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As transformações urgentes
Reportagem Seriada

As transformações urgentes

Sustentabilidade se transforma cada vez mais em palavra de ordem no mundo da moda. No pós-pandemia, levar em conta os recursos naturais nos processos fabris tem envolvido toda a cadeia de produtores conscientes com os novos modos de consumir moda
Episódio 2

As transformações urgentes

Sustentabilidade se transforma cada vez mais em palavra de ordem no mundo da moda. No pós-pandemia, levar em conta os recursos naturais nos processos fabris tem envolvido toda a cadeia de produtores conscientes com os novos modos de consumir moda
Episódio 2
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Uma crise drástica na saúde chamou a atenção de todos, sem exceção. Mas quem, convocado, se sentiu aberto à(s) mudança(s), não pensou duas vezes. Continua em exercício de constante reflexão. Em relação à moda, claro que sim.

As engrenagens passam justamente por ajustes, dando lugar, quem sabe, a uma grande virada, mais efetiva, de sustentabilidade (na moda local); em suas formas de produção e de consumo consequentemente transformadas por um desenho atual (e inevitável) de questionamento a partir das vivências múltiplas, em decorrência do novo coronavírus.

Mas até entender o processo do momento, e o porquê da moda no meio, há um aspecto maior, do global ao local, que nos leva à compreensão do diagnóstico. Quem nos conduz à reflexão é a professora de moda Marta Sorelia Castro, em pesquisa para o doutorado em Psicologia.

De acordo com Marta, membro do Laboratório das Relações Humano Ambientais (Lerha), uma parcela da sociedade está mais sensível aos apelos da sustentabilidade, e não é de agora.

Em novembro de 2019, Patagônia produziu 10 mil peças ENTITY_sharp_ENTITYupcycled, movimento que recria e reutiliza peças de forma sustentável
Foto: Reprodução/Instagram
Em novembro de 2019, Patagônia produziu 10 mil peças ENTITY_sharp_ENTITYupcycled, movimento que recria e reutiliza peças de forma sustentável

“As últimas pesquisas científicas apontam que os acontecimentos da contemporaneidade estão relacionados à exploração exacerbada dos recursos naturais do planeta por muitas gerações”, explica.

“Alguns cientistas, defendem que estamos vivenciando o 'Antropoceno', que consiste em uma nova fase geológica marcada pela ação do homem modificando e impactando negativamente a natureza”, acrescenta a professora.

“Para a maioria desses estudiosos, o início dos impactos negativos sobre o ambiente teve origem a partir da Revolução Industrial que resultou no aumento exponencial da emissão de gases poluentes, desmatamentos, ocupação indevida dos solos e degradação da biosfera terrestre. Neste sentido, estas pesquisas apontam que a grande maioria das pandemias e catástrofes ‘naturais’, tem explicação na gestão de parâmetros ambientais e socioeconômicos”, reflete a pesquisadora.

Da parceria Stella McCartney com @parley.tv: tênis feito a partir de plásticos encontrados no oceano
Foto: Divulgação
Da parceria Stella McCartney com @parley.tv: tênis feito a partir de plásticos encontrados no oceano

“Acredito que, na última década, os apelos para a adoção do consumo consciente na moda ganharam notoriedade em todo o mundo. Infelizmente, as buscas por práticas sustentáveis têm sido evidenciadas em eventos decorrentes de crises ambientais e tragédias correlacionadas”, conclui Marta, expondo o contraponto. 

Um marco importante neste processo de conscientização, lembra Marta, foi a notoriedade obtida no desabamento do prédio Rana Plaza no ano de 2013, em Bangladesh, cuja estrutura desmoronou sobre um conglomerado de confecções de roupas populares, acarretando mais de duas mil vítimas.

“Esta tragédia chamou a atenção das pessoas sobre os custos reais da moda, que muitas vezes envolve a produção excessiva de bens de consumo, que em pouquíssimo tempo serão descartados, produzidos em condições de semiescravidão e exploração de trabalho infantil.”

A professora também lembra que este episódio dramático deu origem ao movimento “Fashion Revolution”, que mobiliza pessoas em todo o mundo para investigar a origem dos produtos de vestuário, o impacto ambiental e social desta forma de produção. Sendo o slogan deste movimento a pergunta: “Quem fez minhas roupas?”.

“Por meio de iniciativas de sustentabilidade ambiental e de movimentos em prol da responsabilidade social, percebe-se uma luta por melhores condições de trabalho, de modo que não se possa mais esconder nos bastidores dos circuitos da moda realidades de opressão e morte de muitos, implícita na obtenção do luxo de poucos”, pondera Marta, enquanto deixa um segundo convite à reflexão.

Professora Marta Sorelia Castro em um momento criativo durante a quarentena
Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação
Professora Marta Sorelia Castro em um momento criativo durante a quarentena

Para a pesquisadora de moda, muitas marcas sustentáveis surgiram com o intuito de contemplar esta nova demanda em ascensão, a fim de ir ao encontro de um novo tipo de consumidor que não quer compactuar com as práticas ilícitas e naturalizadas do mercado.

“Por isso, as marcas eco-fashion tem por objetivo promover o consumo consciente, alicerçadas na divulgação de um novo estilo de vida, que questiona o consumo em excesso, a origem da matéria-prima e a forma com que são produzidas as peças desse vestuário”, ensina. Segue a entrevista com Marta Sorelia.

O POVO - Até pela pesquisa, que envolve sustentabilidade, você se viu revendo algum conceito?

Marta Sorelia Castro: Como pesquisadora deste assunto, passei a ter mais atenção na relação com a origem e a forma com que este vestuário é produzido. Neste sentido, defendo que as novas práticas devem incluir o resgate de técnicas artesanais, das peças feitas em menor escala e da relevância de se desenvolver um vestuário que contemple história e afetividade.

As roupas são nosso invólucro corporal, a extensão da nossa aparência enquanto ser social, sendo assim, os fatores desta indústria deveriam ser considerados a partir de sua relevância social e seus impactos socioeconômicos.

O processo de desaceleração das formas de produção não deve ser encarado como um retrocesso econômico ou financeiro, pelo contrário, trata-se da humanização das formas de produção, adicionando respeito e afeto aos seres humanos envolvidos em todas as fases da cadeia produtiva. Esta forma de produção ultrapassa o desenvolvimento de objetos materializados e ganha abrangência na geração de sentidos e novos significados que são socialmente construídos.

Por isso eu particularmente não acredito em mudanças repentinas, mas sim num processo que cresce 'insistente e paulatinamente', por meio da educação e da conscientização como base das novas gerações.


O POVO - Como acredita ser o cenário moda (local) e pós-pandemia? Que outros conceitos estão/estarão mais intrínsecos à sustentabilidade neste "novo" caminhar?

Marta - Inicialmente, alguns especialistas apontavam para o surgimento de um novo mercado e que o período de isolamento social daria origem a um novo impulso no mercado de consumo consciente, no qual as pessoas perceberiam suas reais necessidades e não seriam levadas ao consumo compulsivo.

No entanto, os países que nos antecederam na flexibilização do isolamento social têm demonstrado o contrário, que as pessoas ficaram mais ávidas por consumo e por outras formas de hedonismo. Na abertura dos mercados as pessoas se comportaram como se não houvesse amanhã, ironicamente é esta ação deliberada que resulta em impactos ambientais.

Não se trata de algo superficial, a moda consiste em um complexo fenômeno social que envolve valores culturalmente construídos e consolidados por muitas gerações. Deste modo, uma mudança significativa dos estilos de vida não pode ser esperada como algo imediato.

O consumo reside na ordem da geração de desejos e pode ser compreendido na origem de toda a cadeia de produção de bens tangíveis e intangíveis, envolvendo valores que são ressignificados constantemente pela indústria cultural. Por isso, particularmente não acredito em mudanças repentinas, mas sim num processo que cresce 'insistente e paulatinamente', por meio da educação e da conscientização como base das novas gerações.

"Localidades": o olhar necessário

Celina Hissa e uma das colaboradoras da marca Catarina Mina
Foto: Divulgação
Celina Hissa e uma das colaboradoras da marca Catarina Mina

Desde 2015, à frente do tempo, com o projeto #umaconversasincera,  que fez da Catarina Mina, de Celina Hissa, designer e diretora de criação, a primeira marca de moda a abrir os custos no Brasil, agora, não seria diferente.

“Com a pandemia, começamos a olhar para nossa localidade, porque a distância, as viagens, tudo isso começa a ser um empecilho”, justifica a empresária, que vê esses fatores ainda mais fortes daqui por diante. Um saber que é voltado ao que se tem no local e como conseguimos, neste cenário, viver entre nós, sem dependência de uma globalização que, para Celina, está em xeque no momento.

“A doença chega de viagem, chega por essas trocas, então vamos nos restringindo”, acena o lockdown como medida para este olhar cada vez mais local. E além disso, em um outro viés, os laços afetivos, que são a essência da marca, a depender de Celina, serão também a porta para o novo, em tempos difíceis. “O local é aquela loja que conhecemos, aquela rua (por onde) passamos”, simplifica, em meio a uma grandeza que é, a partir do entendimento, poder fazer algo, para não deixá-la às sombras.

A cada semana é um novo planejamento, um novo pensamento, precisamos estar nos reinventando, porque a perspectiva não é fácil, e em nenhum momento é fácil, mas um desafio para todo mundo

Celina Hissa, empresária

“Se não olharmos para o nosso vizinho, para a loja da nossa rua, aquela loja não vai existir depois, e de forma muito rápida”, preocupa-se, e não só por ela, mas por toda uma economia local, incluindo suas artesãs, em ações, também, de redes e de movimentos maiores, que conscientizem mais pessoas sobre essas questões, como compre local, apoie um pequeno negócio. "Tudo isso não só precisa ser mais evidente como mais ativo", observa Celina.

Para a empresária, é muito importante entendermos que é uma voz que se comunica, para entender como é a vida desses pequenos negócios, na nossa cidade, na nossa rua, logo, como é que eles permanecem, porque eles dependem desse movimento, "e de nós", soma Celina, agindo no local, com o exemplo da própria marca, que é mais do que uma iniciativa, como tem sido em cada fase durante a pandemia.

Marca cearense apoia e gera renda a comunidade artesã
Foto: Divulgação
Marca cearense apoia e gera renda a comunidade artesã

Na primeira semana, a marca lançou a campanha Ciranda de Apoio visando a preços mais acessíveis, com ofertas que incluíam, por exemplo, produtos de dois projetos diferentes. “Com isso conseguimos manter a roda girando em vários grupos artesãos”, para segurar as pontas do mês de abril.

Já em maio, com a chegada do Dia das Mães, ainda manteve a campanha, mas deu-lhe destaques  diferenciais. Presentes personalizados para a data, uma das mais aguardadas pelo comércio, e fretes expressos.

Também articulada com a sobrevivência do local, veio a Aurora, uma coleção como símbolo do trabalho da marca, que sempre lançou suas novidades, com a diferença, agora, de um período totalmente atípico.

“Não tínhamos como articular a produção agora, porque estávamos em lockdown, sem conseguir comunicação com os grupos de artesãos, sem conseguir comprar material, sem conseguir mandar material”, relata um pouco do processo, que explica o motivo para a entrega só depois, para final de julho.

E quem pensou que parou aí, ainda não pegou o ritmo. “A cada semana é um novo planejamento, um novo pensamento, precisamos estar nos reinventando, porque a perspectiva não é fácil, e em nenhum momento é fácil, mas um desafio para todo mundo”, adianta Celina, com novidade só esperando o consumidor final: a Bem-estar.

“É uma linha que não é das bolsas Catarina Mina, mas que entra muito bem nesse momento, em que todo mundo está olhando para dentro, está em casa, olhando para pequenos cuidados, e que acreditamos que é muito importante, também”, afirma. Dos itens, as ecopads para limpar o rosto, reutilizáveis, feitos com fio de algodão.

A coleção também chega como forma de pensar sobre o pós, a começar de hoje. Revendo conceitos, como o de reaproveitamento de materiais em casa devido à questão de entrega de fornecedores, por exemplo. “Isso também pegou um pouco para nós”, disse Celina, ao perceber outras questões, variantes às marcas, como a compra de tecido, afetada durante as fases de combate ao coronavírus.

Marca cearense apoia e gera renda a comunidade artesã
Foto: Divulgação
Marca cearense apoia e gera renda a comunidade artesã

A reflexão vai além da moda

Associada ao viés ambiental, Celina também se mostra atenta ao descarte que impacta diretamente o consumo. “Nós precisamos pensar sobre nossos modelos de consumo, nossos modelos de produção, cada vez mais a questão do reuso, da produção de lixo, ‘para onde é que está indo?’ Isso é urgente!”, reforça atenção sugerindo vida longa aos produtos, além de design atemporal, como soluções.

“Nós precisamos nos conectar com essa outra forma, urgente, e tardia (precisávamos já ter feito isso há uns dez, vinte anos), para que tenhamos um mundo daqui a uns dez anos”, imagina.

Garrafas de vidro descartáveis se transformam em joias na @cled: uma proposta sustentável
Foto: Reprodução/thecled.com
Garrafas de vidro descartáveis se transformam em joias na @cled: uma proposta sustentável

Para a empresária, a pandemia também mostrou que podemos mudar nossos hábitos, de forma muito drástica. “Do dia para a noite, todo mundo precisou ficar em casa, todo mundo precisou reformular seu modo de trabalho, suas relações… do dia para a noite, nós conseguimos. A mudança no meio ambiente  vem vindo aos poucos. Mas isso é urgente! E precisamos fazer de um dia para a noite, também”, compara.

“Essa reflexão fica para a moda, fica para o mercado”, e ao senso de comunidade, que na visão de Celina, altera-se. “As pessoas começam a olhar para a rede, também. Elas começam a entender que o mundo pode sofrer; outras tragédias podem vir; podem impactar nossa geração, e precisamos sim cuidar, cuidar do consumo, das formas, das relações, do meio ambiente, do mundo, de uma forma geral”, conclui.

 

Pandemia trouxe novos negócios para a moda

Raquel Medeiros é consultora, professora de moda e idealizadora da Limonar
Foto: Divulgação
Raquel Medeiros é consultora, professora de moda e idealizadora da Limonar

Cearense dedicada há anos na consultoria para negócios de moda, Raquel Medeiros, formada designer de moda, com mestrado em Têxtil e Moda, acompanha, desde o início do ano, os novos ritmos do mercado, quando, em janeiro, lançou seu primeiro curso virtual. Ela é a idealizadora do método Limonar (Linguagens, Moda e Narrativas), com o qual ajuda empresas locais e também de outros Estados, na busca pelo propósito.

Para Raquel, com a pandemia, é algo talvez mais essencial do que um dia foi. “Durante esse momento, com esse foco no on-line, ganhamos mais clientes de consultoria, mais de 1.000 seguidores no Instagram e vendemos, até agora, mais de 1.000 cursos desde que iniciou o isolamento”, detalha. Leia a entrevista.

O POVO - Como percebe o impacto do novo coronavírus na moda local? Observa alguma mudança/adaptação aos "novos tempos"? Aproveitando, aos modelos de negócio de moda, quais os desafios e ou novas descobertas para? Que fatores estão (estarão) mais em evidência?

Raquel Medeiros - Não apenas a moda local, a moda nacional tem passado por uma grande crise. Em momentos de "stay home", a moda realmente não se torna prioridade. Porém, também é um momento de rever conceitos, repensar a marca, entender a narrativa que as marcas passam.

Muitos empresários perceberam apenas agora a importância de ter uma marca de moda pensando para além da roupa e estão em busca de entenderem mais os propósitos de suas marcas. Em relação aos modelos de negócios, muitos modelos serão repensados: atacado, varejo, e-commerce... As marcas de moda deverão repensar o foco dos seus negócios, já que muitos tiveram que experimentar novos modelos à força e sem planejamento.

Acredito que a pandemia veio para confirmar a necessidade de foco e organização, mesmo sabendo que a crise existe, as perguntas que ficam são: "como pretendo ser daqui pra frente? O que deixei de fazer e era necessário há muito tempo? O que não vi acontecer e tive que me adaptar de uma vez?"

Muitos empresários perceberam apenas agora a importância de ter uma marca de moda pensando para além da roupa e estão em busca de entenderem mais os propósitos de suas marcas.

O POVO - Alguma pesquisa que tenha chamado sua atenção recentemente?

Raquel - Como presto consultoria em negócios de moda, tenho pesquisado incessantemente as variações e mudanças dos modelos de negócio, coleções de moda, calendário de moda. Afinal, com uma "pausa" como essa, as marcas estão olhando mais para dentro e revendo até os calendários fixos anuais da moda, como foi o caso da Gucci, por exemplo, que em maio anunciou que não vai mais desenvolver coleções de acordo com o calendário convencional da moda – cruise, pré-outono, verão-inverno e primavera-verão. Irão fazer apenas duas coleções ao ano. Assim, a tendência é que essas decisões passem a tornar as marcas cada vez mais "independentes", já que olharão muito mais para o que são, o que desejam e podem oferecer.

O POVO - Ainda nesta atualização, e já finalizando, qual sua visão para o moda e pós-pandemia? É possível uma reflexão?

Raquel -  Sou muito contra o excesso de "previsões de futuro" nesse momento. Infelizmente, não temos muitos dados e nem respostas sobre esse vírus: quando termina a crise? Quando teremos uma vacina? Conseguiremos reduzir? Teremos que retomar o isolamento? Sem essas questões definidas, acho muito perigoso alguns conteúdos de previsões.

O momento é de empresários, consultores, pesquisadores, professores e estudantes de moda, todos se unirem para entendermos os rumos econômicos, as coleções, a quantidade de peças, os modelos de negócios.

Tenho sugerido conversas... O momento é de empresários, consultores, pesquisadores, professores e estudantes de moda, todos se unirem para entendermos os rumos econômicos, as coleções, a quantidade de peças, os modelos de negócios e principalmente, como essa pandemia veio para que a gente pudesse repensar ainda mais a moda. Uma moda mais sustentável e humana.

 

Na próxima reportagem, saiba como executivos de grandes e médias empresas de moda driblaram a queda nas vendas durante a pandemia apostando no e-commerce e repensando coleções e produtos. 

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Pandemia provoca transformações no mundo da moda

A cadeia da moda passa por transformações profundas diante da mudança dos hábitos de consumo estimulada pela pandemia.