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A lagoa dos pássaros
Reportagem Seriada

A lagoa dos pássaros

Quase 1/3 das aves catalogadas no Ceará passam pela Precabura, a maior lagoa da Região Metropolitana de Fortaleza, conforme pesquisa inédita. Cinco das espécies avistadas estão classificadas atualmente sob iminente risco de extinção.
Episódio 1

A lagoa dos pássaros

Quase 1/3 das aves catalogadas no Ceará passam pela Precabura, a maior lagoa da Região Metropolitana de Fortaleza, conforme pesquisa inédita. Cinco das espécies avistadas estão classificadas atualmente sob iminente risco de extinção.
Episódio 1
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Pelo menos uma vez por mês, ao longo de oito anos, o pesquisador Luis Gonzaga Sales Júnior, 60 anos, ornitólogo e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), cumpriu o rito de observar as aves que moram ou estão de passagem pela Lagoa da Precabura. É a maior lagoa da Região Metropolitana de Fortaleza, ocupa área de 518.400 m².

Entre 2012 e 2018, com uma pausa de agosto de 2014 a agosto de 2016 (forçada também por cortes na verba dos bolsistas que o acompanharam), Sales compareceu metodicamente em dez pontos do entorno do manancial. Não era só contemplação, estava produzindo ciência. Com seu grupo, ele registrou, identificou e, literalmente, contou o que pode da avifauna presente no local naqueles dias.

Marrecas, garças, gaivotas, biguás, tetéus (quero-queros), beija-flores, talha-mares, socós, sericoias, caburés, sibites, mergulhões, sabiás. Uns de nome popular bem diferenciado: sebinho-do-camurça, trinta-réis-de-bico-preto, nambu espanta-cavalo, mãe-da-lua, pilrito-de-bico-comprido, tiou, caminheiro-do-campo, ui-pi. Outras mais comuns aos olhos urbanos: pombos, rolinhas, urubus, gaviões, bem-te-vis.

O falcão-peregrino, que vem desde o Canadá e Estados Unidos e desce até a região da Patagônia (entre o Chile e a Argentina), viaja para fugir do tempo mais frio. O Ceará está no seu itinerário. Gonzaga só viu cinco deles na Precabura.

Há pássaros que migram até de mais longe e são mais raros, como a garça-caranguejeira. É típica de países do continente africano. Dessa, o professor teve apenas uma nos registros. "Vi aqui uma que também foi avistada lá na área do mangue do Cocó (por outros pesquisadores). Acredito que tenha sido a mesma. É bem rara por aqui", pontua.

Freirinha macho (Arundinicola leucocephala). Ave que vive no habitat da lagoa da Precabura, no município de Eusébio-Ceará. (Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Freirinha macho (Arundinicola leucocephala). Ave que vive no habitat da lagoa da Precabura, no município de Eusébio-Ceará.

Essa mesma espécie pode também migrar desde a Eurásia (região na interseção da Ásia e da Europa). Há os que vêm mais de perto, da caatinga, de matas de tabuleiro, matas ciliares próximas, de várzeas, da faixa de praia, dunas, se desviam de seu habitat ou nasceram mesmo naquele ambiente lacustre.

Na sua catalogação, Gonzaga confirmou um número relevante: 172 espécies de aves, no mínimo, frequentando o cenário da Precabura. Correspondem a 30,93%, quase 1/3 dos 556 pássaros listados no Inventário da Fauna Cearense 2021, publicado pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema).

Este novo estudo terá peso nos registros ambientais do Estado. É o mais amplo apontamento já feito sobre as aves da lagoa. É parte da tese de doutorado em Ecologia, "Aves Costeiras e seus Impactos Adversos".

Ele também visitou as áreas do Cumbe, em Aracati, a praia do Pecém, em São Gonçalo do Amarante, e a praia do Mucuripe, em Fortaleza. Gonzaga deverá apresentá-lo ainda em 2021 na Universidade Federal do Ceará (UFC).


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Entre o número de "indivíduos", que é a contagem de cada pássaro avistado, foram anotados 34.722 nos oito anos. Algumas mais abundantes, como a garça-pequena, a marreca-viuvinha, a jaçanã, o pato-do-queixo-branco, a galinha-d'água. Dentre sete das espécies, como o ui-pi ou as já citadas garça-caranguejeira e trinta-réis-róseo, só chegou a ver uma única ave no período monitorado. Por não serem típicas de lagoas ou por serem mesmo difíceis de serem avistadas.

Dos hábitos alimentares, as mais preponderantes foram as aves predadoras (71,45%) - comem insetos (43,66%), peixes (11,22%), carne de outros animais (6,8%), moluscos (5,06%) ou vermes (2,85%). As herbívoras (28,55%) se alimentam de grãos e sementes (14,3%), frutas (7,27%), folhagens (4,94%) ou do néctar da floração (2,03%).

Carcará é uma das aves necrófagas, que se alimentam de carne estragada, registrada na lagoa da Precabura(Foto: LUIS GONZAGA SALES JR)
Foto: LUIS GONZAGA SALES JR Carcará é uma das aves necrófagas, que se alimentam de carne estragada, registrada na lagoa da Precabura

Numericamente, o total de aves registradas na Precabura poderia ser até maior, já que o levantamento precisou ser "finalizado" e a pesquisa de campo coincidiu com anos seguidos de estiagem no semiárido nordestino. A seca no território cearense reduziu o espelho d'água da lagoa à época.

No momento, a Precabura está com boa recarga pelos dias chuvosos. Até vias de acesso estão alagadas. A poluição pode ser dimensionada pela grande quantidade de aguapés presente na margem da lagoa no extremo norte, próxima à avenida Maestro Lisboa.

 

Aves ameaçadas usam o Ceará como rota de migração

 

Cinco das aves frequentadoras da lagoa da Precabura, no trabalho do pesquisador Luis Gonzaga Sales, também são mencionadas no Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção, produzido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Estão em níveis diferentes de risco e usam o Ceará em seus voos migratórios.

O maçarico-de-costas-brancas (Limnodromus griseus) e o maçarico-de-peito-marrom (Calidris canutus) são classificados como "criticamente em perigo (CR)". O maçarico-rasteirinho (Calidris pusilla) é citado como "em perigo (EN)". A batuíra-bicuda (Charadrius wilsonia) e o trinta-réis-róseo (Sterna dougalli) estão hoje consideradas como espécies "vulneráveis (VU)".

Conforme o apontamento do ICMBio, estas citações às cinco espécies registradas na Precabura estariam numa classificação de risco já grave. Das 236 aves do Brasil na categoria de "ameaçadas" de extinção (11,79% do total de 1.979 espécies listadas no País), 42 estão "criticamente em perigo"(2,12%), 72 são classificadas "em perigo" (3,59%) e 121 consideradas "vulneráveis" (6,07%).

O maçarico-de-peito-marrom (ou de-papo-vermelho) teria sofrido um declínio populacional de 67 mil indivíduos estimados no planeta, em meados dos anos 80, para menos 14 mil em 2012 - chegaram a ser menos de 10 mil em 2011. Em oito anos de estudo, Gonzaga avistou três deles. O maçarico-rasteirinho, que usa o litoral do País para seu voo migratório, teria sofrido declínio de mais de 90% de sua população: de 192 mil em 1986 para menos de 19 mil indivíduos em 2011.

Bando de aves migratórias, que costumam frequentar a lagoa da Precabura, fogem das estações frias em longos voos durante o ano entre a América do Norte e a Patagônia (Chile-Argentina) ou vêm até da África e Ásia-Europa(Foto: luis gonzaga sales junior)
Foto: luis gonzaga sales junior Bando de aves migratórias, que costumam frequentar a lagoa da Precabura, fogem das estações frias em longos voos durante o ano entre a América do Norte e a Patagônia (Chile-Argentina) ou vêm até da África e Ásia-Europa

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O maçarico-de-costas-brancas sofreu declínio de 86% em sua população no Brasil em 25 anos (de 8 mil para 1,1 mil, entre 1986 e 2011). O trinta-réis-róseo, só uma ave avistada nos estudos da Precabura, é ameaçado em seu habitat migratório por situações como a especulação imobiliária, solo contaminado ou mesmo a caça (para alimento) e destruição de ninhos. Sobre a batuíra-bicuda, "especialistas acreditam que a população brasileira não ultrapasse 1.000 indivíduos maduros", destaca o Livro Vermelho. A edição mais atualizada do trabalho do ICMBio é de 2018.

Nas andanças pela borda da Precabura, o ornitólogo Luis Gonzaga Sales ouviu diversos relatos de moradores da região sobre a prática humana da caça. Principalmente para serem comercializadas e trancadas em gaiolas. Algumas também como alimento. "Ressalte isso na reportagem, sobre as aves caçadas. São muitas", pediu.

Esta abordagem não foi objeto de sua pesquisa, mas, segundo ele, entre espécies que costumam ser buscadas para captura estão o cancão, o bicudo-azul, o periquito-do-sertão, o papacú, o azulão, o galo-campina e o canário. Para serem consumidas, caçam espécies de patos, marrecas, paturis e galinhas d'água.

 

 

Lagoa é vizinha de unidades de conservação, mas não é prestigiada

 

O trabalho sobre as aves frequentadoras da Precabura demarca ainda mais o valor da lagoa como parte do corredor natural da região, atrativo para o comparecimento permanente de várias espécies. A lagoa é quase emendada a pelo menos seis importantes ambientes: o Parque Estadual do Rio Cocó; o Parque Municipal das Dunas da Sabiaguaba; as duas Áreas de Preservação Ambiental (APAs), também da Sabiaguaba e a do rio Pacoti; a Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) do Sítio Curió; além da faixa de praia que se estende bem perto e entra nas rotas migratórias de várias espécies.

Estes seis ecossistemas já são definidos como unidades de conservação, estabelecidas pela Lei Federal 9.985/2000. A Precabura ainda não recebeu esse carimbo oficial, apesar de ser demanda antiga de ambientalistas e pesquisadores locais, inclusive com discussões no âmbito legislativo.

"A Lagoa da Precabura não se configura em Unidade de Conservação, do ponto de vista da Lei 9985/2000, portanto a Sema não possui a gestão da referida área. Embora não seja uma Unidade de Conservação, configura-se como área protegida pelo Código Florestal, lei 12.651/2012, evidenciada pelas Áreas de Preservação Permanente da mata ciliar e entorno do corpo hídrico", respondeu ao O POVO a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema).

Vista aérea da lagoa da Precabura, onde estudo ornitológico identificou a presença de 172 aves. (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Vista aérea da lagoa da Precabura, onde estudo ornitológico identificou a presença de 172 aves.

Conforme a Sema, as Prefeituras de Fortaleza e Eusébio "têm responsabilidade na gestão dos seus respectivos territórios quanto ao ordenamento urbano, uso e ocupação do solo, gestão de resíduos sólidos, proteção dos recursos hídricos, bem como a gestão ambiental, de acordo com a Lei Complementar Federal 140/2011" (que disciplina a competência comum para as questões ambientais entre os entes federativos, fixando normas para a cooperação entre a União, Estados, Distrito Federal e os Municípios).

O professor Luis Gonzaga Sales confirma ter participado de um estudo, ao lado do professor de Ciências Ambientais Marcelo Moro (UFC) e do biólogo Gabriel Aguiar, atualmente vereador em Fortaleza, para fundamentar a proposta de se criar uma unidade de conservação na Precabura. "Por solicitação das entidades socioambientais iniciou-se um processo de discussão sobre a importância de criar na área uma Unidade de Conservação, visando uma maior proteção e atenção. Em 2018/2019 foi instituído Grupo de Trabalho constituído por representantes da sociedade civil e poder público, cujos trabalhos técnicos foram apresentados, mas não houve consenso entre os entes", informou a Sema, em nota. "A Precabura tem que ser preservada por ser um corredor natural para as aves que fazem a migração. A lagoa é usada por elas como um intervalo nessa viagem", destaca Gonzaga.

 

Poucos trabalhos científicos

 Autor dos livros Aves do Ceará (Editora LCR, 2008), Aves da Caatinga (Fundação Demócrito Rocha, 2004) e Aves do Maciço de Baturité (Ibama, 2004), Luis Gonzaga Sales informa que não existem artigos científicos sobre a Precabura. É uma demanda ainda a ser coberta pela ciência local. “Minutei uma nota, sobre o Himantopus mexicanus (pernilongo-de-costas-negras), da Precabura, na (revista científica) Atualidades Ornitológicas (AO), que deverá sair até o final do ano”, confirma o ornitólogo.

Na vizinhança, os estudos mais completos foram de professores da UFC que trabalharam no Plano de Manejo da Sabiaguaba, concluído em 2010. O documento deveria nortear as ações oficiais de conservação da APA e do Parque Natural Municipal das Dunas da Sabiaguaba (PNMDS). Até o fim do ano, Gonzaga pretende publicar mais material sobre a Precabura - incluindo seu trabalho de doutorado.

Perguntado sobre as janelas ainda abertas para suas pesquisas na Lagoa, Luis Gonzaga Sales considera que “as incertezas científicas existem, como em quase todo local. Desde falta de trabalhos como falta de recursos e de gente capacitada”. Segundo ele, as principais lacunas dizem respeito à diversidade biológica que ocorre realmente na região “e como essa se comporta diante, dos recursos/forrageamento (alimentos) e técnicas de nidificação (construir ninhos) e ecológicas. Além do pouco conhecimento das espécies migratórias e limnícolas (que se alimentam de lodo, lama).


>> Metodologia e dados utilizados

Para esta reportagem, o Data.doc - Núcleo de Jornalismo de Dados do O POVO - usou como ponto de partida a pesquisa "Aves Costeiras e seus Impactos Adversos", do ornitólogo Luís Gonzaga Sales. Os dados do estudo integram a tese de doutorado em Ecologia pela UFC, a ser defendida pelo pesquisador no final de 2021.

As informações foram cruzadas com o Inventário da Fauna Cearense 2021, da Secretaria estadual do Meio Ambiente (Sema), que lista toda a avifauna no Estado. Também com as análises dos volumes I e III do Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção, do ICMBio, de 2018. Além de imagens do Wikimedia Commons, nossa equipe de repórteres e fotojornalistas foram a campo e registraram fotos, vídeos e áudios dos cantos das aves.

Para construção dos espectrogramas e mapeamento das aves no mundo, utilizamos a biblioteca de sons do site Xeno-Canto. Fizemos uso do pacote warbleR do R - um ambiente de software livre para computação estatística e gráficos - para agilizar a análise de sinais acústicos dos animais. Os espectrogramas foram construídos no Raven Lite 2.0.1 e After Effects. Como forma de garantir a integridade e confiabilidade da nossa análise, disponibilizamos aqui as bases e documentos utilizados na produção deste material.

>> Categorias utilizadas para definição do grau do risco de extinção das espécies

 

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Lagoa da Precabura: aves e outras espécies

Nesta série, o leitor dará um mergulho na Lagoa da Precabura e descobrirá a pluralidade e a riqueza do manancial, tanto com relação às aves quanto a outros animais