2022 será um ano paradoxal para o Brasil. A reflexão é da psicanalista carioca Denise Maurano, autora, entre outros de Torções. A psicanálise, o barroco e o Brasil. Se de um lado, Maurano enxerga a formação de um campo de batalha para as eleições com "guerras inescrupulosas", por outro, afirma que o ano que começa logo mais será de "esperança", porque o Brasil poderá livrar-se do "desgoverno de agora". Sua preocupação, na verdade, é com 2023, uma vez que o atual governo de Jair Bolsonaro está, segundo ela, tomando uma série de medidas que poderão tornar ainda mais difícil qualquer futuro governo que assuma o País.
Psicanalista, com doutorado em filosofia pela Universidade de Paris VII e pós-doutorado em Letras (PUC-Rio), a escritora afirma que no Brasil, as mortes causadas pela pandemia - que assola o mundo desde o início de 2020 -, fizeram parte de um projeto de poder. No entanto, embora, todos os índices que medem a sustentabilidade do País estejam com claros sinais de alerta, Denise não perde a esperança.
Segundo Denise, o País é dotado de "uma capacidade de recuperação "impressionante", que, para ela se estabelece devido às características paradoxais que marcam os brasileiros. "A gente tem recursos inusitados, a gente tem uma cultura extremante rica por conta mesmo da nossa diversidade, da mestiçagem, que nós conseguimos aqui. Ou seja, o Brasil é um país do paradoxo". Denise Maurano conversou com O POVO, na última quinta-feira, 16, por chamada de Zoom. Confira a entrevista também em vídeo.
O POVO - Em primeiro lugar parece quase impossível não falar sobre nossa experiência recente de pandemia mundial. Você acredita em algum aprendizado novo dessa experiência humana em curso?
Denise Maurano - Num primeiro momento eu pensei que a gente fosse tirar daí uma bela lição no sentido em que, curiosamente, esse vírus pegou primeiro as pessoas mais abastadas, as que podiam viajar e daí a mobilização em torno de medidas preventivas foi muito grande e eu imaginei que isso trouxesse para nós uma dimensão mais fraterna, que identificasse que estamos todos nós no mesmo barco. Nós humanos, sejamos mais abastados ou carentes de recursos. Enfim, tive muita esperança de que alguma coisa promovesse um impulso à solidariedade. Acho que num primeiro momento isso até aconteceu, mas a expansão geral do vírus acabando por afetar mais os desfavorecidos no final das contas, acabou por trazer uma certa banalização da morte.
O POVO - Você acha que no Brasil isso aconteceu mais do que em outros países?
Denise Maurano - Eu acho que no Brasil isso foi uma política de Estado. Foi uma forma de se fazer uma reforma da previdência, no sentido em que morram os mais fragilizados, que morram aqueles com quem o Estado tem de gastar dinheiro, os idosos com as pensões, os mais carentes com as bolsas famílias, enfim, foi uma política de Estado que veio bem na direção de extermínio de facções da população. Essa proposta genocida que a gente vê acontecer de maneira cada vez mais descarada. Sem dúvida, não à toa, a gente andou e está andando tão para trás em termos civilizatórios diante dos avanços que a gente tinha conseguido.
O POVO - Por que, na sua opinião, a morte nos assustou tanto durante esse tempo, apesar da sua presença tão marcada na nossa experiência cotidiana contemporânea? O quê de diferente, você considera que essa morte pandêmica nos trouxe?
Denise Maurano - Eu acho que, primeiro, porque ela trouxe a surpresa da gente não saber por onde ela poderia chegar e em qualquer momento, qualquer esquina, qualquer cruzamento com alguém, qualquer abraço. A morte passou a ser uma ameaça a partir de gestos que eram gestos de vida. Abraçar alguém, estar perto de alguém. Isso tudo passou a ser uma grande ameaça, coisa com a qual a gente não estava acostumada. A morte ficou à espreita numa dimensão um tanto quanto sorrateira.
Eu acho que isso foi o que trouxe uma publicização maior da morte na pandemia, porque efetivamente ela democratizou esse impacto. Por isso, eu digo que num primeiro momento a pandemia trouxe essa grande novidade e aí a gente viu nesse primeiro momento grandes empresas fazendo grandes doações, pessoas se mobilizando, coisa que a gente não está mais vendo agora.
O POVO - Embora a necessidade seja tão grande quanto antes não é?
Denise Maurano - Ainda maior, porque agora a gente está lidando com as consequências. O furacão passou ou pelo menos arrefeceu e a gente está lidando com as consequências disso. Teve isso, teve o rebote, ao meu ver, no qual todos nós fomos catapultados pelo mundo tecnológico, o mundo digital, o mundo virtual, o que abriu janelas extremamente interessantes.
Então, me aparece que nesse sentido a gente foi obrigado a avançar e eu acho que isso é uma evolução importante. Certas áreas eu acho que ganharam uma visibilidade que nunca tinham tido a oportunidade de ter antes, como a psicanálise. Eu acho que a psicanálise e a publicidade que a psicanalise ganhou com a pandemia foi enorme, porque diante do horror real desse incontrolável e impossível de prever que o vírus trouxe não tinha remédio nem prevenção, não tinha comportamento programado ou programático que sensibilizasse esse medo, e com isso a psicanálise se colocou como, usando uma expressão do Lacan, esse pulmão artificial que possibilitou um certo respiro diante de tanto fechamento.
Então, eu acho que a psicanálise ganhou nesse período, o que não impediu que certos problemas acontecessem, com um mercado de psicanálise sem o menor critério, sem a menor condição sendo propagados, trambicursos, trambescolas acontecendo de todo jeito.
O POVO - Durante a pandemia, os clubes de leitura viveram um boom e várias pessoas afirmam que ter um espaço de fala foi muito importante para elas. Por que esse espaço da fala e da escuta é tão primordial?
Denise Maurano - É exatamente isso. É interessante a gente perceber o quanto a voz ainda mais do que olhar ou o olfato e outros sentidos tem uma potência para nós humanos extremamente importante na singularização mesma da nossa própria humanidade. Somos humanos porque somos seres falantes, habitamos o mundo da linguagem e quanto o mundo estava explodindo lá fora, dentro dessa perspectiva de mil ameaças que fizeram com que nós ficássemos trancafiados em casa, o veículo da fala continuou sendo possibilidade por - meio desses - recursos tecnológicos e inventivos que surgiram com a pandemia.
O POVO - Por outro lado, a vida parece ter recebido um pouco mais de atenção. É como se de tão desgastada e desumanizada, sequer nos déssemos conta de que estávamos vivos. Você percebeu isso também?
Denise Maurano - Eu acho que tem toda possibilidade disso acontecer, mas eu não acho que a gente esteja livre ainda para que isso aconteça. Porque a gente ainda está sob o julgo desse governo despótico não senso que está presente, fazendo as maiores barbaridades. Mas eu acho que tem tudo para isso acontecer, porque basta ver qualquer possibilidade de encontro está sendo uma efervescência enorme.
Curioso isso porque é uma inversão mesmo em nome de valores como família, tradição. Está havendo uma defesa do atroz, do absurdo. Tem uma teoria que não sei se você já teve contato de que há um projeto pautado por uma teologia da dominação que está em franco curso há um tempo no país. A gente está assistindo isso e eu acho isso muito, muito, muito perigoso.
O POVO - O que seria essa teologia da dominação?
Denise Maurano - Essa teologia da dominação seria uma aliança entre várias forças religiosos não apenas evangélicas pentecostais, mas também cristãos conservadores, numa perspectiva de uma certa promoção de ideias conservadores que buscariam colocar o país numa direção de está longe, muito longe de caminhar em prol do progresso. Algo na via do retrocesso, na via do precário culturalmente.
O POVO - Em 2022, muitos analistas políticos têm afirmando que o ano eleitoral trará componentes mais difíceis para o campo político. O que você considera que devemos esperar de 22?
Denise Maurano - Eu acho acho será um ano muito paradoxal, porque ao mesmo tempo em que é um ano que abre um campo de batalha aonde a gente sabe que vão acontecer as guerras mais inescrupulosas no campo político, acho também que vai ser um momento de esperança, porque já que nenhum impeachment funcionou, já que a gente está engolindo essa atrocidade que está sendo esse governo, desse desgoverno, 2022, com as eleições traz a esperança que isso acabe.
Eu estou muito preocupada com 2023, porque dentre essas atrocidades que estão sendo programadas para minimizar o impacto de 2022 para tentar não desgastar ainda mais esse governo, medidas como o Auxílio Brasil, precatórios, empréstimos sendo liberadas, essa abertura das porteiras – de gastos -, certamente vai trazer para 2023 uma situação extremamente difícil para quem vier a administrar esse país.
O POVO - O País está sendo jogado num poço de desconfiança internacional, seja pela democracia cambaleante, seja pela política irresponsável com o meio-ambiente. O pensamento e arte foram interrompidos no Brasil. Ainda é possível ver o que o Brasil de hoje tem de bom?
Denise Maurano - Eu sempre consigo ver coisas boas no Brasil. Eu acho que a gente tem uma capacidade de recuperação impressionante, a gente tem recursos inusitados, a gente tem uma cultura extremante rica por conta mesmo da nossa diversidade, da mestiçagem, que nós conseguimos aqui. Ou seja, o Brasil é um país do paradoxo. A gente tem aqui do melhor e do pior. Eu acho muito diferente da organização que existe em outros países como Estados Unidos, França, Alemanha, Inglaterra mesmo os argentinos, a gente tem aqui um modo de interação, um modo de operar com as coisas que é muito singular, que é muito nosso. E que eu acho que nem de longe a gente valorou o suficiente.
Nessa ascensão que o Brasil teve nesses anos que você mencionou, isso foi tocado. Tem um sociólogo francês chamado Michel Maffesoli que tratava o Brasil como um laboratório da pós-modernidade num sentido positivo disso. No sentido de que essa modernidade brasileira abria campo para um universo de invenções dada a nossa liberdade, porque aqui está tudo por fazer, seria nesse sentido. Num dos meus livros que eu trabalho a questão do torções – Torções. A psicanálise, o barroco e o Brasil – eu penso essa dimensão que a gente chama de barroca da nossa cultura, essa lida com o paradoxo, como algo que favorece uma apreensão da condição humana que está muito mais próxima do que somos no real das coisas, do que no ideal composto, um ideal civilizatório aonde tudo estaria nos seus lugarezinhos.
É como se o nosso barroquismo favorecesse uma invencionice que possibilitasse a abertura de novas soluções que eu acho que é o que o mundo está precisando. Eu acho que a gente está diante de uma crise civilizatória.
Eu sou uma das pessoas que apostam que o Brasil é um celeiro fecundo para novas propostas, para novas visões, dado a nossa jovialidade civilizatória, dados a nossa cultura mestiça. Agora, nós temos um problema seríssimo que é: Tudo isso só vai poder avançar se em termos educacionais, a gente tiver sustentado algumas bases sólidas para abrir novos caminhos e no momento onde justamente é a educação que está ruindo por terra, aonde há essa falsa proposta que vem com a teologia da dominação surge essa manipulação da educação em prol dos valores decaídos que não sustentam mais o mundo contemporâneo, fica difícil. Temos muito o que transpor para poder chegar num lugar que eu acho que a gente pode chegar. O Brasil, sem dúvida é um país que tem uma expressão mundial extremamente importante e a gente tem que se apropriar disso.
O POVO - No seu livro "Torções. A psicanálise, o barroco e o Brasil", você fala sobre o “ato” como o lugar entre o conformismo e a reação. O que seria o “ato” hoje para nós, os brasileiros?
Denise Maurano- É interessante você pegar isso pela via política porque a reação é o voto contra. Vou votar contra. E o conformismo é isso: não vou fazer nada, porque nada vai mudar, porque vai continuar assim mesmo, enfim, deixa o barco correr. O ato vai na direção de você se responsabilizar por botar fé, acreditar e trabalhar em prol de alguma coisa que você acredite, então, nesse sentido está mais do que na hora de cada um de nós assumir um ativismo político que é essencial nesse momento. Nós temos essa oportunidade. 2022 está aí para isso. Então, sair da reação e sair do conformismo, eu acho que é a única perspectiva que abre um caminho para que a gente possa, cada um, dentro das suas convicções, dentro daquilo no que acredita assumir a responsabilidade por apostar em alguma coisa e lutar por isso. Lutar com argumentos, lutar com ideias, lutar com fé, lutar com posições. O ato estaria mais próximo da invenção, da criação e da esperança, da aposta.
Uma reflexão sobre os temas que vão repercutir em 2022