“Se você não está pagando pelo produto, então você é o produto”. A frase do ex-designer do Google, Tristan Harris, entrou para o vocabulário de quem discute tecnologia a partir da repercussão do documentário “O Dilema das Redes” (2020).
O filme distribuído globalmente pela Netflix destrinchou a lógica por trás do comportamento nas redes: o algoritmo. Uma teia de ações e reações codificadas que trabalham para mostrar no feed opiniões e conteúdos que nos interessam, criando-se assim uma realidade personalizada, a chamada bolha de informação.
Ao que tudo indica, o processo eleitoral já começou a dar passos largos na direção de se apropriar dessa lógica. Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informam que, em 2018, o investimento em impulsionamento de conteúdos nas redes sociais de candidatos em todo o Brasil chegou na casa dos R$ 35 milhões.
Nas eleições municipais de 2020, as cifras praticamente dobraram: foram 68,5 milhões de reais com criação e impulsionamento de páginas na internet.
Dois anos depois, no pleito que elegeu o presidente, governadores e senadores, o gasto total com o mesmo tipo de serviço chegou perto dos R$ 128 milhões.
Eleito em 2020, o atual prefeito de Fortaleza despontou como um dos candidatos que mais investiu em impulsionamento de conteúdos naquela eleição. Dados do TSE apontam que ele gastou cerca de 31% do orçamento de campanha com criação e impulsionamento de conteúdos. Uma das provas de que o orçamento das campanhas tem empenhado cada vez mais recursos no ambiente digital.
E os reflexos do crescimento da importância das redes sociais tem sido observados tanto na reação do público quanto no campo institucional.
Em fevereiro deste ano, a Justiça Eleitoral aprovou a Resolução n.º 23.732/2024, que atualizou as regras para a propaganda eleitoral na internet, implantadas em 2019. Conforme a instituição, o intuito das mudanças foi “deixar mais claras e transparentes as regras relativas à propaganda eleitoral de candidatas e candidatas”.
Mas limitar os conteúdos político-eleitorais é suficiente frente aos efeitos do uso massivo das mídias sociais? Estudos apontam que a onipresença do digital na vida das pessoas tem alterado as formas de consumo, de relacionamento e até do exercício da cidadania.
Para quem utilizou a internet até o final dos anos 2000, o ato de conectar-se à web tinha dia e hora certos. Usávamos a expressão “entrar na internet” até alguns anos atrás. Mas hoje, a pergunta que surge é: em algum momento conseguimos sair da internet?
Nós usamos as redes sociais, consumimos conteúdo das plataformas de streaming e enviamos incontáveis áudios e mensagens por aplicativos, como o WhatsApp, diariamente.
Já existe a internet das coisas. Sem uma conexão constante, um simples ato de apagar a luz ou trancar a porta de casa pode se tornar uma tarefa quase impossível. Na era da Web 3.0, passar a maior parte do dia conectado é uma realidade para a maioria dos brasileiros.
A internet é também a base de uma gama crescente de produtos e serviços controlados pelos maiores conglomerados do mercado. Empresas de receitas bilionárias como, Amazon, Netflix, Google e Facebook, as “Big Techs”, disputam um mercado cujo principal objetivo é conquistar a atenção dos consumidores.
Para isso, elas fazem uso de uma série de técnicas e estratégias que dificilmente são expostas com transparência, sob o pretexto de se tratarem de um “segredo” comercial.
Essa abundante e constante oferta de conteúdos e produtos fez com que a forma de consumir mudasse. Vivemos, agora, na era da Economia da Atenção.
O termo Economia da Atenção criado em 1971 pelo economista, psicólogo e cientista político, Herbert Alexander Simon, busca explicar como a atenção humana pode ser capitalizada e tratada como uma mercadoria, visto que seria um bem escasso.
E como as plataformas se apropriam da atenção do usuário? Estudos conduzidos sobre a cognição humana apontam que um fator central à captura da atenção é o tempo.
“O ritmo imposto pelas plataformas de conteúdo digital é o que cristaliza os efeitos cognitivos pretendidos” explica a pesquisadora Wendy Chun, da Escola de Comunicação da Universidade Simon Fraser, no Canadá.
“O valor dos conteúdos interessa muito menos do que simples fato do engajamento. Para os algoritmos, é indiferente se a expressão for de amor ou ódio”, afirma.
A professora, que dirige o Instituto Democracias Digitais, sugere que a arquitetura das mídias sociais está estruturada a partir de uma lógica temporal de alta velocidade e de estímulo e resposta. Assim, quanto mais usamos as redes, mais temos a sensação de que estamos perdendo alguma coisa.
Um dos efeitos dessa temporalidade das redes sociais é o que ela chama de experiência do imediatismo. Sob essa lógica, o usuário passa a entender como verdadeiro tudo o que chega a seu smartphone em tempo real. Seu acesso ao mundo passa a depender da entrega de conteúdos inéditos, de verdades que estavam supostamente ocultas, de “breaking news”.
“No entanto, não há como garantir que todos os conteúdos que chegam às múltiplas telas a que estamos expostos sejam de qualidade, ou mesmo verdadeiros”, conclui.
No livro Quase um tique: economia da atenção, vigilância e espetáculo em uma rede social, a professora da FGV e doutora em comunicação e cultura Anna Bentes discute a figura do “influenciador digital” como um novo tipo de agente social que media a entrega dessas “novidades” “e verdades” ao público.
Ela ressalta que a figura do influencer também materializa a necessidade de ser visto e reconhecido nas redes sociais. Esse anseio leva os indivíduos a "posarem" e a se apresentarem de maneira cuidadosamente montada.
Assim, a performance constante da identidade, leva a uma máxima desse universo: "a verdade é o que se mostra".
Uma discussão semelhante é proposta em O mundo do avesso – Verdade e política na era digital, da antropóloga Letícia Cesarino, professora da Universidade Federal de Santa Catarina. No livro, a pesquisadora pontua que essas mudanças estruturais incutem nas pessoas a ideia de que é preciso estar em constante movimento e evidência, sob o risco de perder oportunidades e relevância.
“Se ele não posta, não chama atenção para si, não gera engajamento, seu perfil some. Se o sujeito faz o que sempre fez - não se arrisca - ele não vai ficar onde já está, e sim, regredir”, afirma a pesquisadora.
Ela também coloca os influenciadores digitais como figuras centrais na delimitação das “bolhas algorítmicas” que moldam comportamentos ao passo que são alimentadas pelas ações e interesses dos usuários.
Um ambiente digital que privilegia quantidade sobre qualidade. Pressão para agir conforme a tendência. Conteúdos que parecem expor fatos que precisam ser de domínio público.
Essa combinação de fatores ajudou a consolidar um perfil de influenciadores digitais e personalidades famosas nas redes sociais por propagar um discurso inspiracional voltado à superação de crises.
Wagner Guilherme, mestre em Antropologia e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que essas figuras se ancoram no marketing digital - baseado na economia da atenção - parar chegar às camadas sociais mais pobres, que veem nos produtos e conteúdos digitais uma oportunidade de ascensão social.
Nesse modelo de comunicação digital, os coaches - pessoas que atuam como "mentores", apontando planos de ação em diversas áreas - se destacam. Foi o que descobriu o estudo realizado por Flávia Carvalho, do Grupo de pesquisa Publicidade Híbrida e Narrativas de Consumo da Universidade Federal de Pernambuco.
“Para propagar seu discurso inspiracional, os coaches se ancoram em um vocabulário técnico e científico para transmitir a figura de um sujeito crível, que deve despertar a confiança dos seus seguidores e os fazer consumir tanto suas ideias quanto seus próprios serviços de coaching”, resume.
É nesse contexto que se insere uma figura que tem se destacado na disputa eleitoral de 2024, o coach e candidato à prefeitura de São Paulo Pablo Marçal.
O empresário afirma que fez sua fortuna por meio da internet e ao que tudo indica, domina o meio como nenhum dos seus concorrentes. A diferença é que ele agora não quer vender seus cursos e mentorias, mas sim ganhar o voto do eleitor paulistano.
Muito do discurso apresentado por ele está associado ao discurso que usava para promover suas mentorias e o “mindset” que o teria levado ao sucesso.
Flávia Carvalho pontua que a venda ideia de “ser um vencedor” propagada pelos coaches é relativamente recente, e aparece como uma espécie de importação da cultura americana em categorizar as pessoas em “winners” ou “losers”.
Esta concepção, comumente atrelada ao mundo dos negócios, extrapola a lógica comercial e se insere em qualquer situação da vida, explica.
“A partir disso que é possível se falar de uma espécie de produção de indivíduos vencedores e fracassados. E se o sucesso está atrelado ao sacrifício, a uma trajetória permeada de obstáculos e dificuldades, a ideia de vencer na crise soa mais atrativa”, finaliza a pesquisadora.
O historiador e professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) João Cezar de Castro Rocha aponta que essa lógica de venda de conteúdos e informações é explicitamente o que Marçal tem feito na campanha a Prefeitura de São Paulo.
“Nas redes sociais são usados alguns tipos de recursos estratégicos para aumentar a visibilidade de uma pessoa, entre eles o escândalo, a vulgaridade e o grotesco. Quem grita mais alto pode ser escutado. Quem faz a ação mais inusitada, mais absurda, mais bizarra é visto”, explica João Cezar.
Breno Alencar, doutor em Antropologia e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Educação e Cibercultura do Instituto Federal do Pará, corrobora com essa visão. Para ele, romper as barreiras do tabu é um dos grandes trunfos do uso das redes sociais.
“O absurdo chama a atenção”, afirma.
Nesse sentido, quando os discursos virtuais passam a tocar em temas que o na vida offline são vistos como tabus. Quando publicizados, os discursos passam a autorizar os usuário não só a compartilhar a informação (e a desinformação), como a repercuti-la no mundo offline.
O professor cita, ainda, que o movimento não é necessariamente novo. A crescente influência das bolhas de informação em decisões políticas vem sendo construída pelo menos desde 2013.
"Esse movimento começa no referendo sobre a independência da Escóssia, que não frutificou. Posteriormente, no Brexit o processo vai se consolidando, liderado pela Cambdrige Analytica, e aí obtem seu primeiro resultado", explica.
O professor afirma que todo esse processo ganhou projeção a nível mundial em 2016 com as eleições dos Estados Unidos que levaram Donald Trump à presidência, e em 2018 chega ao Brasil nas eleições presidenciais arrematadas por Jair Bolsonaro (PL).
Na visão de João Cezar Rocha, ao final do processo eleitoral de 2024 e independente do resultado, os grandes vencedores serão os candidatos que conseguirem capitalizar a atenção a partir das aparições públicas.
“Em 2021, o Andrew Tate inventou um modelo que até então era inédito: criou um campeonato de cortes dele mesmo, em que pessoas anônimas no mundo inteiro faziam edições do conteúdo absurdamente agressivo, racista, misógino, transfóbico, xenófobo do Andrew Tate e produziam cortes", explica.
De acordo com o professor, Tate pagava em dinheiro ou, dava o prêmio que ele considerava o mais importante de todos: uma visita à sua mansão na Romênia para passar alguns dias com ele.
"Esse é o modelo do Andrew Tate. Foi bem-sucedido? Nós no Brasil ainda não sabemos o que nós estamos enfrentando: o Andrew Tate em 2022, depois de ter criado este sistema, foi o nome mais pesquisado no Google do mundo inteiro”.
Segundo o professor, Pablo Marçal não apenas utiliza o modelo, como o aperfeiçoou. Ele utiliza “cortes negativos”, ou seja, paga para que as pessoas façam cortes de falas que podem trazer uma repercussão negativa, visando tão somente aumentar seu alcance no mundo digital devido às polêmicas que envolvem seu nome.
O historiador comparou o prefeiturável ao modelo político de Javier Milei, da Argentina, enfatizando que sua abordagem tem “um caráter destrutivo”.
"Milei e Paulo Marçal representam a ideia de 'queimar navios' e 'destruir pontes'. Eles não são apenas antipolíticos ou antissistema; representam a destruição de qualquer possibilidade de diálogo entre diferentes, de criação de acordos entre diversos grupos."
Rocha concluiu que a ascensão de perfis como o de Pablo Marçal deve ser vista com preocupação.
"É importante ressaltar que ele não é, de forma alguma, uma continuação ou renovação de Bolsonaro; ele é uma oposição ao Bolsonaro”, finalizou.
Letícia Cesarino também concorda que há um ponto de cisão entre o método tradicionalmente usado pelos bolsonaristas e a abordagem que tem sido usada por outras frentes políticas.
“Há um maior equilíbrio entre a atuação táticas desses influenciadores e os vieses algorítmicos próprios do ambiente, incluindo de fontes que não são essencialmente políticas”, explica.
Dessa forma, os movimentos traçados por essas campanhas colocam os usuários das redes em um movimento que os direciona de forma subliminar. Por meio da dinâmica de interação imposta, as pessoas dentro daquela bolha de influência param de perceber essas ações de direcionamento.
“E daí surge a reação de recusa e indignação quando se acusa essa pessoa de se estar sendo manipulada, cuja reação é, normalmente, inverter a acusação e dizer ‘o manipulado é você’”, finaliza.
Para o professor Breno Alencar a solução para toda essa questão passa, invariavelmente, pela regulação das redes sociais.
"Nosso papel enquanto sociedade é encontrar formas de controlar esse processo sem impedir a liberdade de expressão, que é fundamental, inclusive para um papel crítico. Quando aparecem opiniões que destoam, pode ser um indício de que há algo que o Estado ou a sociedade precisam rever", afirma.
A opinião do pesquisador vai ao encontro do que pensa o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD). Figura central no debate de regulação das plataformas digitais, o parlamentar defende "marcos legislativos que sejam inteligentes e eficientes para disciplinar o uso dessas redes sociais no país".
“Considero isso fundamental, não é censura, não é limitação da liberdade de expressão, são regras para o uso dessas plataformas digitais para que não haja captura de mentes de forma indiscriminada e que possa manipular desinformações, disseminar ódio, violência, ataques a instituições", declara.
O senador conclui o raciocínio dizendo que há um papel cívico que deve ser exercido pelas plataformas digitais de não permitir que o ambiente seja "um ambiente de vale tudo”.
Viktor Henrique Chagas, professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), defende o letramento midiático e político como "ferramentas essenciais", mas faz ressalvas.
"Não é que os indivíduos não saibam do que se trata e sejam enganados. Eles não apenas sabem, como concordam, e por isso compartilham. Assim, talvez não se trate de apostar todas as fichas na educação", pontua.
"A curto prazo, a solução é política. É preciso que os agentes e instituições políticas do campo democrático se reúnam e criem mecanismos para regular o mau uso dessas plataformas. Sem isso, estaremos sujeitos a uma gangorra que oscila conforme os desígnios de quem, naquele momento, se ocupa do poder", conclui.
Um consenso entre os especialistas ouvidos pelo O POVO é que o uso políticos das redes sociais não se trata apenas de um mecanismo técnico, mas de um dispositivo sóciotecnico, que, como outros similares, pode perfeitamente ser "hackeado".
Embora os sistemas de recomendação não sejam eles próprios o problema, o seu mau uso permite a atuação de grupos antidemocráticos. E, por favorecerem essa atuação e não apresentarem uma solução capaz de eliminar esses vieses, é que as plataformas devem ser responsabilizadas. Afinal, elas são as estradas por onde circulam esses conteúdos, e como toda via, sem uma boa sinalização os acidentes são inevitáveis.
Assista ao Pra começo de conversa, sobre eleições, com o jornalista Carlos Mazza
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