A pandemia da Covid-19 já deixou um rastro de mais de 1,4 milhão de casos no Brasil e de mais de 60 mil mortos, desestruturou uma economia que já estava cambaleante e expôs fragilidades do sistema de saúde público e privado.
Dentre essas dificuldades, a dependência de insumos estrangeiros, a falta de uma indústria local mais robusta, desigualdade na distribuição de recursos e uma rede de atendimento insuficiente para atender a demanda. Para uma reestruturação mais sólida há um longo caminho pela frente, mas algumas mudanças já começam a ser observadas nessa cadeia da saúde no Ceará.
Para se ter ideia do tamanho do desafio, basta lembrar a via crucis enfrentada por muitos estados - e países - para aquisição de insumos médicos, equipamentos de proteção individual (EPIs) e respiradores para abastecer a rede de hospitais. Segundo dados do Ministério da Saúde, dos cerca de 65 mil respiradores que o País dispunha em março, 5,6% estavam fora de uso. E dos que funcionavam, 33 mil unidades estavam concentrados na região Sudeste.
No Ceará, desde o início da crise, já foram adquiridos 550 respiradores e até o fim deste mês está prevista a chegada de mais dois aviões com 200 aparelhos e toneladas equipamentos de proteção individual.
Ainda ficou evidenciada a dificuldade que a população teve para ter acesso a produtos simples como álcool em gel ou máscaras. Em Fortaleza, muitos destes insumos sumiram das prateleiras e os preços dispararam. Uma farmácia chegou a ser autuada pelo Ministério Público do Ceará, no dia 7 de abril, por vender caixas com 50 unidades de máscaras hospitalares descartáveis no valor de R$ 180, quando em tempos de normalidade o produto sairia por R$ 10. Alta de 1.800%.
A mudança de protocolos, com a liberação de outros tipos de máscaras para a população, como as de tecido, favoreceu o aumento na oferta e também nas possibilidades de negócios. Muitas indústrias adaptaram parte do parque fabril para esse segmento, costureiras autônomas ou mesmo empreendedores individuais de outras áreas viram na necessidade, a oportunidade de fazer renda extra.
E é neste especial que detalharemos a transformação do setor no Brasil, sobretudo no Ceará, principalmente com o impulso que o Hub da Saúde no Estado poderá ganhar.
A chamada reconversão produtiva de parques fabris tem sido uma alternativa para diminuir a dependência das importações, sobretudo, da China, maior fornecedor mundial de máscaras de proteção e aparelhos para Unidades de Terapia Intensiva (UTI).
No Ceará, o Observatório da Indústria da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec) lançou em maio o estudo "Estratégias para a Reorientação Produtiva da Indústria Cearense frente à Covid-19", para fomentar a competitividade da indústria cearense e adequá-la ao atual cenário.
O material traz várias informações sobre itens médicos essenciais de maior demanda pelo sistema de saúde, desenhos técnicos, equipamentos necessários, alternativas produtivas, patentes e possíveis empresas que poderiam ser fornecedoras.
“Uma pesquisa da CNI (Confederação Nacional da Indústria) com a Fiec revelou que 40% das indústrias ouvidas tinham interesse em fazer a readequação. Então esta estruturação das informações é importante justamente para unir as pontas, porque nem sempre as indústrias, principalmente quando a gente fala de pequenas e médias, tinham o conhecimento necessário para essa mudança”, explica o coordenador do Observatório da Indústria do Ceará, Guilherme Muchale.
Uma maior articulação entre Governo, pesquisadores e empresas também tem viabilizado o desenvolvimento de novos produtos. Somente a linha emergencial da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) específica para Covid está investindo R$ 2,4 milhões em soluções para área da saúde.
Combate ao 2019-NCOV a partir de PD&I: Operações e manutenção (O&M); produção de EPIs; prototipagem e fabricação de ventiladores pulmonares invasivos, não invasivos e seus componentes
R$ 279.984,00
Smart Health: Suporte à tomada de decisão inteligente de profissionais da saúde e gestores no combate à transmissão da Covid-19 no Ceará
R$ 36.300,00
Treinamento Digital Online em ventilação mecânica no enfrentamento à Covid-19 no Ceará
R$ 227.352,52
Diagnóstico precoce da Covid-19: aumento da capacidade de testagem
R$ 500.000,00
Detecção molecular do coronavírus Sars-CoV-2 no Ceará
R$ 520.124,86
Hidroxicloroquina associada ao zinco como tratamento profilátivo de profissionais de saúde envolvidos no tratamento de casos suspeitos ou confirmados da Covid-19
R$ 500.000,00
Análise e veiculação de dados sobre a Covid-19 no Centro de Inteligência em saúde do Ceará
R$ 27.000,00
Barreira de proteção anti-aerosóis para procedimentos em vias aéreas superiores de pacientes com síndrome de angústia respiratória aguda por Covid-19
R$ 99.800,00
Projeto Elmo de suporte respiratório para pacientes com insuficiência respiratória hipoxêmica na Covid-19
R$ 197.561,07
Sistema de registro clínico eletrônico para pacientes hospitalizados com Covid-19 em hospital de referência no Ceará
R$ 69.200,00
Total
R$ 2.457.322,45
O epidemiologista e economista em saúde, Marcelo Gurgel, do Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Covid-19 da Universidade Estadual do Ceará (Uece), reforça que a pandemia foi uma situação atípica, que nenhum país do mundo estava preparado para enfrentá-la, mesmo os mais desenvolvidos. Porém, ganha contornos graves no Brasil em função da deficiência da indústria da saúde brasileira, ainda muito à mercê do mercado internacional.
Para ele, estamos longe de uma solução definitiva, mas já não estamos no mesmo patamar de antes. “Houve sim um avanço principalmente na articulação para soluções caseiras de produtos, sobretudo, os mais simples, como EPIs. Acredito também que as compras de novos respiradores já nos dão um fôlego, o que tem, já basta. Temos muito ainda a avançar para reduzir essa dependência, principalmente de insumos, mas a pandemia com certeza expôs a importância de se ter um olhar mais apurado para indústria da saúde no Brasil”.
A partir deste mês começa a ser produzido em larga escala no Ceará o Elmo, capacete de respiração assistida que minimiza o avanço de dificuldades respiratórias em pacientes com Covid-19. Feito a partir de materiais de baixo custo, como PVC e colar de silicone, o equipamento reduz em 60% a necessidade de uso de aparelhos de ventilação mecânica e ainda traz como plus, em relação aos concorrentes internacionais, a possibilidade de monitoramento da pressão, temperatura, umidade e som. O paciente também pode se alimentar durante o procedimento.
O produto é fruto de uma força-tarefa entre a Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE), a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai/Ceará), Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade de Fortaleza (Unifor). Caberá à Esmaltec, empresa cearense de eletrodomésticos, a produção industrial e comercialização do produto.
Atualmente, todos os moldes do capacete já estão feitos. Para iniciar os trabalhos, falta apenas a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O material já passou pela avaliação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), ligada ao Conselho Nacional de Saúde do Governo Federal. Logo após a aprovação, a expectativa é produzir 3 mil unidades, número que vai depois se ajustar à demanda.
O engenheiro clínico da Escola de Saúde Pública do Ceará, David Guabiraba, explica que com o Elmo é realizada uma oxigenoterapia do paciente, que inala oxigênio puro e não re-inala o gás carbônico produzido, que também não será expelido no ambiente, evitando a contaminação dos demais.
“O Elmo que a gente desenvolveu aqui segue as mesmas questões de segurança clínica que o equipamento italiano ou americano, mas com soluções para que pudéssemos empreender aqui sem a necessidade de importar, além de uma melhor ergonomia”.
Enquanto uma máquina de ventilação mecânica pode custar em torno de R$ 70 mil, os custos de produção de um aparelho como o Elmo fica em torno de R$ 300 por unidade. Para o diretor técnico do Senai-CE, Paulo André Holanda, o fato de o equipamento ser produzido a partir de materiais facilmente encontrados no Estado cria todo um ambiente para impulsionar a indústria local.
“Além disso, o Elmo não é só para Covid-19, é para todo paciente com problemas respiratórios. Também não precisa estar na UTI para ser usado, pode colocar em uma UPA, em quartos hospitalares”.
Não são apenas os insumos médicos que tiveram aumento de demanda durante a pandemia. O consumo de água sanitária, por exemplo, teve um crescimento de 19,3% no acumulado de janeiro a maio deste ano, no comparado a igual período deste ano, informa a Indústria Reunidas Raymundo da Fonte, fabricante da Brilux, marca líder de mercado no Norte e Nordeste.
Para fazer frente à demanda, a empresa diz que as cinco plantas localizadas no Ceará, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Pará estão operando em ritmo intenso, com linhas de produção funcionando 24 horas por dia. No caso da unidade de Novo Horizonte, na região Metropolitana de Fortaleza, inaugurada ano passado, a produção é direcionada para o abastecimento do próprio Estado, do Maranhão, Piauí e uma parte de Rio Grande do Norte.
De acordo com o superintendente do grupo Raymundo da Fonte, Hisbello de Andrade Lima Neto, durante a pandemia, as maiores adaptações foram internas, para colocar em prática todas as medidas necessárias para a segurança sanitária dos funcionários, indicadas pelo Ministério da Saúde.
Também foi incluído no portfólio da empresa a fabricação e venda de álcool líquido 70% para supermercados. A demanda está sendo suprida pela matriz, no Pernambuco. “Devido ao aumento da produção do álcool, contratamos colaboradores para ativarmos mais um turno de produção”.
O grupo gera atualmente em todo o Brasil mais de 2.700 empregos diretos e mais de 500 profissionais de vendas. No Ceará são 300 funcionários diretos e indiretos.
A empresa informa também que parte da produção está sendo destinada para as secretarias de saúde dos governos estaduais e municipais nos estados onde atua para ajudar nas operações de combate ao coronavírus. Ao todo foram doados mais de 12 mil litros de produtos.
A Impacto Protensão, empresa do setor da construção civil, é uma das indústrias cearenses que estão fazendo a reconversão produtiva para atender ao aumento da demanda por máscaras de proteção no Estado. Mais do que isso: desenvolveu um novo tipo de produto que facilita a higienização e possibilita maior controle em relação a troca dos filtros.
Joaquim Caracas, fundador da Impacto Protensão, disse que foi procurado no início de abril pelo Governo do Estado para produzir inovações que ajudassem no combate ao novo coronavírus. “Um dos grandes problemas das máscaras de tecido é que a cada 2 horas é preciso trocar e deixar o material de molho por meia hora em uma solução para higienização. Então, desenvolvemos um modelo de plástico, que facilita a higienização, e com filtros de cores diferentes”.
A máscara tem uma abertura que possibilita a sinalização da troca de refil. Por exemplo, das 8 às 10 horas, a cor é amarela, nas duas horas seguintes, verde, e assim por diante. “É uma gestão à vista, uma garantia a mais para quem está frequentando aquele local de que o funcionário fez a troca do filtro na hora correta”.
A máquina tem capacidade de produzir 5 mil máscaras por dia. O protótipo foi validado pela Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) e a produção começou a ser comercializada, inicialmente, entre empresas de construção civil.
“Estamos montando um projeto junto com a Prefeitura de Guaramiranga para que restaurantes e hotéis passem a usar este tipo de máscara para dar maior segurança ao turista de que naqueles locais os protocolos estão sendo seguidos. Também desenvolvemos uma versão da máscara transparente que humaniza mais o uso, possibilita visualizar o sorriso”.
O Ceará também está se preparando para começar a produzir seus próprios modelos de ventiladores mecânicos. Um protótipo está sendo desenvolvido em parceria pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai/Ceará) e a empresa de eletroportáteis Mallory.
O protótipo está em desenvolvimento e se der certo vai suprir uma demanda por equipamentos que hoje precisam ser importados de países como a China e a Alemanha, explica o diretor técnico do Senai, Paulo André Holanda.
“Entendo que durante a pandemia há uma necessidade das empresas olharem para fora e para dentro, fazer as adaptações necessárias e unir esforços em busca de soluções. Todos temos que fazer alguma coisa. Então, nós colocamos toda a expertise da nossa engenharia à disposição, para que pudéssemos compartilhar conhecimentos e dar maior velocidade ao desenvolvimento destes ventiladores que são tão necessários nos hospitais”, afirma a CEO da Mallory, Annete de Castro.
Ela diz que a prioridade é desenvolver o produto logo, mas a decisão de entrar definitivamente neste nicho de produtos hospitalares ficará para um segundo momento. De todo modo, ela adianta que, dentro do seu próprio mercado, há uma tendência de aumento de demanda por produtos relacionados ao bem-estar.
“Todos sairemos diferentes deste cenário de pandemia. Estamos desenvolvendo uma série de produtos para atender às novas necessidades da população, como ventiladores de ozônio, que permitem uma melhor bacterização do ambiente”.
Mais sobre a série
Esta série mostra como a economia da saúde no Ceará está sendo impulsionada pela epidemia da Covid-19. O aumento da demanda de produtos médicos e hospitalares abriu novas possibilidade para o setor no Estado.
Episódio 1. O POVO mostra como a recuperação econômica do Ceará poderá contar com os resultados da economia da saúde, um dos setores mais aquecidos nesses tempos de pandemia.
Episódio 2. Saiba como a tecnologia ampliou o atendimento de saúde pública e incentivou soluções de novos negócios no setor privado.
Episódio 3. Neste episódio, conheça como a indústria brasileira tem se adaptado às necessidades do País e promovido adaptações no seu parque industrial.
Série de reportagens detalha os gargalos e o que está sendo desenvolvido na indústria da saúde no Ceará