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Vila Vicentina: cercada por prédios, comunidade resiste à pressão imobiliária na zona nobre
Reportagem Seriada

Vila Vicentina: cercada por prédios, comunidade resiste à pressão imobiliária na zona nobre

Destoante da paisagem que predomina no bairro Dionísio Torres, vila abriga pessoas de baixa renda que vivem diariamente o contraste entre proximidade espacial e distância social: de um lado, a pressão de construtoras por novos empreendimentos, do outro, a luta por moradia digna e regularização fundiária em defesa do patrimônio e das Zeis
Episódio 2

Vila Vicentina: cercada por prédios, comunidade resiste à pressão imobiliária na zona nobre

Destoante da paisagem que predomina no bairro Dionísio Torres, vila abriga pessoas de baixa renda que vivem diariamente o contraste entre proximidade espacial e distância social: de um lado, a pressão de construtoras por novos empreendimentos, do outro, a luta por moradia digna e regularização fundiária em defesa do patrimônio e das Zeis
Episódio 2
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Enquanto os carros passam lá fora, as roupas estendidas balançam no varal como se dançassem ao som do brega que toca no rádio. No alpendre, senhoras se reúnem para prosear, uma com o pano de prato no ombro e outra com uma vassoura em punho, prestes a varrer o terreiro onde as crianças, despreocupadas, brincam de esconde-esconde e usam como esconderijo as árvores do enorme quintal.

Vista aérea da Vila Vicentina no bairro Dionísio Torres (Foto: Fco Fontenele/O POVO)
Foto: Fco Fontenele/O POVO Vista aérea da Vila Vicentina no bairro Dionísio Torres

Na cozinha, um vai-e-vem de gente com os quitutes e um enorme bolo que começam a ser preparados e organizados na lateral da capela. A noite é de missa, e o dia é de celebrar o aniversário do movimento de resistência de uma comunidade que luta para não se tornar ruína.

Escondido entre edifícios, o muro baixo pintado de cinza destoa do que há ao redor: ao norte, pela rua Dom Expedito Lopes, o edifício Montebello e o condomínio residencial Highland; a oeste, pela rua Nunes Valente, o edifício Carlos de Albuquerque Lima; já a leste, pela rua Tibúrcio Cavalcante, o Illuminato Condominium; e, ao sul, pela avenida Antônio Sales, o condomínio edifício Victor VII.

É a Vila Vicentina da Estância, um conjunto de 40 casas no meio desse quadrilátero, pedaço conhecido pelos fortalezenses — e principalmente pelos moradores do bairro Dionísio Torres — desde 1938.

Vila Vicentina, criada no fim da década de 1930, hoje está cercada de prédios no bairro Dionísio Torres (Foto: Fco Fontenele/O POVO)
Foto: Fco Fontenele/O POVO Vila Vicentina, criada no fim da década de 1930, hoje está cercada de prédios no bairro Dionísio Torres

As lembranças são de Imaculada Freitas, que descreve a Vila como seu porto seguro, lugar que a acolheu desde que ainda estava no ventre da mãe. “Quem não lembra da Padaria Napolitana? Pão quentinho manhã e tarde, adorava ir comprar. Telhado baixo, algumas vezes calor, mas um bom balanço na rede aliviava. Quando chovia, respingos no rosto”, recorda.

“Point da adolescência, íamos para a Praia de Iracema à pé. Iniciando a vida adulta, o trampo dos sonhos era em qualquer loja do shopping Iguatemi. Deu certo. A Vila é parte de uma vida que não pode ser apagada ou destruída: seus vicentinos têm uma história eterna. Nossa casa não irá a ruínas. Jamais”, sentencia.

Edificação histórica que marca a expansão territorial da área leste da cidade, a Vila Vicentina foi construída para abrigar idosos e viúvas de baixa renda no antigo bairro da Estância, junto a outras vilas edificadas na mesma época, consideradas experimentos pioneiros que fomentaram o povoamento da região.

Foto de 1945 do empreendedor e farmacêutico Dionisio de Oliveira Torres (1888-1966)(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Foto de 1945 do empreendedor e farmacêutico Dionisio de Oliveira Torres (1888-1966)

O responsável pela doação do então sítio Estância Castelo para a Sociedade Beneficente São Vicente de Paulo "Conforme relatam moradores, tratava-se de uma organização filantrópica sem fins lucrativos que detinha diversos móveis alugados a preços acessíveis com a finalidade de assistir a idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade" , que leva o nome do santo dos pobres, foi o farmacêutico Dionísio de Oliveira Torres (1888-1966), empreendedor cuja atuação está inserida no contexto de crescimento de Fortaleza a partir dos anos 1930.

Conhecida como "coqueiral do seu Dionísio", a grande gleba situada em um ponto alto da cidade, cerca de 50 metros acima do nível do mar, foi transformada em um loteamento.

Aos poucos, recebeu iluminação e abastecimento de água por meio da caixa d'água que existe até hoje, assim como prédios residenciais e comerciais no entorno, além da primeira torre de transmissão do Ceará, junto à chegada da televisão ao Estado.

Esse processo segue com a construção de outras vilas populares bem próximo à Vicentina, como a Vila Estância e a Vila Zoraide, também testemunhas do investimento nesse segmento habitacional.

Uma das poucas remanescentes com arquitetura original em meio às mudanças que levaram à descaracterização desse tipo de habitação, praticamente extinto na Capital, a Vila tem toda a sua história relacionada à formação, evolução e consolidação do bairro que hoje leva o nome do empresário, homenageado por ser uma figura importante para o desenvolvimento dessa porção da cidade.

 

Imagens aéreas do bairro Dionísio Torres (1960-2023)

 

Com o passar do tempo, os mais diversos perfis passaram pelas casinhas de alvenaria da Vila, desde pessoas do interior até as que receberam o imóvel por contribuição a serviços prestados, como empregadas domésticas de idade avançada.

Hoje, a maioria das famílias é composta por idosos de baixa renda, descendentes dos primeiros ocupantes.

Pelo alto custo de aquisição de máquinas fotográficas e revelação de filmes, há poucos registros físicos desses lugares antigamente. Os momentos ficaram registrados, porém, de forma imaterial — sobretudo na mente de quem viveu eles.

Maria Aldenir da Silva, aposentada, moradora da Vila Vicentina, localizada na Avenida Antônio Sales, no bairro Dionísio Torres(Foto: Tatiana Fortes/O POVO)
Foto: Tatiana Fortes/O POVO Maria Aldenir da Silva, aposentada, moradora da Vila Vicentina, localizada na Avenida Antônio Sales, no bairro Dionísio Torres

A diferença entre a Vila Vicentina e as demais vilas, aliás, talvez tenha sido a relação de vizinhança que se estabeleceu entre os vicentinos, seja pelo compartilhamento da capela para as missas e do chafariz para a lavagem de roupas, ou pela partilha de festas, brincadeiras, angústias e preocupações — a maior delas, provavelmente, de ter de lutar para permanecer.

Cercado por prédios, o terreno fica na zona nobre de Fortaleza e é vizinho de vários outros bairros de metro quadrado mais caro da Capital, como Aldeota, Cocó, Joaquim Távora e São João do Tauape.

Pela localização privilegiada e a infraestrutura instalada no entorno, não demorou muito para que interesses diferentes dos da comunidade incidissem sobre ela, considerada um empecilho à verticalização em uma área estratégica para o mercado.

 


“Durante muito tempo, tudo funcionou muito bem. O problema é que o bairro cresceu e a especulação imobiliária alcançou a Vila Vicentina. A partir daí, apesar de ser um patrimônio histórico, já que foi uma das primeiras construções existentes no bairro, os moradores não tiveram mais sossego”, conta Fátima Moura, 64, moradora antiga e representante da Vila.

Entre uma reunião e outra da agenda corrida, dona Fátima relata que, em 2016, o conjunto de casas e seus moradores sofreram a pior tentativa de remoção — antecedida por forte pressão, porta a porta, por parte de uma corretora ligada a uma imobiliária, que fazia ameaças e propunha uma negociação com moradores em troca de valores irrisórios.

Era uma tarde de sexta-feira, dia 28 de outubro, quando o assédio culminou na demolição, mesmo sob protesto, de oito residências (três por completo e partes de outras cinco) após um pedido de reintegração de posse que partiu do Conselho Metropolitano de Fortaleza da Sociedade de São Vicente de Paulo — episódio que alcançou repercussão e gerou comoção geral.

Vila Vicentina na Avenida Antônio Sales após demolição de algumas casas que ainda aguardam reconstrução(Foto: Camila De Almeida)
Foto: Camila De Almeida Vila Vicentina na Avenida Antônio Sales após demolição de algumas casas que ainda aguardam reconstrução

As residências demolidas, de acordo a representante, pertenciam a moradores que, por medo, cederam à pressão. “Devido à derrubada das casas geminadas, sofremos com a insegurança do local provocada pela abertura que ficou até que a Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) autorizasse colocar tapumes no local, que depois foram substituídos por um muro, até a reconstrução das casas”, lembra.

“Foi um dia que até hoje me causa uma profunda dor, mágoa, revolta e choro, pois sempre me senti totalmente impotente diante daquelas demolições de nossas casinhas. Humildes, mas que foram o lugar em que construímos nossa família”, narra Eliane Prudêncio, moradora da Vila Vicentina desde 1979.

“Sempre ouvia falar que tínhamos que sair daqui e ficava preocupada, pois não sabia para onde. Nós, eu e os moradores de quando aqui cheguei, éramos desinformados a respeito de moradia. Ano após ano ocorriam esses assédios a algum morador, e ficou assim até 2016, quando vieram com oferta de valores maiores: dinheiro, apartamento, casa mobiliadas e até oferta de carro”, rememora.

Tentativa de demolição da Vila Vicentina em 2016 alcançou cinco residências (Foto: Camila De Almeida)
Foto: Camila De Almeida Tentativa de demolição da Vila Vicentina em 2016 alcançou cinco residências

Dona Eliane também expõe que a negociação ocorreu a mando de moradores que se alinharam à especulação imobiliária e que, desde então, há uma mobilização comunitária que acompanha o processo de reintegração de posse. Lamenta, contudo, que seja “uma caminhada longa e cheia de entraves, pois parece que as políticas públicas sociais não funcionam para quem é pobre”.

 


“Nessa época, nós estávamos sendo acompanhados pelo Escritório de Direitos Humanos Frei Tito de Alencar (EFTA), da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece), e já havíamos descoberto que, dentro do Plano Diretor de 2009, a Vila era uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis)”, indica Fátima.

O fato de ser uma Zeis significava dizer que, nesse local, por direito, não poderiam ser construídas torres de apartamentos, e sim, moradias populares — o que já existia. O necessário para a permanência da Vila, portanto, era realizar a sua regularização fundiária "É o processo que inclui medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação de núcleos urbanos informais consolidados ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes." .

Vila Vicentina é um dos únicos conjuntos arquitetônicos do antigo bairro da Estância, em Fortaleza(Foto: Camila De Almeida)
Foto: Camila De Almeida Vila Vicentina é um dos únicos conjuntos arquitetônicos do antigo bairro da Estância, em Fortaleza

A partir desse entendimento, advogados do Escritório conseguiram a suspensão do despejo, que continuaria na segunda-feira.

Na sequência, foi marcada uma plenária de apoiadores, da qual saíram três pedidos de tombamento do patrimônio: pelos então vereadores Guilherme Sampaio (PT) e João Alfredo (Psol), e pelo arquiteto e professor Romeu Duarte, da Universidade Federal do Ceará (UFC), morador do entorno e testemunha ocular de todo o processo.

“O que aconteceu na Vila Vicentina foi um crime. Um bando de vândalos, sabe-se lá a mando de quem, começou a demolir as casas com as pessoas dentro, sem qualquer autorização ou alvará”, enfatiza o docente.

Casas destruídas após tentativa de demolição. Processo atual inclui reintegração de posse(Foto: Camila De Almeida)
Foto: Camila De Almeida Casas destruídas após tentativa de demolição. Processo atual inclui reintegração de posse

No Atelier de Patrimônio Cultural do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design (DAUD/UFC), Duarte coordenou a produção da instrução de tombamento municipal para o bem imóvel, que aguarda decretação por parte da Prefeitura há quase sete anos: “Quanto mais o tempo passa, mais a paciência e a crença dos moradores da vila numa solução que lhes seja favorável diminui”.

Na avaliação de Duarte, “o problema (ou a solução) é a orientação político-administrativa da administração municipal, que pode ser rigorosa ou frouxa com a observância desse cabedal jurídico-urbanístico”.

“Posso dizer que quem desenha a cidade hoje é o mercado imobiliário. Não que eu lhe seja contrário, o que seria uma ingenuidade de minha parte, mas há formas mais interessantes do ponto de vista técnico, humanas e sócio-ambientalmente corretas de explorar o território”, defende.

O professor também observa a comunidade e as instituições “muito caladas, muito inertes, ausentes de um combate que é possível de ser efetuado e que deve ser enfrentado”.

“No caso de Fortaleza, além do gabinete do prefeito, temos hoje doze secretarias executivas regionais, a Seinf, a Seuma, o Iplanfor, a Agefis e a Secultfor, ou seja, 17 instâncias que tratam do urbano, sem desconsiderar a Câmara. É muito órgão para pouco resultado. A cidade é de todos e não deve ser propriedade apenas de quem tem dinheiro”, conclui.

Com o tombamento provisório aprovado em mãos e os pedidos unificados, estudos foram feitos e entregues à Secultfor "Questionada sobre o andamento do processo de tombamento definitivo da Vila Vicentina, a pasta não deu retorno à equipe até o fechamento da reportagem."  para solicitar o tombamento definitivo da Vila Vicentina. “Fato que aguardamos há bastante tempo e que ainda não aconteceu”, reclama Fátima.

 


“Quando descobrimos que somos uma Zeis, passamos a participar das reuniões com as outras Zeis prioritárias da cidade de Fortaleza e, por unanimidade e graças ao apoio das outras nove, pelo fato do risco de remoção que a Vila corria, conseguimos nos incluir como a décima Zeis prioritária de Fortaleza”, ressalta.

Esse zoneamento especial, vale destacar, é um instrumento urbano criado para demarcar porções do território com funções específicas — desde sociais até ambientais.

As Zeis, por sua vez, são regiões territoriais destinadas à recuperação urbanística, regularização fundiária e produção de habitações de interesse social (HIS), o que as torna um importante mecanismo legal para assegurar moradia digna à população de baixa renda.


Os entraves que impedem a comunidade de dormir sossegada debaixo do teto que lhe é de direito, no entanto, partem de muitas frentes, e os moradores se veem frustrados, já que estão entre as Zeis colocadas como prioritárias e tiveram seu Plano Integrado de Regularização Fundiária (Pirf) feito, mas enfrentam dificuldades para o envio e aprovação da Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor).

É o que expressa o advogado Miguel Rodrigues, coordenador do EFTA: “A gente não vê nenhuma movimentação da Prefeitura para a aprovação ou mesmo para o tombamento definitivo daquela área. Enquanto isso, ainda existe o processo de reintegração de posse e uma construtora específica que vem assediando os moradores no sentido de uma negociação e, a partir dela, uma descaracterização da Vila”.

Rodrigues detalha que, no processo judicial, o posicionamento da Prefeitura, por meio da Procuradoria-Geral do Município (PGM) e do Instituto de Planejamento de Fortaleza (Iplanfor), usa como argumento o fato de o Plano Diretor de Fortaleza passar por revisão atualmente e que, por isso, não seria necessário o envio do Projeto de Lei Complementar (PLC) que dispõe sobre a Zeis Dionísio Torres para tramitação na Câmara.

Residência da Vila Vicentina quase totalmente demolida(Foto: Camila De Almeida)
Foto: Camila De Almeida Residência da Vila Vicentina quase totalmente demolida

"Mas isso não faz sentido e não se sustenta, no sentido de que as outras políticas públicas não são paralisadas quando há um processo de revisão de Plano Diretor. Então, por que a política da Zeis ficaria paralisada, não seria executada?", questiona.

Ao mesmo tempo, os PLCs de outras nove Zeis prioritárias (Pici, Lagamar, Bom Jardim, Aldaci Barbosa (Bairro de Fátima), Pirambu, Poço da Draga, Moura Brasil, Serviluz/Praia do Futuro e Mucuripe) foram enviados à Câmara, exceto o da Zeis Dionísio Torres.

"O que aumenta a inquietação e incerteza sobre os motivos que postergam a efetivação dos direitos dessa área, localizada em região de intenso movimento imobiliário da capital cearense. Tal trâmite moroso e
irregular não possui justificativa legítima", frisa a representação do Escritório Frei Tito.

Moradores da Vila Vicentina enfrentam pressão para deixarem a região. Local desperta desejo de construtoras(Foto: Tatiana Fortes/O POVO))
Foto: Tatiana Fortes/O POVO) Moradores da Vila Vicentina enfrentam pressão para deixarem a região. Local desperta desejo de construtoras

Esse é um problema que remete ao período de ocupação e distribuição da população pelo território, movimento que evidencia como o mercado de terras influenciou na política habitacional de Fortaleza e na periferização das habitações de interesse social pela cidade.

“Historicamente, as áreas indesejadas eram ocupadas pelas pessoas que não tinham como acessar o mercado imobiliário, e lá elas iam construindo suas moradias, geralmente bem longe das centralidades urbanizadas”, pondera o advogado popular Guilherme Barbosa, membro do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).

“Só que, eventualmente, aquelas áreas ocupadas eram objeto de investimentos, principalmente públicos, e, quando chega a infraestrutura, o preço da terra aumenta. Então aquela área fica mais atrativa para a especulação”, prossegue.

 Vila Vicentina abriga, na sua maioria, pessoas idosas descendentes dos primeiros moradores(Foto: Tatiana Fortes/O POVO))
Foto: Tatiana Fortes/O POVO) Vila Vicentina abriga, na sua maioria, pessoas idosas descendentes dos primeiros moradores

Barbosa explica que essa é a receita para um conflito fundiário, “porque, via de regra, as pessoas mais pobres têm dificuldade de fazer valer seus direitos à posse e à propriedade, enquanto os agentes do mercado ou até mesmo do próprio Poder Público têm instrumentos para induzir ou forçar aquelas pessoas ao deslocamento involuntário”.

Segundo o advogado, que integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB/CE, vários fatores podem determinar o interesse do mercado e do Poder Público sobre determinada parte da cidade, mas, em geral, verifica-se um movimento.

Investimentos em um local geram aumento de infraestrutura; mais infraestrutura deixa o local mais atrativo para mais investimentos, e assim por diante, em um ciclo que tende a concentrar recursos e desenvolvimento econômico em pontos da cidade.

“É algo muito pernicioso, porque o interesse da especulação caminha junto com a atuação do Poder Público e diminui à medida em que a infraestrutura fica ‘rarefeita’: ou seja, as áreas com menos incidência do Poder Público, em termos de infraestrutura e de políticas públicas, tendem a interessar ao mercado só no que diz respeito ao futuro, ‘para quando a cidade chegar lá’”, problematiza.

Desigual e excludente, esse direcionamento dá, como única alternativa ao trabalhador assalariado, a compra de loteamentos populares periféricos. Já para aqueles sem condição alguma, resta ocupar terras públicas ou terrenos de fragilidade socioambiental para improvisar moradia.

Às margens, essa população já vulnerável fica ainda mais distante. “Ter onde morar não é sinônimo de morar bem ou dignamente, a moradia digna é um conjunto de necessidades habitacionais acessíveis àquela população e ao entorno”, ratifica a vereadora Adriana Gerônimo (Psol).

Ato em defesa da moradia digna na Praça da Imprensa no Bairro Dionisio Torres(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Ato em defesa da moradia digna na Praça da Imprensa no Bairro Dionisio Torres

Gerônimo manifesta que há uma grande lacuna a ser preenchida por famílias que hoje se encontram na fila por habitação na Capital, e garantir que elas morem de maneira legal é garantir habitação de interesse social, mas muito além disso.

Nos anos 1970, momento em que a falta de moradia estava posta e a favelização virou efetivamente uma questão urbana, a necessidade de políticas habitacionais para Fortaleza motivou a construção de conjuntos habitacionais para a população de baixa renda, muitos financiados pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) e pelas Companhias de Habitação (Cohabs), iniciativas interrompidas posteriormente.

Um projeto mais recente que seguiu essa lógica foi o programa Minha Casa, Minha Vida, lançado em 2009 pelo governo federal com o objetivo de diminuir o déficit habitacional da população brasileira e, ao mesmo tempo, incentivar a economia, principalmente o setor de construção civil, com financiamentos de residências a partir da faixa de renda que as famílias mais pobres possuem.

A assistente social Adriana Gerônimo é vereadora de Fortaleza pela Mandata Coletiva Nossa Cara (Psol)(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação A assistente social Adriana Gerônimo é vereadora de Fortaleza pela Mandata Coletiva Nossa Cara (Psol)

O custo elevado da terra nas áreas mais centrais e litorâneas em virtude da valorização imobiliária, entretanto, fez com que esses conjuntos se fixassem em bairros mais afastados, alguns já nas regiões metropolitanas, onde o valor das glebas era mais baixo.

O que não seria problema, se os serviços básicos, públicos e culturais não estivessem, em sua maioria, concentrados nos bairros onde estão os moradores de maior renda — o direito à moradia esbarra no direito à cidade, e a falta deles desencadeia uma série de outras violações de direitos.

“Não adianta ter o papel da casa se você mora num terreno que alaga todos os anos ou que não tem saneamento básico. Não dá para construir conjunto habitacional sem ter perto creche, escola, posto de saúde, área de lazer”, contesta a vereadora.

Conforme observa Gerônimo, “há uma cultura muito desonesta e negativa que diz que pessoas pobres devem morar afastadas do Centro, dos seus empregos, desses lotes da cidade onde se tem mais oportunidade de acesso a políticas públicas e culturais”.

A representante do mandato Nossa Cara (Psol) acredita ser necessário que as gestões enfrentem essa problemática. “Porque o que a gente tem visto é que dão tudo ao mercado imobiliário e nada às comunidades pobres e vulneráveis, então a gente precisa corrigir essa conta. Falta uma vontade, uma disposição política, uma visão mais ampliada de cidade pelo Poder Público”, verifica.

Adriana caracteriza a tentativa de remoção da Vila Vicentina como um atentado direto ao patrimônio histórico e ao direito à moradia de pessoas vulneráveis, “porque é uma vila que veio muito antes do crescimento do bairro, ocupada em maior parte por idosos de baixa renda”.

Vila Vicentina na Avenida Antônio Sales após demolição de algumas residências. Processo atual inclui reintegração de posse(Foto: Camila De Almeida)
Foto: Camila De Almeida Vila Vicentina na Avenida Antônio Sales após demolição de algumas residências. Processo atual inclui reintegração de posse

Para além dos despejos judiciais, a vereadora lembra que o processo de intervenções para a Copa do Mundo no Brasil, entre 2010 e 2014, foi outro momento marcado por “despejos administrativos para obras públicas, dentro de conflitos fundiários mais voltados ao capital privado”.

A construção do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) "A linha metroviária do modal, cujo percurso é de 13,2 quilômetros, vai do bairro Parangada ao Mucuripe. Hoje em pleno funcionamento, a obra afetou a moradia de mais de 3 mil famílias que moravam próximo ao antigo trilho." para atender às necessidades de mobilidade urbana, por exemplo, atingiu mais de 3 mil famílias — conhecidas como as “comunidades dos trilhos”. Desde então, essa população se mobiliza para cobrar soluções aos problemas que acompanham a desapropriação.

A demora na entrega de conjuntos habitacionais ou no recebimento de benefícios como o aluguel social "A medida consiste na concessão, pelo Governo do Estado, de R$ 722,05 (valor reajustado em maio de 2023) à população que ainda não recebeu a nova casa pelo programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV)."  são algumas das dificuldades que as famílias enfrentam, o que motivou uma audiência pública pela Alece com participação da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) para auxiliar na tomada de providências, já que a situação se arrasta há pelo menos uma década.

 Oito comunidades que moravam em torno do VLT, cobram do Governo do Estado uma definição sobre suas moradias e protestaram em frente do Palácio da Abolição(Foto: Mauri Melo)
Foto: Mauri Melo Oito comunidades que moravam em torno do VLT, cobram do Governo do Estado uma definição sobre suas moradias e protestaram em frente do Palácio da Abolição

De acordo com a Secretaria de Cidades (SCidades), ao menos 760 famílias afetadas ainda aguardam o recebimento de novas moradias.

“Após 12 anos, três copas do mundo, famílias até hoje não receberam essa unidade habitacional. O aluguel social, que era para ser uma medida provisória concedido por até seis meses, acabou se tornando uma questão definitiva. As comunidades estão há doze anos recebendo aluguel social”, frisa a defensora pública Mariana Lobo, que acompanha a tramitação.

Lobo faz parte da comissão composta pelo Governo do Estado, Assembleia Legislativa, Câmara dos Vereadores de Fortaleza, Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), Defensoria Pública estadual e representantes das comunidades impactadas. A supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria destaca que a instituição deve seguir no acompanhamento.

 Mariana Lobo, Defensora Geral do Ceará(Foto: Gustavo Simão)
Foto: Gustavo Simão Mariana Lobo, Defensora Geral do Ceará

Isso porque muitos afetados buscaram a Defensoria para relatar não terem recebido o benefício, a indenização em dinheiro, nem a realocação em condomínio do programa Minha Casa, Minha Vida para proprietários dos imóveis, avaliados em até R$ 40 mil.

O caso se tornou alvo de ação civil pública contra o Estado por parte do MPCE, que requisitou à Justiça a garantia do reassentamento das famílias em um terreno na Avenida Borges de Melo, destinado à construção do Empreendimento Aldaci Barbosa — nome da comunidade desapropriada que deve ser beneficiada com as moradias.

A ação foi motivada, além da necessidade de atuação em conflitos fundiários e defesa da habitação para assegurar o direito constitucional à moradia digna, em virtude da falta de atualizações sobre as obras do residencial por parte do Poder Executivo Estadual.

Regina Jaqueline, que mudou-se para o bairro Lagamar, conta que as comunidades não foram contrárias à construção do VLT, mas questionam a forma como o processo ocorreu: “Nós fizemos acordo com o Estado no qual iríamos, sim, aceitar a obra, mas queríamos permanecer próximos ao local de moradia, então a gente entende que a resolução do problema é haver a construção dos apartamentos nos locais que foram acordados inicialmente”.

Para monitorar de perto essas ações e conceder espaço de escuta ativa às populações afetadas, a DPCE conta com um núcleo especializado em atividades relativas à proteção e reparação dos direitos desses grupos sociais vulneráveis: o Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham).

Além das comunidades dos trilhos e da Vila Vicentina, o núcleo recebe demandas de famílias ameaçadas de remoção e despejo das comunidades Deus É Fiel, Jardim Iracema, Raízes da Praia, Nova Cajazeira e outras, além de atuar junto ao conselho das Cidades e na articulação do Plano Diretor para assegurar a construção de equipamentos públicos e habitação popular.

Durante o início da pandemia de Covid-19, em 2020, quando o “fique em casa” se tornou a palavra de ordem, foram registrados quase mil atendimentos — a maioria pedidos de aluguel social, regularização fundiária e usucapião.

José Lino Fonteles, defensor público(Foto: MAURI MELO)
Foto: MAURI MELO José Lino Fonteles, defensor público

Sem moradia garantida, esse público ficou ainda mais vulnerável diante da contaminação pela doença.

É o que reforça o defensor público Lino Fonteles, supervisor do Nuham.

“A pandemia escancarou ainda mais as vulnerabilidades e é uma conta que não fecha. São famílias inteiras nas ruas, debaixo dos viadutos, em moradias irregulares e sem condições de habitação, mas que não têm para onde ir e nem há políticas públicas suficientes que abarquem o problema. Essas pessoas existem e precisam ser acolhidas”, legitima.

Somente de janeiro a junho de 2023, a DPCE já realizou 927 procedimentos através do Núcleo, desde atendimentos e peticionamentos na Justiça até visitas e reuniões de diálogo com comunidades e os poderes públicos sobre o problema de moradia que atinge a população de Fortaleza.

“A Defensoria atua em várias frentes: atende às comunidades, presta orientação jurídica, visita as ocupações, expede ofícios e requisições para obter informações dos órgãos e entes públicos para instruir os procedimentos administrativos e eventuais ações, faz reuniões com as Secretarias de Habitação, Cidades e Infraestrutura e, se não conseguir resolver a demanda de forma administrativa, extrajudicial, ajuíza as ações necessárias ou procede com as defesas judiciais compatíveis”, discrimina.

 

Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham)
Endereço: Avenida Senador Virgílio Távora, 2184 - Dionísio Torres
Funcionamento: segunda a sexta-feira, das 8h às 12h, e 13h às 17h
Telefones: 129 | (85) 3194-5063 | (85) 98983-1938 | (85) 98581-0403
E-mail: nuham@defensoria.ce.def.br

 
 

 

No episódio 3, nossa reportagem se aprofunda na luta por moradia digna em Fortaleza para explicar como a divisão de terras do passado tem relação com a distribuição socioespacial no território do presente, além de mostrar como a mobilização popular da Zeis Dionísio Torres, representada pela Vila Vicentina, tem se colocado na linha de frente em defesa da função social nas habitações.

A terceira parte desse especial também traz a discussão sobre os vazios urbanos e como eles poderiam ser direcionados para atender à demanda de déficit habitacional na Capital. Confira “A Capital e o capital: especulação causa desvio de função social da moradia digna”.

 


"Olá! Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários :) até a próxima!"

Expediente

  • Texto Karyne Lane
  • Edição O POVO Mais Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Análise de dados Alexandre Cajazeira
  • Visualização de dados Alexandre Cajazeira e Karyne Lane
  • Pesquisa Miguel Pontes e Roberto Araújo (O POVO.Doc)
  • Design Lucas Jansen
  • Fotografias Fco Fontenele, Julio Caesar, Aurélio Alves, Samuel Setubal, Tatiana Fortes, Camila de Almeida, Mauri Melo, Barbara Moira, Evilázio Bezerra
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