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Cria a doença e vende a cura: a indústria de agrotóxicos que lucra dos dois lados
Reportagem Seriada

Cria a doença e vende a cura: a indústria de agrotóxicos que lucra dos dois lados

Com uma mão, Brasil veste o laço da conscientização e corre atrás da cura para índices alarmantes de câncer. Com outra, engole, sem saber, o veneno que ajuda a adoecer. Da lavoura à mesa, alimentos carregam resíduos de agrotóxicos produzidos pelas mesmas gigantes que, mais adiante, lucram com remédios para tratar seus efeitos. Afinal, como prevenir o câncer se a contaminação continua no prato?
Episódio 6

Cria a doença e vende a cura: a indústria de agrotóxicos que lucra dos dois lados

Com uma mão, Brasil veste o laço da conscientização e corre atrás da cura para índices alarmantes de câncer. Com outra, engole, sem saber, o veneno que ajuda a adoecer. Da lavoura à mesa, alimentos carregam resíduos de agrotóxicos produzidos pelas mesmas gigantes que, mais adiante, lucram com remédios para tratar seus efeitos. Afinal, como prevenir o câncer se a contaminação continua no prato?
Episódio 6
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Enquanto o Brasil se mobiliza para enfrentar os alarmantes números de casos de câncer — estimados em 704 mil por ano entre 2023 e 2025, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca) —, uma ameaça silenciosa continua presente no dia a dia da população: os agrotóxicos.

Das lavouras à mesa dos brasileiros, resíduos desses produtos atravessam a cadeia produtiva mesmo com estudos que apontam a ligação entre pesticidas e o surgimento de diversas doenças, incluindo neoplasias malignas.

A contradição é evidente: a mão que busca a cura também leva à boca alimentos contaminados por substâncias associadas ao desenvolvimento de câncer, malformações congênitas, abortos, distúrbios e transtornos.

A indústria que fornece esses venenos, muitas vezes, é a mesma que lucra com medicamentos para tratar seus efeitos — uma engrenagem que perpetua o ciclo entre doença e lucro.

Campeão mundial no uso de agrotóxicos, o País vê crescer os casos de tumores como o de mama, próstata, pulmão e cólon, enquanto o prato feito diário carrega ingredientes que, além de alimentar, silenciosamente adoecem. Afinal, como prevenir o câncer se o veneno continua à mesa?


 

Agrotóxicos e câncer: a ciência em busca de respostas que o Brasil dificulta

Pesquisas na área da saúde mostram há décadas que há uma relação entre agrotóxicos e o desenvolvimento de uma série de doenças — desde intoxicações e distúrbios até cânceres, malformações, abortos e deficiências.

Diante da complexidade que envolve esse tema, quais são os principais obstáculos que pesquisadores encontram ao ir a campo para pesquisar sobre esse assunto? E por que, mesmo com tantos elementos científicos, os agrotóxicos são tão massificados no Brasil?

“A maior dificuldade é a gente ter recurso para fazer estudos mais robustos”, afirma o médico Saulo Diógenes, pesquisador do Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Núcleo Tramas), da Universidade Federal do Ceará (UFC).

O médico do trabalho e pesquisador Saulo Diógenes integra o Núcleo de Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Núcleo Tramas) da Universidade Federal do Ceará (UFC)(Foto: Saulo Diógenes/Acervo pessoal)
Foto: Saulo Diógenes/Acervo pessoal O médico do trabalho e pesquisador Saulo Diógenes integra o Núcleo de Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Núcleo Tramas) da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Ele destaca como a falta de financiamento impede pesquisas mais aprofundadas: “Para ter dados que a ciência considera válidos, precisamos de dinheiro, contratação de profissionais e condições para ir a campo”.

O acesso aos trabalhadores rurais também é um desafio, já que, segundo Diógenes, os pesquisadores se deparam “com aquele conceito das alternativas infernais — a pessoa escolhe entre trabalhar no agronegócio ou morrer de fome. A opção óbvia é trabalhar, mas isso faz com que muitos se calem sobre o que vivem”.

Obter informações sobre os próprios agrotóxicos é outra barreira para o trabalho científico nesse segmento: “Os produtos são isentos de rastreamento, a gente não sabe para onde eles estão indo. Buscamos mapear isso chamando os órgãos de controle para dialogar, mas a gente não tem essa informação de forma tranquila ou fácil”.

O pesquisador critica a estrutura por trás do modelo agrícola brasileiro, cujo governo “estimula o agronegócio, dá isenção de agrotóxicos e patrocina grandes safras. Já a agricultura familiar, agroecológica e agroflorestal não tem o mesmo investimento. Os alimentos saudáveis ficam mais caros e não chegam à mesa de todos.”

“Existe uma grande contradição: as mesmas empresas que produzem os agrotóxicos são as que vendem medicamentos para tratar câncer, diabetes, hipertensão, Parkinson, autismo — doenças cada vez mais associadas a essas substâncias. O governo financia o agronegócio, mas é o SUS que abraça os trabalhadores do campo e a população doente. Esse custo fica diluído para toda a sociedade.”

De acordo com dados do Atlas dos Agrotóxicos, da Fundação Heinrich Böll, o Sistema Único de Saúde (SUS) desembolsa R$ 150 para cada caso de intoxicação por agrotóxicos que demanda tratamento.

A estimativa é de um custo anual de R$ 45 milhões para os cofres públicos, revela o estudo. A organização afirma, ainda, que o tratamento das contaminações por agroquímicos ultrapassa os valores gastos na compra desses produtos.

Para cada US$ 1 gasto na aquisição de agrotóxicos, o SUS pode ser onerado em até R$ US$ 1,28 para tratar uma pessoa intoxicada.

“Estamos tentando tratar algo que continua sendo provocado pela raiz do problema: o uso massivo de agrotóxicos”, grifa o médico Saulo Diógenes.

 

 

Veneno no prato, lucro na prateleira

O Atlas dos Agrotóxicos também reforça que o mercado global de agrotóxicos é altamente lucrativo e que algumas agroquímicas influentes estão expandindo seu controle com lucros cada vez maiores.

Na vanguarda estão empresas europeias como as alemãs Bayer e Basf, que também são indústrias ligadas à produção de medicamentos como Aspirina, Bepantol, Gino-canesten, Nexavar — no caso da Bayer — e de soluções para formulação de remédios — no caso da Basf.

A União Europeia (UE), por sinal, é o maior mercado de exportação de agrotóxicos do mundo e tem investido cada vez mais países do Sul global.

Empresas ligadas à produção e comercialização de produtos químicos e transgênicos para a agropecuária brasileira

 

As empresas da região, por outro lado, exportam pesticidas que são proibidos em seus próprios territórios pelos efeitos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente.

O Brasil é um dos países mais importantes para esse mercado, tanto que ocupa o pódio dos maiores consumidores e importadores de agrotóxicos.

Esse crescimento acompanha o ritmo da expansão de importantes commodities na economia brasileira como soja, milho, algodão e cana de açúcar — produtos-base para a fabricação de diversos alimentos.

Os 10 ingredientes ativos mais comercializados no Brasil

 

Para tanto, o País permite limites de resíduos em água e alimentos muito superiores aos da UE, o que possibilita o registro cada vez maior de novos produtos — com recordes sendo batidos a cada ano.

Além disso, os agrotóxicos possuem descontos ou isenção em uma série de impostos federais como Imposto sobre Importação (II), Imposto sobre produtos industrializados (IPI), Contribuição de financiamento de seguridade social (Cofins), Programa de Integração Social (PIS), além do Imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS), cobrado pelos estados.

Os benefícios fiscais têm como base de argumentação o princípio da seletividade, que prevê alíquotas de impostos mais baixas para produtos considerados essenciais.

Parte-se do pressuposto, portanto, que a produção agrícola depende essencialmente do uso de agrotóxicos e que o aumento da produção decorrente do seu uso poderia baratear o preço dos alimentos.

No dia 28 de março, esta reportagem procurou a associação CropLife International, que representa empresas como Syngenta, Bayer, Basf, Corteva e FMC, para comentar sobre o assunto. Caso a entidade responda, o material será atualizado.


 

Corpos em risco: quem está mais vulnerável aos agrotóxicos?

Mulheres e meninas são a parcela da população mais vulnerável aos efeitos de substâncias tóxicas que vêm da indústria, da produção extrativista e da agricultura, com efeitos que podem durar várias gerações.

Isso porque, assim como os homens, elas também trabalham no agronegócio, lidam com produtos processados e embalados, e costumam ficar expostas até mesmo pelos resíduos que vêm na roupa dos esposos.

Diferente dos homens, porém, de acordo com o médico Saulo Diógenes, elas estão mais vulneráveis aos agrotóxicos não só pela exposição direta no trabalho rural ou pelo contato com resíduos trazidos para casa, mas também por fatores biológicos únicos.

Mulheres e meninas são a parcela da população mais vulnerável aos efeitos de substâncias tóxicas que vêm da indústria(Foto: Waleska Santiago)
Foto: Waleska Santiago Mulheres e meninas são a parcela da população mais vulnerável aos efeitos de substâncias tóxicas que vêm da indústria

“A mulher tem ciclo menstrual, o que significa alterações hormonais mensalmente, algo que o homem não enfrenta. Quando ela está gerando uma vida do sexo feminino dentro de si, as células germinativas daquele feto já são criadas naquele momento. Ou seja, no período intrauterino o seu estoque de óvulos que serão liberados em cada ciclo menstrual já é criado naquele momento. Diferente dos homens, que têm uma produção constante de espermatozoides.”

Entre as fases do ciclo está a ovulação, quando há liberação de um óvulo pelo ovário e as chances de engravidar aumentam. Por isso ele aponta que os impactos podem atravessar gerações: “Eu, por exemplo, sou de um óvulo da minha mãe que foi gerado quando ela estava sendo gestada pela minha avó. Então, olha o tamanho do impacto disso. Uma exposição que a minha avó sofreu pode estar interferindo hoje em mim”.

Além disso, o médico explica que a gordura corporal, mais presente no corpo feminino, agrava a situação: “A gordura acumula substâncias lipofílicas, e muitos agrotóxicos têm essa característica. Por isso, eles se concentram em tecidos gordurosos, como mamas, quadris e coxas — regiões onde as mulheres têm mais depósito de gordura.”

Essa combinação de fatores, segundo o pesquisador, eleva o risco de doenças como câncer de mama, além de distúrbios que afetam crianças, como TDAH, autismo e até doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer.

“Os sistemas do corpo são integrados, mas a gente estuda tudo separado. O capitalismo divide para melhor controlar. Só que o corpo não funciona assim — tudo se conecta.

 

 

“Uma população saudável começa pelo que come”, afirma pesquisadora da Fiocruz

“Qualquer pessoa exposta a agrotóxicos está em risco, não importa se vive no campo ou na cidade”, alerta a engenheira agrônoma Fernanda Savicki, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenadora do GT contra agrotóxicos e transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).

A exposição, segundo ela, não escolhe vítimas — e o perigo à saúde é uma constante. “Estamos todas e todos expostos a algum grau de contaminação e, portanto, sob risco.”

Esse impacto, embora generalizado, é ainda mais cruel com grupos vulneráveis. “Crianças e jovens em desenvolvimento, idosos, pessoas com comorbidades, gestantes e lactantes enfrentam riscos maiores. E, em alguns casos, a contaminação não para por aí: afeta também os descendentes dessas pessoas. Há registros de infertilidade, aborto e até má formação fetal associados ao contato com esses produtos.”

A engenheira agrônoma Fernanda Savicki é pesquisadora da Fiocruz e coordenadora do GT contra agrotóxicos e transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA)(Foto: Heloisa Sousa)
Foto: Heloisa Sousa A engenheira agrônoma Fernanda Savicki é pesquisadora da Fiocruz e coordenadora do GT contra agrotóxicos e transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA)

Savicki cita um exemplo contundente: uma pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) revelou que 100% das lactantes analisadas tinham resíduos de agrotóxicos no leite materno.

“Estamos falando do alimento mais importante para os bebês, a única fonte de nutrição recomendada pela Organização Mundial da Saúde nos primeiros seis meses de vida. E ele já está contaminado. Isso dá uma dimensão assustadora de como esses venenos se infiltram na nossa rotina.”

A engenheira agrônoma também denuncia o fato de o Brasil continuar usando substâncias que já foram proibidas em outros países.

Merenda escolar terá menos ultraprocessados a partir de 2025(Foto: reprodução)
Foto: reprodução Merenda escolar terá menos ultraprocessados a partir de 2025

“Temos base científica robusta para banir muitos agrotóxicos, mas isso não acontece. A legislação antiga, a Lei 7.802, permitia proibir substâncias com comprovação científica de risco à saúde. Mesmo assim, não conseguimos avançar. Por isso, defendemos o ‘banimento dos banidos’: tirar de circulação produtos que outros países já vetaram.”

A raiz do problema, explica Savicki, não é científica — é política. Ela aponta que há grupos de pesquisadores financiados pelo agronegócio que publicam estudos em defesa do setor e criam uma falsa dúvida sobre os impactos dos agrotóxicos, o que ajuda a bancada ruralista a sustentar a continuidade desses produtos.

Mais do que uma disputa acadêmica, o que está em jogo é a saúde da população — e um sistema que se retroalimenta de lucros e doenças.

Conforme indica Savicki, o único instrumento legal restante para tentar conter os danos é o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara). “Ele acaba sendo a nossa principal ferramenta de cuidado da população”, explica a pesquisadora.

No entanto, o plano enfrenta entraves políticos: “O Ministério da Agricultura se nega a assinar um programa de redução de agrotóxicos, fazendo contestações até sobre áreas que não são da sua expertise, como saúde, meio ambiente e educação”.

Savicki integra um subgrupo da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cenaap), que reúne especialistas de diversas áreas — sociedade civil, ciência, serviços públicos e entes federativos — para revisar o Pronara.

A proposta atualizada foi apresentada aos ministérios e depende da assinatura interministerial para ser implementada, mas está parada. “Essa assinatura já foi barrada três vezes desde 2015, sempre com o Ministério da Agricultura travando o processo”, denuncia.

Fachada do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)(Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil Fachada do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)

Ela reforça que a questão dos agrotóxicos não pode ser tratada como um tema restrito ao setor agrícola: “A presença dos agrotóxicos no ambiente gera impactos complexos, que exigem respostas interdisciplinares”.

A pesquisadora da Fiocruz defende que a crise climática está diretamente ligada ao modelo produtivo atual, marcado pelo “complexo agro-hidro-minero-fóssil-negócio”. Segundo ela, o agronegócio ocupa a centralidade desse sistema, que explora bens comuns como água e terra e colabora para a perpetuação das emergências climáticas.

Ficamos correndo atrás de mitigações, mas não atacamos a essência do problema, que é o próprio modelo de produção e consumo”, afirma Savicki. Ela critica a narrativa de que o agronegócio combate a fome, quando, na prática, “o objetivo não é superar a fome, mas garantir lucro. Quanto mais fome, mais o sistema se justifica para se manter”.

Operação investiga fraudes em merenda e videoaulas no Distrito Federal(Foto: ANTONIO CRUZ/ABR)
Foto: ANTONIO CRUZ/ABR Operação investiga fraudes em merenda e videoaulas no Distrito Federal

A engenheira agrônoma também propõe repensar os sistemas agroalimentares e a maneira como nos relacionamos com a comida. “A gente tem uma ideia errônea de que escolhe o que come, mas não escolhe. O que está no nosso prato é decidido por outros entes — grandes corporações e mercados globais”, destaca.

Savicki reforça que “comer é um ato político”, e questiona a padronização alimentar que impõe os mesmos alimentos ultraprocessados em diferentes partes do mundo.

“Por que comemos o que comemos? Por que no Ceará, por exemplo, as escolas oferecem maçã — uma fruta importada — em vez de alimentos locais? E o que isso significa em termos de impacto climático, transporte e condições de produção?”, provoca.

Para ela, é urgente transformar o sistema agroalimentar, valorizando a produção local, alimentos saudáveis e o acesso justo à comida. “Uma população saudável começa pelo que come — e isso não significa ter volume, mas qualidade de verdade no prato.”

 

 

Chapada do Apodi: o agropolo fruticultor que virou um grande laboratório do agronegócio no interior do Ceará

A chegada das grandes empresas agrícolas em Limoeiro do Norte, no Ceará, deixou marcas profundas na vida da população local — e os agrotóxicos são apenas uma parte do problema. Eles não chegam só no prato, mas se espalham, também, pela água e pelo ar.

O pequeno município próximo à divisa com o Rio Grande do Norte tornou-se um agropolo fruticultor, título que está consolidado na cidade e se traduz de muitas maneiras: seja pela quantidade de comércios de defensivos agrícolas ou pelas consequências da pulverização de pesticidas que acarreta em problemas de saúde nas comunidades.

A professora Sandra Gadelha, docente da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (Fafidam), campus da Universidade Estadual do Ceará (Uece) em Limoeiro, explica que tudo começou com a desapropriação de mais de 300 famílias para a instalação do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi.

A professora Sandra Gadelha é docente da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e atua na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (Fafidam), em Limoeiro do Norte. Ela desenvolve projeto de extensão e pesquisas sobre agrotóxicos nesse território desde 2014(Foto: Sandra Gadelha/Acervo pessoal)
Foto: Sandra Gadelha/Acervo pessoal A professora Sandra Gadelha é docente da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e atua na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (Fafidam), em Limoeiro do Norte. Ela desenvolve projeto de extensão e pesquisas sobre agrotóxicos nesse território desde 2014

“Essas famílias receberam o suficiente para comprar uma pequena casa na periferia de Limoeiro. Hoje, o bairro Boa Fé é praticamente formado por pessoas que vieram da Chapada, muitas delas desempregadas e enfrentando graves problemas sociais”, coloca.

Para a coordenadora do Laboratório de Estudos da Educação do Campo (Lecampo), além do deslocamento forçado, a mudança no modelo produtivo afetou diretamente a segurança alimentar da população.

“Grande parte dessas famílias vivia da agricultura familiar, produzia seu próprio alimento e tinha uma segurança alimentar que foi perdida”, diz Sandra.

Quem conseguiu emprego nas empresas agrícolas enfrenta condições precárias e temporárias: “O emprego é sazonal. Tem períodos em que demitem 400, 600 trabalhadores. Muitos saem de madrugada e voltam à noite, sem tempo para plantar nada. Eles passaram de produtores de alimentos a consumidores dependentes do salário — quando o têm”.

A estrutura produtiva implantada na região é parte de um problema maior. “Essa forma de produção já traz em si a exploração e agrava a situação da segurança alimentar. É uma cadeia que desmonta a vida no campo e transforma a realidade das famílias.”

Os efeitos se estendem também à criação de animais: “Uma moradora do Tomé perdeu 80 galinhas de uma vez após a aplicação de veneno. E se o agrotóxico não matar de imediato, ele pode intoxicar o animal e chegar à alimentação das pessoas”, alerta Sandra.

Comunidade do Tomé, em Limoeiro do Norte. É terra de Zé Maria do Tomé, agricultor assassinado em 2010 por denunciar os efeitos da pulverização aérea nas lavouras da região(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Comunidade do Tomé, em Limoeiro do Norte. É terra de Zé Maria do Tomé, agricultor assassinado em 2010 por denunciar os efeitos da pulverização aérea nas lavouras da região

“A ameaça dos agrotóxicos é múltipla”, aponta a professora Sandra Gadelha. Nas ações de extensão que coordena, ela testemunha que o impacto não se resume à intoxicação imediata — os danos podem ser silenciosos e aparecer anos depois. “O agrotóxico é inflamatório e muitas vezes o agravamento da saúde é processual”, destaca.

Pesquisas realizadas na região já identificaram alterações cromossômicas em trabalhadores expostos a essas substâncias, mesmo sem sintomas de intoxicação aguda. “O ideal seria acompanhar essas populações por uma ou duas décadas para entender o real impacto”, defende Sandra.

Por fim, a professora alerta para uma lacuna nos estudos: “Sabemos dos efeitos de agrotóxicos isolados, como o glifosato, mas a mistura de vários produtos — a chamada ‘cauda tóxica’ — ainda é uma incógnita para a ciência”.

 

 

Suspeitas que envolvem agrotóxicos serão debatidas na COP30, que será no Brasil

Os impactos do uso extensivo de pesticidas sobre o meio ambiente e o Sistema Único de Saúde (SUS), além das isenções fiscais a esses produtos, serão algumas das pautas discutidas durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, a COP30, que acontecerá em novembro em Belém (PA).

As conclusões serão discutidas e julgadas em uma sessão especial do Tribunal Penal Internacional (TPI), um organismo permanente criado pelo Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário.

A corte investiga e julga acusações de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão quando os casos são ignorados pelo Judiciário dos países membros.

O Brasil que sediará a COP30 é um país mergulhado em dilemas relacionados ao meio ambiente(Foto: Dean Calma/IAEA)
Foto: Dean Calma/IAEA O Brasil que sediará a COP30 é um país mergulhado em dilemas relacionados ao meio ambiente

Políticos e ruralistas também preparam um evento: é a COP do Agro, prevista para acontecer em outubro em Marabá, no sudeste do Pará.

A principal reivindicação da organizadora do evento, a Associação dos Produtores Rurais Independentes da Amazônia (Apria), é o protagonismo do produtor rural nas decisões sobre a Amazônia. Outra bandeira recorrente é o questionamento da influência de ONGs nas políticas ambientais.

Um dos principais entusiastas da COP do Agro é o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA). Em dezembro, o parlamentar acompanhou o advogado Vinícius Borba pelos corredores do Congresso, citando sua presença durante uma reunião da FPA, a Frente Parlamentar Agropecuária, braço institucional da bancada ruralista. Na ocasião, Marinho também convidou todos os membros da FPA a participarem da COP do Agro.

“Conte não só com a minha presença, mas com todo apoio que meu mandato de senador possa dar”, disse Marinho, em um vídeo gravado enquanto recebia o convite das mãos de Borba. Marinho foi derrotado na última eleição para o governo do Pará com 27,9% dos votos válidos ante 69% de Barbalho.

Para o senador, a COP 30 da ONU é “controlada pelo ecoterrorismo ambiental”. Segundo ele, os moradores da Amazônia “não podem fazer nada” e precisam ficar “ajoelhados para adorar a floresta”.

Pastor evangélico e bolsonarista, Marinho é defensor da exploração econômica das terras indígenas e já recebeu em Brasília representantes de uma cooperativa de ouro investigada pela PF por exploração ilegal do minério. Já defendeu também invasores das terras indígenas Ituna/Itatá e Apyterewa, dentre eles um homem apontado pelo Ibama como o maior grileiro de terras da Amazônia.

Outros senadores que receberam convites das mãos de Borba e confirmaram presença foram Wellington Fagundes (PL-MT), Jaime Bagattoli (PL-RO), Lucas Barreto (PSD-AP) e Plínio Valério (PSDB-AM).

 

 

No próximo episódio

Em artigo para O POVO+, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Alberto Bastos Balazeiro, analisa “fluxos de avanços e influxos de retrocessos” na relação entre o uso de agrotóxicos e a saúde de trabalhadores rurais no Brasil.

 

 

Referências bibliográficas

AGUIAR, Ada Cristina Pontes. Más-formações congênitas, puberdade precoce e agrotóxicos: uma herança maldita do agronegócio para a Chapada do Apodi (CE). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Fortaleza, 2017. Disponível em: <https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/30896>.

ABRASCO, Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Expressão Popular, Rio de Janeiro, São Paulo, 2015. Disponível em: <https://bit.ly/454VTbA>.

CAMICCIA, Márcia. Perfil do aleitamento materno e contaminação por glifosato em lactantes do município de Francisco Beltrão – PR. 2019. 104 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Aplicadas à Saúde) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Francisco Beltrão, 2019. Disponível em: <https://tede.unioeste.br/handle/tede/4368>.

DIOGENES, S. S. (In)visibilização das causas de câncer na zona rural do município de Limoeiro do Norte-CE: a vulnerabilização das comunidades rurais e os riscos dos usos dos agrotóxicos. 2017. 186 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017. Disponível em: <https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/30154>.

FACHIN, Patricia. Oitenta e oito mil litros de calda tóxica são utilizados todas as noites no cultivo de fruticultura no Ceará. Entrevista especial com Raquel Rigotto. Instituto Humanitas Unisinos republicado por Combate Racismo Ambiental, Rio de Janeiro, 06 out. 2016. Disponível em: <https://bit.ly/434Kzuv>.

MENCK, Vanessa Fracaro; COSSELLA, Kathleen Grace; OLIVEIRA, Julicristie Machado de. Resíduos de agrotóxicos no leite humano e seus impactos na saúde materno-infantil: resultados de estudos brasileiros. Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, SP, v. 22, n. 1, p. 608–617, 2015. DOI: 10.20396/san.v22i1.8641594. Disponível em <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/san/article/view/8641594>.

RIGOTTO, Raquel e PESSOA, Vanira Matos. Estudo epidemiológico da população da região do Baixo Jaguaribe exposta à contaminação ambiental em área de uso de agrotóxicos. Tempus. Actas em Saúde Coletiva, vol. 4, n. 4, p. 142-143. 2009. Disponível em: <https://bit.ly/3MsXvot>.

VILLELA, Sumaia. Pesquisa na Chapada do Apodi mostra que trabalhador rural que manuseia agrotóxicos pode sofrer alteração genética. Radioagência Nacional republicado por Instituto Humanitas Unisinos, 02 ago. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/3pUlFiP>.

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