Em dois anos de pandemia, o mundo viu a Ciência desdobrar-se para entender o funcionamento do vírus Sars-Cov-2, desenvolver e aprovar vacinas em menos de um ano. Durante 2021, os países que avançaram na vacinação tiveram redução nos óbitos. No entanto, a desigualdade na distribuição dos imunizantes favorece o surgimento de mais e mais variantes, como a Ômicron.
A pandemia segue em 2022, mas com novos desafios. Equidade de vacinação, alcance de 80% da população vacinada e, além disso, o cuidado com a Covid-19 prolongada — como têm sido chamadas as sequelas da doença não só nos pulmões, mas nos rins, no coração, no cérebro e nos músculos.
Entender as movimentações científicas e sociopolíticas do último ano é essencial para projetar os desafios de 2022. Para isso, o médico virologista Eurico Arruda, professor titular de Virologia na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), analisa os avanços da pandemia no mundo e no Brasil, e discute quais deveriam ser as prioridades na Saúde e Ciência para o ano novo. Confira a entrevista:
O POVO - Como o senhor analisa o que foi 2021 em relação à pandemia?
Eurico Arruda - O progresso na pandemia em 2021 foi a introdução das vacinas, a vacinação mundial. Infelizmente não em todos os países do mundo, por causa da falta de equidades de justiça social no planeta Terra. Mas, pelo menos, temos que apurar o ganho de 2021 que foi a introdução bem sucedida de vacinas que foram desenvolvidas rapidamente.
A pandemia começou no final de 2019, praticamente no começo de 2020 e após um ano, até menos, as vacinas já estavam disponíveis. Foram feitas várias, com diversas modalidades, mas todas as vacinas conduzindo a um comum: se o seu uso for massivo em um grande número de pessoas vai haver uma redução dos casos graves de pandemia. E nós tivemos muito menos mortes do que em 2020.
Então, por causa disso, aquelas primeiras notícias da vacina, principalmente da CoronaVac, foram no sentido de dizer que a vacina não era tão boa porque só prevenia 50% das infecções e tal. Ora, era uma medição baseada em um teste laboratorial, o teste de anticorpo neutralizante, um teste que para coronavírus nunca foi bom. Nunca foi bom quando na verdade a imunidade para coronavírus é muito mais dependente das células T do que propriamente de anticorpos.
Anticorpos funcionam e ajudam, mas as células T, principalmente as células T de memória, são muito mais importantes na proteção contra a doença do que contra a infecção. Então, hoje nós sabemos que as vacinas, todas elas quase que quase iguais em termos de eficácia de prevenção contra a doença. Infelizmente, houve uma politização que retardou a vacinação.
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Mas falando agora do que a gente tem na mão: a gente tem vacinas para uma boa parte da população brasileira. E a gente está marchando para a normalidade. Só que aí a surpresa vem, não daqui, mas de fora. Porque há países cuja população, infelizmente, não teve acesso à vacina. Ou teve acesso a uma quantidade muito pequena, numa proporção muito pequena para a dos habitantes, como o sul da África.
O POVO - Durante palestra nos Encontros Universitários da Universidade Federal do Ceará (UFC), o senhor comentou que o G-7 se reuniu para discutir essa questão da vacina após o surgimento da variante Ômicron e definiu esse encontro como hipócrita. Afinal, essa variante deixou muito evidente como a desigualdade social impacta os países globalmente. O senhor acredita que a postura das potências econômicas vai mudar em 2022 considerando a distribuição das vacinas?
Eurico Arruda - Olha, eu gostaria de ser muito otimista (risos). Eu até sou otimista. A China, por exemplo, prometeu um bilhão e duzentos milhões de doses de vacina para a África. E essa é uma promessa que eu considero poderosa, né? Um bilhão e duzentos milhões de doses de vacina é muita coisa, e a China prometeu não só para o sul da África, mas para outros países mais necessitados, vamos dizer assim. Isso é uma visão maravilhosa, porque nós não vamos nos livrar desse vírus se o planeta não estiver todo vacinado.
Então, olha só, a última vez que eu chequei o número de doses de vacinas já distribuídas — não estou falando aplicadas porque aplicada é chegar no braço —, se tivesse sido distribuída para todo mundo do mundo, a gente teria toda a população adulta do planeta, ou 80% da população adulta do planeta vacinando. É claro que não foi isso que aconteceu.
Então tem países que compraram quatro vezes a sua população em doses. Por quê? Porque como é um país rico ele prefere dar a quarta dose, a quinta dose pros seus habitantes do que se preocupar que tem gente lá não sei onde que não tomou nenhuma dose. E é nessa pessoa que não tomou nenhuma dose onde as variantes vão surgir. E depois você vai ter que correr para aplicar a sexta dose, a sétima dose de uma vacina que já vai precisar ter que ser mudada para poder cobrir aquela variante.
É um raciocínio torto. O mundo tem dinheiro suficiente pra fazer isso. Seria a reunião de todos. Eles poderiam falar: “Gente, é o seguinte, nós sabemos que a gente não vai se livrar desse vírus se a gente não vacinar todo mundo. Nós temos vacina o suficiente para 80% da população adulta da terra. Vamos distribuir? Parar com esse negócio de terceira, quarta, trinta dose e vacinar todo mundo?”. A gente estaria numa outra situação.
Só que para isso dependeria de uma liderança mundial, uma liderança global que eu acho que está longe de nós chegarmos a esse ponto do do desapego, do desprendimento. A primeira coisa que aconteceu quando surgiu a Omicron foi querer fechar a África. Isso é o tipo do comportamento hipócrita também. É consequência de você não ter feito a prevenção que deveria ter feito.
O POVO - Acho que isso nos faz pensar nos desafios que vamos enfrentar em 2022. Em 2020, foi tentar entender como funcionava a doença e desenvolver a vacina. Em 2021, foi distribuir a vacina. Então o que que a gente pode encarar em 2022?
Eurico Arruda - Nós, felizmente, conseguimos (as vacinas) às custas de muito embate, essa que é a verdade, e pressão sobre os ministérios da Economia e da Saúde para que a coisa acontecesse. Várias coisas que a gente só ficou sabendo depois, mas que vieram à tona. Mas finalmente nós conseguimos vacina suficiente para vacinar. Já estamos agora oferecendo a terceira dose para vários subgrupos. Eu sou a favor de vacinar todo mundo, deveríamos vacinar adolescentes e crianças. Isso porque tem o vírus circulando em crianças; elas não têm a doença grave de fato, mas elas são emissoras do vírus, com alta carga viral.
O que eu penso para 2022 é que a gente precisa manter a vigilância da Covid-19. Ela tem que ser feita diagnóstico de caso e sequenciamento. Porque tem que conhecer o que está circulando no Brasil. A gente não pode ficar só dependendo das notícias internacionais alarmantes sobre o surgimento de uma variante não sei quê. Eu nem sei qual é a próxima letra grega para substituir a Ômicron.
Mas em termos de coronavírus para 2022 é isso que nos aguarda. O mundo hoje é uma aldeia global mesmo, não tem mais como isolar nada de ninguém, entendeu? É pura fantasia, eu acho. A gente tem que aguardar tendo a vigilância sobre o que vai acontecer no Brasil.
O POVO - Outra questão são as sequelas da Covid-19, que não afetam só os pulmões, elas vão para todos os cantos, inclusive tendo efeitos psicossomáticos. Como o governo deveria tratar isso? Porque, no Brasil, mais de 22 milhões de pessoas tiveram Covid-19. Delas, 616 mil morreram e as outras provavelmente vivem com essa Covid-19 prolongada…
Eurico Arruda - Isso. É isso que estão chamando de longa covid ou de síndrome pós-covid né. Esse é um ponto muito, muito importante. A pandemia não vai acabar assim, como se corta uma cenoura. Vai ser algo que vai afinando, vai diminuindo… Esse vírus vai se tornar endêmico e possivelmente a gente vai lidar com ele no futuro como a gente hoje lida com outros que já circulam e aos quais já até nos acostumamos a lidar.
Mas com a síndrome pós-covid, a gente tem que aparelhar um fim pra isso. Então é a defesa inabalável do Sistema Único de Saúde. Aqui a gente tem um Sistema Único de Saúde centralizado, mas com informações sobre todos os recantos do Brasil. Tanto que rapidamente você consegue vacinar um monte de gente usando a rede de postos de saúde, uma coisa que não tem em todo lugar do mundo e que às vezes a pessoa daqui do Brasil não se dá conta e fala mal…
O SUS sofre muito tipo de crítica, principalmente das empresas que querem privatizar a saúde, fazer da saúde uma uma mercadoria. Mas eu sou um defensor incondicional do SUS e acho que a gente tem que trabalhar por dentro do SUS nessa síndrome síndrome pós-covid.
O Ministério da Saúde vai ter que encarar isso criando ambulatórios de especialidade, por exemplo, de infectologia específicos para longa Covid-19. E não só de infectologista, porque a coisa é complexa. Tem que ter multiprofissionais. Então tem pessoas sequeladas, eu conheço amigos meus que tiveram Covid-19 que levaram seis meses para recuperar a força muscular! Não tinham força muscular, mal conseguiam andar e se alimentar. E não conseguiam fazer exercício, não conseguiam mais nem trabalhar. Só agora estão voltando, porque foram para a fisioterapia, e essas coisas vão ter que estar disponíveis para essas pessoas com pós-covid dentro do Sistema Único de Saúde.
Eu acho que esse é um ponto fundamental e a gente ainda vai aprender muito sobre pós-covid, porque tem coisas que a gente não sabe ainda. Por exemplo, a detecção do vírus no esperma. O que que vai ser? Será que isso é crônico? Será que um homem fica com o vírus capaz de transmitir isso prolongadamente pela vida sexual? É uma coisa que está interrogada né? O que vai ser por exemplo das crianças que nasceram de mãe que tiveram Covid-19 durante a gestação? Elas aparentemente são normais, mas os pediatras vão ter que estar alerta. Os idosos que tiveram Covid-19 que desencadearam uma demência… É igual ao Alzheimer ou essa demência dá pra resolver? Dá pra reverter?
O desenvolvimento de remédio é outra abordagem. Há boas notícias no fronte, porque saiu aí uma inibidora que parece ser suficiente para curar. No caso muito cara ainda, mas é um caminho. E, depois de tudo isso, será que vai precisar tratar pessoas um tempo após a doença aguda? Será que ainda tem vírus remanescente?
O POVO - Só no século XXI, tivemos três epidemias de coronavírus no mundo. O Sars-Cov, em 2002, a Mers, em 2012, e agora o Sars-Cov-2. Quais são os fatores desse século que estão favorecendo o surgimento tão frequente de doenças respiratórias?
Eurico Arruda - Muita gente não gosta de ouvir, ou às vezes entra por um ouvido e sai pelo outro. A gente convive com uma biosfera cheia de elementos, tanto da fauna, quanto da flora, e está tudo cheio de vírus. Esses vírus não são maléficos para aqueles animais, pois eles já se adaptaram e persistem em roedores, em morcegos, em insetos… No entanto, o ser humano, nessa ânsia incompreensível de devastação ambiental em nome de dinheiro, em nome de ganância, causa a devastação planetária que a gente está falando.
Recentemente, em São Paulo capital, tivemos um caso de uma pessoa que pegou um arenavírus, gravíssimo, por sinal até morreu. Ela pegou de um roedor numa caverna de visitação. Está cheio de roedores na caverna, porque é hábito natural deles — cada vez que você destrói o mato eles buscam refúgio. Mas essa restrição dos animais é uma urgência cuja luz vermelha deveria estar pintando na cabeça de toda a humanidade! E enquanto a gente não fizer isso, as epidemias vão se suceder.
Agora, nós podemos fazer trabalhos científicos, no sentido de minorar o sofrimento que essas próximas pandemias vão causar… Porque elas virão, não tenho dúvida que isso é só uma questão de esperar. Mas a gente pode se preparar para não sofrer tanto quando elas vierem, aplicando o que a ciência já tem.
É preciso investir, e é muito menos dinheiro do que o dinheiro gasto na pandemia para tratar. Se a gente investisse, por exemplo, em reconhecer o vírus da fauna, examiná-los, fazer lista deles e escolher quais são os mais plausíveis como candidatos à próxima pandemia…
E isso é possível de fazer, há ferramentas para isso, principalmente as genômicas e de computação. E essas predições eu posso dizer: “Olha, eu acho que o próximo vírus pode ser esse aqui, então vamos deixar ele meio estudado, meio caminho andado. Qual é a proteína que vai valer pra ligar na célula pra gente já começar uma vacina?” Não precisa sair vacinando todo mundo já para ele não. Mas para ter a vacina meio pronta. Para quando a pandemia acontecer, a resposta será rápida. Isso é possível fazer.
O POVO - Esse fator ambiental vem junto com a COP-26, que foi bem frustrante em termos de acordos internacionais… E, agora em 2022, teremos eleições presidenciais no Brasil. Como o senhor acha que as temáticas da ciência e da saúde podem entrar ou deveriam ser consideradas no ano eleitoral?
Eurico Cunha - Tem vários ingredientes envolvidos aí. Eu acho que o ser humano, eu estou falando agora em escala global, depois eu vou aqui no Brasil; o ser humano precisa refletir sobre esse abismo que se avizinha. Porque já, já, nós vamos precisar dos governos de assistência social para as pessoas, porque elas não terão emprego. O capitalismo, na sua fase atual, não tem respostas para isso. Ao contrário, só cria problemas. Cada vez mais máquinas, indústria mecanizada… Isso significa desemprego e desemprego. Então é um cenário em que os governos vão ter que encarar a assistência social como uma obrigação para que as pessoas não morram. Basicamente isso. Então isso já coloca, ou deveria colocar, o mundo inteiro em reflexão.
Então essa COP-26 deveria ter servido pra fazer uma reflexão a nível mundial. Só que a gente sabe que são interesses mesquinhos que estão ali em jogo, interesses geopolíticos etc. Cada país querendo tirar vantagem, todos em uma economia inteira baseada em carbono. É um negócio bem horroroso.
Agora, do ponto de vista da minha área, de Saúde e, principalmente, de pesquisa. É preciso haver investimento em pesquisa do mesmo jeito que se investe em saúde. Quando você investe para fazer um hospital, você tem que investir também para formar o cientista. Então tem que ter dinheiro para projeto, para financiar os talentos do Brasil. O Brasil tem muita gente talentosa e é uma dó, que me dá vontade até de chorar, de ver os jovens todos indo embora, nós estamos numa crise de evasão de cérebro sem precedentes… Isso é obrigação do governo e isso precisa ser encarado dessa forma. Tão importante quanto saúde, educação, é fazer pesquisa.
Então eu espero, por exemplo, que no ano que vem a população brasileira reflita sobre isso na hora de votar. Votar para Presidente da República é importantíssimo. Mas mais importante até é votar para o parlamento. Pra você saber que você tem deputados e senadores no parlamento que entendem essas questões. E que não são pessoas simplesmente interessadas em voto e aproveitadores. Você olha para o parlamento brasileiro, com poucas exceções, e dá dó. A fala, os discursos, as pessoas vazias. A gente viu, em alguns momentos da transmissão ao vivo da CPI da Covid-19. Então eu acho que a gente tem que refletir muito no ano que vem.
Uma reflexão sobre os temas que vão repercutir em 2022