brasil de 2024 e aponta como, apesar dos avanços, a desigualdade segue imensa. Além do gênero, questões de raça e de classe cruzam as mulheres-trabalhadoras que se veem sozinhas, cansadas e desvalorizadas.

 
Oryporan

Matilde Ribeiro

Ex-ministra e professora na Unilab

Ex-Ministra da Igualdade racial, no período entre 2003 e 2008, e, atualmente, professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro brasileira (Unilab). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e Doutora Honoris Causa pela Fundação Universidade Federal do ABC (UFABC). É colunista do O POVO+.

 

O POVO+ - O que a senhora acha que trabalho significa para as mulheres, considerando o histórico da luta feminista pelo direito a uma carreira?

Matilde Ribeiro - Desde muito cedo, principalmente as mulheres pobres trabalham de maneira remunerada ou não. Com isso, o trabalho se torna um valor fundante da vida. Quando se tornam adultas, a maioria das mulheres estão sujeitas a duplas, triplas jornadas de trabalho, e muitas delas executam o trabalho doméstico de maneira profissional.

Dada a maior importância social histórica colocada para as funções que acontecem no mundo público, o trabalho doméstico é altamente desvalorizado, seja o da dona da casa, seja da empregada doméstica. É extremamente desvalorizado e é o tipo de trabalho que só é percebido quando não é feito. Assim como também as próprias mulheres que executam o trabalho, seja remunerado ou não, têm a percepção de que não trabalham.

Quando você pergunta a uma mulher: ‘Você trabalha?’, e ela fala ‘Não, só cuido da casa’, aí há uma distorção histórica e nenhum interesse em valorizar este tipo de trabalho dentro desse sistema desigual capitalista que nós vivemos. E quando então elas partem da vida em família para o espaço público, vivem isso com muitas dificuldades, porque historicamente não há o preparo para a vida pública e nem a qualificação profissional para essa maioria que estamos falando.

Embora hoje nós estejamos vivendo algumas guinadas. Por exemplo, as mulheres têm maior tendência em permanecer nos espaços de estudo secundário ou mesmo no estudo de nível superior. As tendências mostram que elas estão em maioria nos espaços de trabalho, e em algumas profissões que antes eram consideradas apenas masculinas.

Mas outra questão é que o fato de estudarem, de se qualificarem, seja do ponto de vista do ensino secundário ou superior, não é garantia de melhor posição no mundo do trabalho, né? Ainda existe uma distância muito grande entre o que é trabalho de homem e o que é trabalho de mulher. O que é considerado de maneira irreal, porque todo trabalho pode ser de todo mundo desde que sejam criadas as condições para isso.

 

OP+ - Por que nós ainda temos tanta dificuldade de reconhecer o trabalho doméstico, de legitimá-lo como algo que demanda esforço, expertise…?

Matilde - Bom, são vários os fatores. Primeiro que o Brasil desde os anos 40, 50, deixou de ser um país rural para se tornar um país industrializado, e junto com isso houve uma revolução industrial, no sentido de um aceleramento muito grande do crescimento da indústria em detrimento das outras áreas — e mais recentemente a corrida para automatização. Então está aí o valor do trabalho. Do ponto de vista do desenvolvimento, o trabalho industrial, chamado produtivo, é mexendo com grandes potências de desenvolvimento e crescimento. Isso engole os demais ramos.

Agora tem também outro elemento histórico que não se pode negar, embora o Brasil sempre tenha passado uma borracha em cima disso, que é a herança escravocrata. O trabalho doméstico desde a época da escravidão foi realizada, em geral, pelas mulheres escravizadas, comportando também em algumas áreas homens.

E por ter sido durante séculos feito pelos escravizados, principalmente pelas mulheres negras escravizadas, isso entra para o imaginário social como um elemento de não valia. Tanto é que até hoje, século XXI, a gente vive situações de trabalho análogo à escravidão e uma boa parte dele está no mundo doméstico.

 

 

A voz dE.L.A.S: artigos de opinião

 

 

 
 

OP+ - Como a senhora analisa o mercado de trabalho para as mulheres no Brasil?

Matilde - Nós vivemos uma complexidade muito grande no mundo do trabalho, porque voltando a uma questão que eu já toquei, cresceu nas últimas décadas a presença da mulher no mundo público com funções mais qualificadas. Isso é inegável. Só que o fato delas irem para o mundo público, de uma maneira mais empoderada do que a história permitiu, não as libera da carga de responsabilidade com a casa, com os filhos, com os doentes da família e assim sucessivamente.

Então, a vida da maioria das mulheres é uma vida de muito tensionamento. No quesito trabalho, quando são mães, elas carregam a culpa de não estarem próximas aos filhos. Não tem creches em número suficiente para acolher a criança, como um direito da criança… Essa questão acaba entrando na pauta feminista, porque a creche inegavelmente também libera as mulheres do cuidado cotidiano com as crianças, libera para o mundo do trabalho.

Então, é uma coisa complexa, é uma via de muitas mãos. Tanto que quando comparamos com a situação de países desenvolvidos, a maternidade em países não é tratada como impeditivo para a mulher estar no trabalho. No período de licença maternidade, a mulher tem o direito a ficar mais tempo em casa para cumprir essa fase, sem que necessariamente leve a uma demissão, como acontece aqui no Brasil.

Ministra Matilde Ribeiro traz reflexão sobre racismo a servidores de Diadema (Foto: Igor Andrade Cotrim)
Foto: Igor Andrade Cotrim Ministra Matilde Ribeiro traz reflexão sobre racismo a servidores de Diadema

Muitas vezes quando a mulher volta — e não é uma ou outra, isso acontece em grande proporção — da licença maternidade de 120 dias para o trabalho, muito comumente passa uns dias e ela é demitida ou é penalizada não recebendo promoções. Enfim, não é uma situação tranquila.

OP+ - E como a senhora acha que as mulheres deveriam enxergar o trabalho?

Matilde - Eu vejo que o trabalho acaba sendo negativo na vida das mulheres, porque ele é realizado como se fosse principalmente o trabalho doméstico, né? É realizado como se fosse uma obrigação única e exclusiva das mulheres. Carregar essa responsabilidade diante de um de um fazer que não é qualificado contribui para desqualificar a própria pessoa que executa.

As mulheres quando não conseguem enxergar o seu potencial de criatividade, o seu potencial lúdico, a sua beleza, a sua capacidade de viver no mundo, além das angústias… Esse é o contexto. Ele é um prato cheio para a infelicidade.

Quando há possibilidade da pessoa ver o mundo de maneira mais ampla, de enxergar as flores — e essa capacidade vem não só da mulher, depende muito também do coletivo, do núcleo familiar, das instituições que essa pessoa frequenta —, esse contexto muda.

Quando eu era bem mais jovem, eu trabalhava na zona leste de São Paulo em uma ONG feminista trabalhando com as mulheres atuantes nos movimentos sociais. Isso no final dos anos 80, início dos 90, trabalhávamos na ótica do empoderamento das mulheres para a vida, para viver as suas potencialidades. Era perceptível quando uma mulher chegava nesse tipo de atendimento, por meio de cursos, oficinas, como elas iam se transformando ao longo do tempo.

Elas passavam a usar batom, a sorrir, passavam a usar roupa mais colorida. São questões que são ao mesmo tempo subjetivas e objetivas, é o fato da pessoa poder se autovalorizar. E à medida que ela se auto valoriza, ela também valoriza o seu entorno. Quando isso vai acontecendo, o trabalho deixa de ser visto só como uma obrigação que é só dela, ela passa a ensinar a criança a arrumar cama, a dobrar roupa que dorme, ela passa a ser sujeita nesse processo de ensinar a sociedade que o trabalho doméstico não é obrigação apenas dela.

Isso também pode ser visto pela ótica do trabalho no mundo público. O trabalho é sempre coletivo, nada que a gente faz na vida é uma única ação que por ela vai mudar as coisas. Eu acho que a mulher tem que ser estimulada a não se ver isolada e solitária. As ações, sejam elas em qualquer área de trabalho, se somam, e para dar certo cada parte tem que ter o seu valor.

Eu sou muito otimista com a possibilidade de mudança, eu acho que essa mudança acontece de dentro para fora, mas o externo também é muito determinante de mudança.

 

 

Queremos te ouvir!

Que tal responder à enquete abaixo e usar o campo dos comentários para discutir sobre trabalho? Como foi para você entrar no mercado de trabalho sendo mulher? Você viveu momentos de misoginia na sua carreira? As mulheres estão bem inseridas na sua área de trabalho? Vamos conversar nos comentários!

Expediente

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Concepção do projeto Regina Ribeiro
  • Reportagem, dados e recursos Catalina Leite
  • Identidade visual Cristiane Frota e Camila Pontes
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Design Camila Pontes
  • Fotografia Fernanda Barros
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E.L.A.S.

A segunda temporada do especial E.L.A.S. convida cinco mulheres e 15 articulistas para conversar sobre maternidade, trabalho, amor, corpo e menopausa