A mansão, aparentemente abandonada, ainda tem o porte suntuoso acima da média local da Caponga. A praia fica no litoral leste cearense, no município de Cascavel, a 60 km da Capital. Com andar térreo e superior, o imóvel tem o formato de um vértice. Fachada de vidro, ambientes internos espaçosos, escadaria exuberante, alguns móveis e quadros aparecem na sala e quartos. É uma das maiores casas de veraneio da região.
Mas o espaço principal de lazer do palacete está destruído. Desde o final de 2015, a piscina-fonte do jardim, com cascata, foi totalmente encoberta por areia. Sumiu engolida por mais uma maré alta que a comunidade da Caponga se acostumou a assistir nos últimos 20 anos.
O muro da casa que fica mais próximo da faixa de praia foi derrubado pelas ondas. Do lado de fora, havia sido erguido um paredão de pedras, mas ele sucumbiu ao avanço do Atlântico. Até pouco mais de duas décadas atrás, eram cerca de 200 a 300 metros de distância até a área das arrebentações. O oceano se aproximou de vez. As marés maiores eram raras, passaram a ser mais frequentes.
Os estragos não são poucos no casarão. Os banheiros do jardim, que ficam ao lado da outra piscina menor - não necessariamente pequena, com hidromassagem, azulejos personalizados, bar molhado e posicionada de frente para a mansão - tiveram o alicerce desenterrado pela força das ondas. Toda a linha de casas próximas tem a maresia respingando diariamente. Com a estrutura comprometida, dois imóveis da mesma faixa foram demolidos. E há mais deles comprometidos.
A história da mansão da Caponga ajuda a dimensionar outros episódios e pontos de erosão que vêm acontecendo ao longo da costa cearense nas últimas décadas. São 573 km de extensão e muitos problemas. Cenários destruídos, afetados ou já com forte tendência erosiva na faixa metropolitana do litoral - entre Caucaia, Fortaleza, Aquiraz e Cascavel. Uma sina que se prolongará, a contar do momento atual. Há várias descrições de outras praias afetadas pela força das ondas. Nesse enredo, o papel de vilão não é do mar, mas sua força é avassaladora.
A força das águas destruiu completamente o imóvel, inclusive as duas piscinas, deixando parte das fundações à mostra - Fotos: Fábio Lima
O oceano está avançando para o continente também por causa das ocupações desordenadas ou irregulares, imóveis edificados até dentro de zonas de arrebentação, onde ainda é mar. Há imóveis na costa do Ceará com suas edificações já dentro do mar. Quando foram erguidos, estavam a menos de 50 metros da área de arrebentação. Pois o mar chegou e retomou seu espaço.
Somam-se diversos fatores, todos protagonistas da situação: o aquecimento global, o maior volume dos mares, ondas com mais energia, ventos extremos, concentração populacional, políticas de monitoramento e contenção das erosões e até a escassez hídrica - grave no Nordeste brasileiro. Tudo é, ao mesmo tempo, causa ou consequência do problema.
Na Capital, os processos erosivos se agravaram a partir dos anos 1950, após a inauguração do Porto do Mucuripe. A obra impactou na dinâmica costeira, desviando o fluxo de areia para as águas abertas. As ondulações que estariam na rota de Fortaleza então se intensificaram para o litoral oeste. Há uma repercussão danosa forte para aquele lado, com mais trechos destruídos, afetados ainda na região metropolitana. As praias de Caucaia são esse exemplo mais cruel. Como efeito direto, toda a costa ganhou a feiúra de pedras de paredões, com pontos erodidos e praias com espaços reduzidos.
O casarão da Caponga fica ao lado da desembocadura do riacho Roseira. O terreno mede um quarteirão inteiro, há imóveis menores dentro dele. É flagrante que há algum tempo ali não é frequentado em fins de semana ou temporadas de férias. O cenário está desfigurado. Se citassem que foi um furacão que destruiu o local, não seria impensável - apesar de o território cearense não ser propício ao fenômeno, ainda. O mesmo mar que serviu de atrativo foi impiedoso quanto ao desfecho.
O tamanho do dano provocado pelo avanço do mar e toda a extensão do desgaste no litoral do Ceará foram devidamente mapeados. Conforme a publicação “Panorama da Erosão Costeira no Brasil (2018)”, o Estado tem 47% de sua faixa litorânea comprometida em um quadro de erosão já confirmada (30%) ou de tendência erosiva (17%). Estes são os dados mais atualizados sobre o tema. “Mas pode arredondar e considerar tudo como erosão, porque esse é o cenário de fato”, resume a pesquisadora Lidriana de Souza Pinheiro, doutora em Oceanografia e vice-diretora do Laboratório de Ciências do Mar (Labomar), da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ela foi uma das que participaram do levantamento. Há 43% de praias em situação estável e só 10% têm recuperado sedimentos e se regenerado.
"Em 573 km de costa no Ceará, temos pontos com intensidades bem diferentes de erosão. O processo erosivo está sendo percebido em praticamente toda a extensão territorial do Estado", acentua a pesquisadora. Ela menciona vários "contextos muito graves" da atualidade. As praias de Icapuí estão "com quase 50% de toda sua linha costeira com processos erosivos". A orla inteira de Caucaia passa pelo problema - desde Dois Coqueiros, Iparana e Pacheco, o Icaraí como trecho mais preocupante, os estragos visíveis na Tabuba e as primeiras degradações no Cumbuco. A Caponga tem um quadro destruído que piorou na última década e meia e ela alerta sobre a praia de Balbino, ambas em Cascavel.
Nas falésias de Canoa Quebrada, em Aracati, as voçorocas (grandes buracos causados pela erosão de terrenos que não são mais protegidos pela vegetação) foram agravadas pela pavimentação da rua Broadway, a principal da vila. A preocupação segue para os desgastes na praia da Taíba, em São Gonçalo do Amarante. Iguape, Batoque e Praia do Presídio, em Aquiraz, são quase um mesmo quadro crítico. Há recuos acelerados em Itarema e Acaraú. Em Jericoacoara, a fama trouxe adensamento populacional e agravou a situação, segundo a pesquisadora.
Há praias que entre cinco e dez anos tiveram de 200 metros a 300 metros abocanhados pelo mar. Até mais. No Icaraí, em duas décadas, as ondas passaram a quebrar 500 metros adiante de onde já estiveram, segundo informações dos próprios técnicos da prefeitura local. Lá, as decisões tomadas para conter a força das marés não deram o resultado esperado. Gastou-se bastante verba pública com isso.
"Se for por ranking, o pior cenário é o de Caucaia", reconhece Lidriana Pinheiro. Com a costa cearense subdividida em quatro partes (desde Bitupitá, extremo oeste, até Icapuí, extremo leste), os trechos 3 e 4 são considerados os mais agravados: com 56% e 58% de erosão ou tendência erosiva, respectivamente, somadas no mapeamento feito pelos cientistas.
Lidriana coordenará neste primeiro semestre de 2020 uma segunda parte do estudo, que fará projeções de quanto o mar abocanhará do litoral cearense nas próximas décadas. “Vamos fazer a simulação. Tentar usar os indicadores de subida do nível do mar apontados pelos órgãos internacionais e tentar projetar na nossa costa. Finalizamos a parte de diagnóstico e estamos agora na fase de estabelecer cenários. Identificamos as áreas mais críticas, vamos trabalhar nelas, mas não apenas nas que já estão com a erosão instalada, mas também naquelas áreas que ainda estão apresentando estabilidade”, detalha.foco dessa fase do trabalho deverá ser a Região Metropolitana de Fortaleza e parte de regiões do litoral Oeste. Segundo ela, por conta da tendência de expansão de investimentos ligados ao turismo e a projetos de ocupação dessas áreas. No linguajar científico usado por Lidriana, “a expansão urbana é um termômetro de como esses sistemas praiais vão se adaptando a essa pressão antropogênica (causado pelo homem)”.
Pós-doutor em Gestão Integrada da Zona Costeira, o professor Fábio Perdigão, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), vaticina: "A tendência de erosão é aumentar. Por várias razões. Primeiro, porque há um déficit de sedimentos ao longo do litoral. Segundo, estamos num período natural de subida do nível do mar. Estamos num período de aquecimento. Terceiro, o homem está acelerando esse aquecimento, jogando mais gás carbônico na atmosfera, mais gás sulfídrico, e isso aumenta o efeito estufa. Estamos acelerando um processo que era natural. Além disso, tem o barramento dos rios, que levava areia para as praias".
Algumas vezes, é o mar que acaba entrando pelo leito do rio, em vez de o manancial desaguar no oceano. Pesquisadores cearenses já chegaram a constatar a presença de cavalos marinhos, peixes e estrelas-do-mar próximos à parede da barragem de Itaiçaba. A parede fica a cerca de 35 km da foz do rio Jaguaribe. Em Itaiçaba, longe do mar, a salinidade é praticamente igual à da água marinha. Ou seja, o oceano entra pelo estuário inteiro, sertão adentro, em vez de receber areia do rio.
“No mar, a salinidade mede 36,5 ou 37. Lá (em Itaiçaba) a gente já mediu 49. Na última vez que fizemos (a medição) deu 29, mas confirma os níveis presentes”, afirma o professor Luiz Drude de Lacerda. Ele também é pesquisador do Labomar, da UFC, e foi convidado, no final de 2019, para compor a Future Earth Coasts Academy, um projeto internacional de investigação das zonas costeiras. É o único docente brasileiro membro. A FEC Academy reúne 34 pesquisadores dos cinco continentes.
Num efeito inverso, a praia do Pontal de Maceió, em Fortim, começou a ganhar sedimentos. De uma erosão intensa entre 1998 e 2012, o lugar mudou, voltou a crescer. O assoreamento da foz do rio Jaguaribe, através do trabalho das correntes costeiras, contribuiu para o fenômeno.
A professora Lidriana Pinheiro pondera que a taxa de avanço do mar diminuiu em alguns trechos do litoral cearense porque foram implantadas obras de proteção, como enrocamentos em várias faixas de praia. "São obras que impedem o avanço do mar, porém não devolvem a praia para os seus usos essenciais", contrapõe.
Foi o que se deu no entorno do porto do Pecém, que voltou a se recompor. "A erosão é um processo cíclico. Ele passa a ser um problema quando interfere no sistema socioeconômico e nas pessoas que ali residem. Quando tem estrutura urbana instalada, todo um circuito que envolve geração de renda, seja ligada ao turismo, áreas portuárias, áreas industriais, próximas a zona costeira, a erosão passa a ser um problema", define a professora.
O levantamento para o livro "Panorama da Erosão Costeira", custeado pelo Ministério do Meio Ambiente, foi coordenado nacionalmente pelo professor aposentado Dieter Muehe. Baiano, ele é doutor em Ciências da Natureza (com ênfase em geomorfologia costeira) e esteve à frente de diversos estudos sobre o mesmo problema no País. Pesquisadores de todos os Estados realizaram as análises locais.
"Nas regiões Norte e parte do Nordeste do país, cerca de 60 a 65% da linha de costa está sob processo erosivo, ao passo que no Sudeste e Sul esse percentual, com cerca de 15%, é bastante inferior. (...) As áreas sob significativo processo erosivo continuaram mantendo a tendência anteriormente detectada, com exceção do Ceará e Pernambuco, onde ocorreu intensificação dos processos erosivos", destacou.
Na apresentação do trabalho, Muehe cita uma frase do doutor Norberto Olmiro Horn Filho, geólogo estudioso das praias de Santa Catarina, intrigado com os processos erosivos na ilha de Florianópolis: "O mar está diferente". A análise, curta e precisa, ajuda a entender mais do que se passa.
A informação, que O POVO tentou confirmar junto à Secretaria Municipal de Arrecadação de Cascavel, é que o dono do casarão atingido pelas ondas na praia da Caponga teria sido um advogado americano que teve como cliente famoso o astro pop Michael Jackson. Depois, a propriedade teria sido vendida para outro milionário, também dos Estados Unidos, que nem teria chegado a visitá-la. "No registro de imóveis não consta o nome do proprietário", confirma um servidor do órgão local.
Ano após ano, a cobrança de impostos municipais vem sendo lançada pela inscrição do imóvel, através dos dados cartográficos, e o débito estaria se agigantando. Sobre os possíveis donos milionários, "é só o que a gente sabe aqui", afirma o servidor. A vizinhança também comenta desse proprietário estrangeiro, amigo de MJ, mas não se sabe o nome. A mulher dele seria uma brasileira. O fato é que o palacete perdeu muito valor e serventia, no momento. Já há algum tempo, o local está vulnerável. (Os vizinhos falaram de um caseiro que tem a chave do imóvel, mas ele não estava no dia da visita do O POVO.)
A propriedade do outro lado da foz do riacho Caponga Roseira, que também margeia a mansão citada, é onde funcionou o antigo hotel Village - que depois foi vendido e rebatizado como Caponga Beach. Sem atrativos maiores e com prejuízos, a clientela principal de estrangeiros se desinteressou. O estabelecimento foi fechado cerca de dez anos atrás. O lugar está em aspecto tão ou mais afetado que o casarão. Os bangalôs para hospedagem se degradaram, o bar mais próximo da praia está demolido, as piscinas juntam água de chuva ou palhas de coqueiros caídas. As instalações são cuidadas por um vigia.
Série especial mostra o impacto da ação humana no avanço do mar e os prejuízos causados ao meio ambiente