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Júlia Miranda: Dados sobre religião no Brasil mascaram diversidade religiosa
Reportagem Seriada

Júlia Miranda: Dados sobre religião no Brasil mascaram diversidade religiosa

De acordo com a socióloga, professora recém aposentada da UFC, Júlia Miranda, os estudos sobre religião e política no Brasil estão vivendo um momento de franca ampliação. Para ela, as práticas político-partidárias ganharam novas articulações a partir da formação dos grupos evangélicos em frentes parlamentares no Congresso, disputando força política e influenciando o Executivo
Episódio 3

Júlia Miranda: Dados sobre religião no Brasil mascaram diversidade religiosa

De acordo com a socióloga, professora recém aposentada da UFC, Júlia Miranda, os estudos sobre religião e política no Brasil estão vivendo um momento de franca ampliação. Para ela, as práticas político-partidárias ganharam novas articulações a partir da formação dos grupos evangélicos em frentes parlamentares no Congresso, disputando força política e influenciando o Executivo
Episódio 3
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Nos anos de 1980, a socióloga Júlia Miranda já pesquisava religião. O tema, de alguma forma, esteve presente desde sua infância, antes mesmo de se descobrir pesquisadora. Estudou em colégios de freiras católicas e de missionários batistas. Com um pai que se declarava "ateu pós-católico" e uma  mãe "levemente católica", a filha cresceu sem religião, porém afirma: "Todas me fascinam".

Uma observadora de décadas da política com toque religioso, ela viu surgir o embrião do que seria a Frente Parlamentar Evangélica, criada em 2003,  se transformar nas atuais bancadas evangélica e católica que reúnem 311 parlamentares e formam uma boa parte da rede de apoio do presidente Jair Bolsonaro, eleito com o massivo votos dos evangélicos e apoio dos principais líderes religiosos não católicos do País.  

O presidente eleito Jair Bolsonaro durante reunião com a bancada evangélica(Foto: Rafael Carvalho/ABR)
Foto: Rafael Carvalho/ABR O presidente eleito Jair Bolsonaro durante reunião com a bancada evangélica

Para a socióloga, professora recém- aposentada do Programa de Pós-Graduação em  Sociologia da UFC, pesquisadora do CNPq - até junho de 2022 e diretora do Núcleo de Estudos sobre Religião, Cultura e Política do Programa de Pós Graduação e Sociologia da UFC (Nerpro), os dados sobre religião no Brasil são "generalistas" e escondem uma verdadeira miríade de correntes religiosas cristãs católicas e evangélicas e de outros matizes como as que origem africana, sem falar nos ateus e os sem-religião. 

A professora Júlia Miranda, autora de "O Poder e a fé" e "Carisma, Sociedade e Política" aborda, nesta entrevista, as principais mudanças na ocupação do campo político por religiosos do segmento conversador de várias correntes cristãs. Ela destaca ainda que as pesquisas sobre religião no País têm encontrado terreno fértil para novas reflexões, principalmente a partir da chegada de Jair Bolsonaro (PL) ao poder. A seguir, os principais trechos da conversa, travada por e-mail e WhatsApp entre dos dias 21 e 22 de últimos: 

O POVO - Podemos começar essa conversa falando sobre o espaço das pesquisas em religião e política no Brasil. Como você analisa o atual estágio das pesquisas nesse campo?

Júlia Miranda - As possibilidades de relacionar religião e práticas sociais são hoje cada vez mais ricas. A sociologia da religião iniciou o século XXI explorando as teses da desprivatização e desinstitucionalização do religioso assim como da dessecularização das sociedades no mundo moderno. Nesta última década ampliou sua área de estudo para tratar “do lugar da religião no espaço público” através da observação dos fatos ligados à construção de identidades religiosas e políticas (latu e stricto sensu), no Brasil mais especificamente das práticas político-partidárias. Tradicionalmente reduzidas à participação da Igreja católica como ator os estudos seguem atualmente as articulações entre atores e práticas evangélicas e católicas no campo político, na área dos direitos humanos, nas instâncias e instituições jurídicas entre outras.

 

 

 

O POVO - Essas pesquisas, no seu ponto de vista de pesquisadora da religião, sinalizavam para esse movimento recente de apropriação do sagrado e fé canalizadas para a política partidária como se vê hoje na sociedade brasileira, principalmente capitaneada pelo presidente Jair Bolsonaro?

Júlia Miranda - No Brasil, a construção de uma representação evangélica logo chamada de “bancada evangélica” durante os trabalhos da Constituinte (86/88) e hoje Frente Parlamentar Evangélica (criada em 2003) foi ampliando as práticas da população auto identificada como evangélica nas eleições (de 2006 a 2018). Daí os laços com o poder passaram das parcerias em políticas sociais e defesas de benefícios fiscais e outros interesses particulares para a eleição de um número cada vez maior de parlamentares e executivos, locais, estaduais e nacionais.

Campanhas eleitorais altamente planejadas como as da Igreja Universal nos últimos anos 1990 e no início dos 2000 “copiadas” em seguida pelas Assembleias de Deus e outras denominações foram acompanhadas pelo crescimento da visibilidade de lideranças apegadas – pelo menos no discurso – aos valores “ditos do Evangelho”.

 

 

Líderes religiosos conquistam mandatos a partir de ministérios pastorais

 

O POVO - Quais os recursos simbólicos usados pelo poder religioso que na sua opinião tem conseguido criar condições para eleição de tantos líderes de igrejas?

Júlia Miranda - Deputados evangélicos foram processados por corrupção e igrejas expostas por enriquecimento ilícito, mas não parece que isso tenha inibido o proselitismo crescente em templos criados a toda hora país afora. Templos esses com seus prosélitos se engajando cada vez mais intensamente na “política” através das campanhas para candidatos “da igreja” ou hoje identificados como “fiel”, “cristão” ou “homem de deus”.

Pastores e bispos e agora também diáconos, irmãos e missionários são os candidatos. Televisão e mídias digitais vêm sendo renovadas ou criadas, a comunicação é universalizada ao mesmo tempo em que permite, através do virtual, a criação do que eu venho chamando de “novos espaços comunitários de produção de sentidos” ou espaços comunitários de outro tipo (ainda não sei como designá-los nem considero isso o mais importante). São comumente chamados de ”bolhas” virtuais.

Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante entrevista ao pastor Silas Malafaia,um dos principais líderes evangélicos do País(Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República)
Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante entrevista ao pastor Silas Malafaia,um dos principais líderes evangélicos do País

O POVO - Como você analisa as posições dos principais líderes dos evangélicos neo-pentecostais que são os principais apoiadores do atual governo.

Júlia Miranda - Na segunda década deste século, a pauta de costumes e o seguimento cego da Bíblia e dos trechos selecionados e interpretados por pastores nos templos, deu suporte à candidatura de Bolsonaro e tem apoiado seu governo no que tange ao descaso pela saúde, pela educação, pela cultura, pelos direitos de minorias e pela preservação do meio ambiente (cortes de verba, redução da participação da sociedade civil, nomeações de pessoas sem nenhuma formação ou experiência para os cargos entre tantos fatos passíveis de conferência em fontes oficiais).

Os chamados estudos de Religião e Política têm contemplado particularmente, através de dados estatísticos, a relação entre denominações cristãs e Governo Federal. Lembro que a sociologia da religião tem como objeto principal questões como: Existe hoje, no seio das sociedades modernas (de vários tipos) uma relação entre as crenças religiosas e as condutas, de modo a transformar ideias religiosas em eficazes forças históricas de transformação? Em que medida existe um ajustamento entre o discurso mobilizador e as chances reais de ação? Mas essa é outra análise.

O POVO - No início dos anos 2000, os principais líderes evangélicos apoiaram o PT. Quase duas décadas depois, apoiaram Jair Bolsonaro. Como você analisa o movimento e o crescimento do poder político dos evangélicos, especificamente durante o governo Bolsonaro?

Júlia Miranda - A celeridade das mudanças sócio-políticas e religiosas no Brasil pós eleições de 2018 tem deixado analistas acadêmicos e jornalistas às voltas principalmente com o rico e nada fácil acompanhamento de falas, práticas de campanha eleitoral e de aproximação com o Planalto, da expectativa de votos religiosos e de estatísticas sobre apoio político de lideranças. São estudos muito importantes, claro, para propiciar uma análise diacrônica e fornecer dados a sociologia da religião.

Gostaria de chamar a atenção para a crescente visibilidade de grupos católicos que beiram o fundamentalismo e estão ativos nas redes sociais (alguns falando raramente ou nunca explicitamente de política) e para a crescente militância e visibilidade midiática dos católicos carismáticos cuja diversidade é muito mais significativa do que eu teria espaço para falar aqui. Esses estão muito ativos na política partidária também e nas redes sociais, através de lideranças religiosas, laicas e membros de diferentes tipos de comunidades e grupos de oração. Em 2015 por iniciativa do então deputado federal Givaldo Carimbão (PROS/ Alagoas) foi criada a Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana.

 

 

O POVO - Falar em religião e política no Brasil é falar num universo extremamente diverso e polêmico. Como estudiosa do tema há bastante tempo, você considera que há desinformação sobre as religiões brasileiras, sejam as cristãs sejam as de matriz africanas?

Júlia Miranda -  Você me pergunta sobre o universo religioso brasileiro. Seria tema para uma disciplina pois permite inúmeras perspectivas de análise, prejudicadas inclusive pela generalidade com que o tema é tratado pelo Censo do IBGE (o último é de 2010) e pela parcialidade dos dados disponíveis nos sites das diversas denominações. Somos majoritariamente cristãos, o que quer que isso signifique, pois há brasileiros cristãos anti-ciência, pro vida na prática de “somente algumas”, intolerantes em relação a gêneros, etnias, etc.

Entre eles e numa rápida olhada, temos o chamado universo evangélico, com suas igrejas protestantes históricas e renovadas, as pentecostais e neo-pentecostais. Completam esse cenário, as religiões de matriz africana (também variadas), o kardecismo, o islamismo cujas comunidades crescem, o judaísmo (hoje ligado ao cristianismo católico e evangélico de vários matizes), os adeptos de crenças ou filosofias orientais e nativas. Do ponto de vista institucional o país tem cada vez mais indivíduos “sem igreja” e “sem religião” no Brasil também classificados como “ateus”.

O catolicismo, que ainda hoje é chamado de religião do Brasil, já não tem qualquer sentido sem um complemento (oficial, da libertação, tradicional, carismático de tal ou tal tipo, etc) e ainda assim necessita aprofundamentos que não há espaço aqui para fazer. Neste início de século a aproximação dos católicos com a política que as pesquisas mostram é com foco nos carismáticos. Na segunda metade do século XX foram as CEBs, os Circulos Bíblicos e depois da Proclamação da República sobretudo o chamado “catolicismo oficial”. Há inúmeras observações a fazer sobre isso mas, como dito, não cabem neste papo.

 

 

Fim de uma era de pesquisas

 

O POVO - Você criou e coordenou durante muitos anos o Núcleo de Estudos da Religião no curso de Sociologia da UFC. Quais as principais contribuições desse laboratório de pesquisa sobre essa temática tão atual no Brasil contemporâneo?

Júlia Miranda - O Núcleo de Estudos sobre Religião, Cultura e Política do Programa de Pós Graduação e Sociologia da UFC  (Nerpro) foi criado em 1997 por iniciativa minha como interessada nessa área desde os anos 80 e buscando aglutinar interesses, estudos e projetos. Permaneceu até este ano de 2021, como uma instância que reúne (não necessariamente de maneira física) estudiosos e pesquisadores dos fatos religiosos: tradições, temáticas, atores e práticas, articulação com outros campos de produção de conhecimento.

Reuniu pesquisadores em vários níveis de estudo e pesquisa de inúmeros cursos da UFC, esteve em relação direta e constante com pesquisadores da religião no Ceará (UECE, URCA) e em outros centros no Brasil (UFJF, USP,UFRJ,UERJ,UFPe, Unisinos ,PUCs RIO e RGS, UFRGS entre outras). Chegou a estabelecer acordos internacionais ou a participar de outros (Capes/Cpfecub e CEIFR/EHESS). Infelizmente, poucos são os professores do PPGS que nesses últimos anos têm mostrado interesse particular por essa área de estudos sobretudo na perspectiva da sociologia da religião.

A religião como lembrou há templos (o antropólogo Cliffor) Geertz virou um apêndice de estudos centrados em reflexões com ênfase em outras realidades (economia, feminismo, violência, etc) onde o olhar da sociologia da religião quase nunca é central.

O POVO - Com sua aposentadoria, o núcleo foi extinto. Quais os prejuízos você elenca decisão no campo das pesquisas sobre religião, política e poder?

Júlia Miranda - Eu estou me afastando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia como professora titular aposentada. Encerram-se as atividades do Nerpo e dissolve-se o grupo de pesquisa Religião e Politica no Diretório do CNPq (de cuja bolsa de produtividade também me afasto) lamentavelmente, na minha opinião, em um momento particularmente rico em discussões e produções teóricas e empíricas sobre religião e espaço público dentro e fora do Brasil. O Nerpo sempre contou com o integral apoio dos colegas do PPGS, mas parece que não o suficiente para continuar. Perdeu o fôlego por várias razões depois de uma rica produção de dissertações, teses, publicações nacionais e internacionais, resultantes do trabalho conjunto de professores e estudantes.

 

 

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