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Morte digna é um direito? A desigualdade social da morte
Reportagem Seriada

Morte digna é um direito? A desigualdade social da morte

Os debates sobre vida e morte digna geralmente esbarram no quesito dinheiro. País com desigualdades em todas as esferas, o Brasil ainda luta para garantir o acesso à saúde plena e digna igualmente em todas as regiões
Episódio 3

Morte digna é um direito? A desigualdade social da morte

Os debates sobre vida e morte digna geralmente esbarram no quesito dinheiro. País com desigualdades em todas as esferas, o Brasil ainda luta para garantir o acesso à saúde plena e digna igualmente em todas as regiões
Episódio 3
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Alerta: o conteúdo dessa reportagem contém tópicos que, pela perspectiva religiosa ou estado de saúde mental, podem ser considerados sensíveis.

 


 

A estudante de Veterinária Caroline Arruda, de 27 anos, precisou criar uma vaquinha para tentar morrer em paz. Após 11 anos convivendo com dores excruciantes no rosto, em decorrência de uma disfunção do nervo trigêmeo, e sem tratamentos bem sucedidos, a jovem decidiu pelo suicídio assistido.

Carolina Arruda é estudante de Veterinária(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Carolina Arruda é estudante de Veterinária

Mobilizou uma vaquinha para custear a viagem de 150 mil reais, mas em uma reviravolta do destino surgiu a possibilidade de usar o dinheiro levantado para tentar mais um procedimento médico. Em agosto de 2024, ela inseriu um cateter na barriga que funciona como uma “bomba de morfina”.

Ter usado o dinheiro para tentar novos tratamentos gerou ataques à Carolina. No Instagram, ela compartilhou algumas das ameaças que recebe cotidianamente: “Eu te doei dinheiro para você morrer, sua vaga*****”, “eu paguei eutanásia eu vou ter eutanásia”, “eu vou te arrastar pelos cabelos até a Suíça”, são algumas das mensagens.

“Não, eu ainda não desisti da ideia da eutanásia, mas estou tentando mais um tratamento, pela última vez!”, reforça já na bio do Instagram. A mensagem da estudante deixa claro como, na vida e na morte, o dinheiro define muita coisa.

“Num país marcado por desigualdades sociais e falta de acesso à saúde, como é o Brasil, é importante reconhecer que nem todos os brasileiros dispõem das mesmas condições de vida, apoio familiar e social que permitiram a Antônio Cícero viajar para a Suíça e ‘morrer com dignidade’, como nas suas palavras”, reflete Fernando Hellmann, doutor em Saúde Coletiva e coordenador da Cátedra Giovanni Berlinguer de Bioética e Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

“Surge então uma reflexão para o povo brasileiro: o que significa morrer com dignidade e quais pessoas podem ter uma morte digna de fato?”, questiona. “O Brasil ainda precisa avançar nas discussões sobre direitos dos cidadãos para além dos cuidados de final da vida e olhar para o cotidiano. O cotidiano brasileiro mostra um distanciamento no acesso à saúde desigual, mesmo com o Sistema Único de Saúde (SUS), e ainda não consegue garantir um acesso a uma saúde digna para todos.”

 

 

A morte nas classes durante a história

A desigualdade social se expressa até na morte, algo constante na história. No episódio passado, tratamos de como a morte passou de algo naturalizado para “vergonhoso”. A percepção se modificou ao longo dos anos, mas a segregação social e racial no momento da partida sempre existiu e segue presente.

Dois exemplos são as pirâmides do Egito e as mortes na idade moderna. No primeiro caso, a morte era vista como o desprendimento da alma com o corpo. Havia um processo para isso, então o corpo precisava ser preservado, por meio do processo de mumificação.

A crença era comum a todos, mas em princípio somente os faraós eram mumificados. Depois, a prática estendeu-se aos nobres e a quem pudesse pagar por ela. Demais cidadãos não eram incluídos.

As três pirâmides que compõem o Complexo de Gizé ou Necrópoles de Gizé são Quéops, Quéfren e Miquerinos e correspondem aos nomes do pai, filho e neto faraós.(Foto: David McEachan)
Foto: David McEachan As três pirâmides que compõem o Complexo de Gizé ou Necrópoles de Gizé são Quéops, Quéfren e Miquerinos e correspondem aos nomes do pai, filho e neto faraós.

Crenças espirituais também existiam na Idade Moderna, quando a ideia religiosa de “salvação” era predominante. No século XVIII, acreditava-se que quanto mais próximo a pessoa fosse enterrada de espaços religiosos, como mosteiros ou altares de igrejas, mais chances elas tinham de ser salvas.

O espaço era limitado e acabavam reservados a quem tinha mais dinheiro. Os mais pobres, eram amontoados em covas com até 1500 cadáveres e, assim como em vida, permaneciam às margens e no anonimato. Séculos antes, na Idade Média, a Igreja Católica passou a vender indulgências (perdão espiritual dos pecados), o que basicamente garantia um “pedaço do Céu” a quem podia pagar.

Mesmo no dias atuais, as lápides refletem as desigualdades da morte. Quem conta é o psicólogo Gustavo Moura, coordenador do Centro de Orientação Sobre a Morte e O Ser (Cosmos), da Universidade Federal do Ceará (UFC). "Numa atividade de escuta que os estudantes fazem lá no Cosmos, em cemitérios públicos, em datas específicas, como o Dia dos Finados, se percebe a dificuldade até das pessoas localizarem o túmulo, por exemplo. Uma coisa básica", diz.

"Muitos não conseguem mais localizar porque não há inscrição, não há uma marcação clara, e já denota um pouco as condições com que aquela vida ou aquela memória é considerada em função das condições socioeconômicas. Então, sim, é claro que há uma desigualdade social em relação à vida e em relação à morte, ao luto, à dor aqui no nosso país."

O sistema econômico capitalista transformou o dinheiro na força motora do homem. A saúde virou sinônimo de produtividade e a doença, de ameaça ao rendimento monetário e, consequentemente, à subsistência do trabalhador. A morte transformou-se em uma “derrota”. Assim, a visão sobre a morte é diferente, mas a desigualdade permanece.

A pandemia de Covid-19 explicitou isso. Um estudo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), apresentado no Senado Federal, revelou que mesmo com apenas 2,7% da população mundial, o Brasil concentrou quase 13% das mortes pelo coronavírus no mundo.

São 400 mil mortes a mais do que o esperado, se levada em consideração a média global, cruzada com a população brasileira. O índice se explica por dois fatores principais. Primeiro, são consideradas as medidas ineficazes lideradas pelo Governo de Jair Bolsonaro (PL). Somente a demora nas compras de vacinas anti-Covid teria causado entre 95,5 mil e 145 mil mortes.

Em 2020, durante pico da pandemia de Covid-19, funerária retira caixão com vítima de Covid-19 no Hospital Leonardo da VInci(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Em 2020, durante pico da pandemia de Covid-19, funerária retira caixão com vítima de Covid-19 no Hospital Leonardo da VInci

O outro fator é a enorme desigualdade social e estrutural brasileira. Um estudo publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia apontou que as unidades federativas com maiores taxas de desigualdade econômica apresentaram maiores riscos de infecção e morte por Covid-19. Foram coletados dados de 21 de abril a 7 de julho de 2020.

A maior taxa de incidência ocorreu no Amazonas (547,7/1 milhão de habitantes), Amapá (540,36/1 milhão de habitantes) e Roraima (407,75/1 milhão de habitantes). O estudo cruzou a informação com o Índice de Gini referente ao Censo 2010, que apontava o Amazonas como o estado com a maior desigualdade econômica do Brasil.

A alta incidência na região Norte, assim, teria mais motivos, segundo outros estudos. Uma pesquisa da Universidade Federal da Bahia (UFBA) apontou a região como a com menor número de médicos e leitos de UTI - públicos e privados. Ou seja, mesmo em uma pandemia, não somos todos atingidos igualmente.

 

Desigualdade social no Brasil e a incidência de Covid-19

 

"Na medida em que a vida é marcada pela desigualdade no Brasil, uma desigualdade profunda, a partir de marcadores como o gênero e principalmente a classe social, a raça, a cor da pele, então a morte também o será", frisa o psicólogo Gustavo.

"Haja vista as condições de naturalização que são quase incompreensíveis em relação à violência policial nos bairros periféricos", exemplifica. "Um tiroteio perto de uma escola da elite, evidentemente será um horror, será manchete e terá mil providências; mas nos bairros periféricos iso até é lamentado, mas há uma permissão. E o luto e a dor dessas famílias é secundarizada."

 

 

Cuidados paliativos: a vida digna dias antes da morte digna

A discussão sobre direito à saúde ainda inclui o acesso a um tratamento digno nos momentos finais. A medicina e a enfermagem, por muitos anos, trataram da morte como algo a ser combatido até o último segundo. O foco seria sanar a doença e não em lidar com ela, ouvindo o paciente.

Uma perspectiva diferente surgiu nos anos 1950 e 1960 pela enfermeira e assistente social inglesa Cicely Saunders. A máxima dela era “cuidar até onde não é mais possível curar”. A prática foi difundida nos Estados Unidos nos anos 1970 e, em 1974, o termo cuidados paliativos foi adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como sinônimo de qualidade de vida, nos momentos finais.

No Brasil, os cuidados paliativos são executados por equipes multidisciplinares em hospitais públicos e privados (Foto: Dominik Lange/Unsplash)
Foto: Dominik Lange/Unsplash No Brasil, os cuidados paliativos são executados por equipes multidisciplinares em hospitais públicos e privados

No Brasil, o movimento ganhou força nos anos 1970, mas em 1944 já havia registros de iniciativas de cuidados paliativos em asilos “para cancerosos”. A prática ganhou, aos poucos, espaço no campo da saúde e, em 1990, a Lei Orgânica da Saúde fortaleceu esses cuidados.

“Em si, os cuidados paliativos não buscam prolongar ou encurtar a vida, mas sim oferecer cuidados de suporte abrangentes, com assistência médica e de equipe multidisciplinar de saúde que inclua aspectos físicos, emocionais, psicológicos, culturais e sociais, para que o paciente e sua família enfrentem melhor a terminalidade da vida”, define Fernando.

A Bioética é uma área de estudos multidisciplinar que estuda as práticas de fim de vida, desde a eutanásia e os cuidados paliativos, a partir de princípios e valores éticos e direitos humanos fundamentais, como o respeito a autonomia e os conceitos de dignidade, sacralidade e qualidade de vida.

“Gostaria de enfatizar que as discussões sobre bioética no fim da vida têm a obrigação de dialogar com a ética da responsabilidade e as teorias de justiça social, que convergem na defesa do direito aos cuidados paliativos”, destaca o doutor. “Muitas vezes, pode-se pensar que uma pessoa em sofrimento precisaria de eutanásia ou suicídio assistido, mas essa conclusão é precipitada e pode levar a injustiças sociais”, diz.

Segundo ele, a maioria dos casos de sofrimento e dor intensa no fim da vida vêm da falta de acesso à saúde e a cuidados médicos adequados. “O tema é delicado e exige uma abordagem cuidadosa para que não seja banalizado. Por isso, eutanásia e suicídio assistido devem ser considerados exceções e não a regra, aplicáveis apenas em casos extremos. Nos países em que os cuidados paliativos são desenvolvidos a demanda por eutanásia diminuiu significativamente”, pontua o especialista.

O tutor do Programa de Residência Multidisciplinar em Cuidados Paliativos promovido pelo Governo do Espírito Santo, José Lucas Ramos, começou a lidar com esta área de cuidados apenas no primeiro emprego. Na graduação não se falava nisso.

José Lucas Souza Ramos é tutor do Programa de Residência Multidisciplinar em Cuidados Paliativos(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal José Lucas Souza Ramos é tutor do Programa de Residência Multidisciplinar em Cuidados Paliativos

Trabalhou em uma UTI coronariana (de doenças cardíacas agudas) e em uma UTI geral. Nesta última, de dez pacientes, oito estavam em cuidados paliativos, estima. A percepção geral era: se está nesta condição, não se investe mais - algo que deixou o profissional intrigado. Ao mesmo tempo, veio a pandemia de Covid-19 e Ramos. “Se viveu cuidados paliativos toda hora, naquela época”, diz. Decidiu se especializar na área.

Segundo ele, uma morte digna é na qual “há menos sofrimento”, não apenas para o paciente, mas para os familiares. Em suma, busca-se pelo alívio da dor: física, social e emocional. Os cuidados paliativos são uma abordagem multiprofissional voltada para isso e, quanto mais cedo forem implementados, menos sofrida será a partida da pessoa.

“Quando é iniciado cedo, você consegue conversar com o paciente, de modo real e franco, sobre a situação dele, envolver os familiares, caso ele queira, e definir o que ele quer que seja feito. Um planejamento, difícil, mas necessário”, diz José Lucas.

No entanto, há conflitos éticos e socioeconômicos. Muitas vezes o início da abordagem é tardia e as escolhas são transpostas à família, que quase sempre opta por ações “de reversão do quadro” até o último momento.

Neste momento, o trabalho dos profissionais de cuidados paliativos passa a incluir conversas com a família, para que entendam a condição do enfermo. Os diálogos são delicados. “Tentamos ir em direção à ortotanásia, da morte do tempo certo. Sem os investimentos que chamamos de fúteis, digamos assim. Tudo conversado e baseado no que pode e no que não pode”, explica o profissional.

 

 

Além disso, a prática é recente, pouco difundida e desigual. O ensino em Universidades é escasso, como contou José Lucas e, no legislativo, apenas em 2023, foi implementada uma Política Nacional de Cuidados Paliativos no SUS. O contexto leva a um cenário de poucos profissionais e de um País considerado o terceiro pior, do mundo, para se morrer.

“Justamente por que nossos pacientes acabam morrendo dentro de um hospital, invadido, sem a família. A desigualdade, assim como reflete em diversos fatores na nossa sociedade, ela reflete nos cuidados paliativos. Ainda não é para todos”, diz José Lucas.

 

Brasil é o terceiro pior país do mundo para se morrer

 

O cenário afeta discussões sobre morte assistida, por exemplo, discutidas no primeiro episódio desta série. O profissional defende que “cada pessoa deve escolher seu caminho”, mas não vê viabilidade para legalização de procedimentos de morte assistida no Brasil hoje. Duas principais medidas precisariam ser tomadas antes disso.

Primeiro, deve haver uma maior orientação das pessoas quanto a cuidados em vida, sensibilizando-as. Além disso, José Lucas defende uma mudança entre o meio profissional, com maior implementação do tópico nas universidades, assim como um aumento na equipe que orientaria a pessoa em processo de escolha de eutanásia, por exemplo.

“Teríamos que treinar os profissionais para lidar com isso. É muito delicado. A pessoa precisa antes passar por uma equipe multiprofissional: um psicólogo, assistente social, os profissionais de cuidado paliativo. Sou favorável a uma possível legalização se isso for garantido. Não adianta legalizar e não acompanhar”, defende.


 

Serviço

Centro de Valorização da Vida

Disque 188

Horário de atendimento por telefone: Disponível 24 horas

Horário de atendimento por chat: Dom - 17h à 01h, Seg a Qui - 09h à 01h, Sex - 15h às 23h, Sáb - 16h à 01h

 

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