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Moda e criatividade
Reportagem Seriada

Moda e criatividade

O isolamento social obrigatório por vários meses em meio à pandemia do corona vírus aguçou o talento de realizadores da moda possibilitando conexões criativas entre designers e estilistas
Episódio 4

Moda e criatividade

O isolamento social obrigatório por vários meses em meio à pandemia do corona vírus aguçou o talento de realizadores da moda possibilitando conexões criativas entre designers e estilistas
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Mario Queiroz, designer de moda, desenvolveu um projeto de curadoria na área durante a pandemia (Foto: DIVULGAÇÃO)
Foto: DIVULGAÇÃO Mario Queiroz, designer de moda, desenvolveu um projeto de curadoria na área durante a pandemia

Enquanto a quarentena deu pause, de forma involuntária, em alguns projetos, outros nasceram justo em meio à ela, e por causa dela. Por que não fazer alguma coisa útil num momento de #fiqueemcasa? Um conhecido nosso, Mário Queiroz, designer de moda, que tinha planos de lançar seu novo livro, Homens e Moda no Século XXI (2019), em Fortaleza, teve a ideia. Na descrição, simples: “oferecer uma ajuda a designers e estimulá-los”. Deu certo.

“A resposta foi grande e havia me proposto a trabalhar com 15 durante um mês, e virou 19 durante 40 dias”, uma curadoria inédita para Mário, que nunca tinha trabalhado com orientação sem ver a pessoa. “Foi sim um desafio, uma descoberta não só da linguagem mas desses talentos e algo muito importante: entender o que eles dão importância, quais são as grandes vontades/necessidades”, ressalta que não envolvia dinheiro, nem concurso, e sim um crescimento maior de cada um e ainda uma coleção nova sobre o futuro próximo pós Covid-19.

Imagem da exposição 20 Fotógrafos Interpretam o Homem Brasileiro, extensão do evento anual Homem Brasileiro, de Mario Queiroz. O designer tem livro pronto sobre a temática  (Foto: Jonathan Wolpert/Divulgação)
Foto: Jonathan Wolpert/Divulgação Imagem da exposição 20 Fotógrafos Interpretam o Homem Brasileiro, extensão do evento anual Homem Brasileiro, de Mario Queiroz. O designer tem livro pronto sobre a temática

“É um momento de reflexão. De busca de soluções para os problemas que se agravaram mas também um olhar crítico sobre o que estávamos fazendo”, convida a pensar, deixando claro: “Podemos dizer como tende a ser, não o que será.” Assim: “Podemos falar de possibilidades a partir do que estamos vivendo agora: um crescimento do e-commerce, da ampliação da linguagem digital, de uma consciência nova de utilização do espaço físico e mudanças mais radicais como estabelecer novos calendários e dar um respiro necessário para que haja pesquisa, criação, renovação”, como os resultados da #fiqueemcasaecrie, no Instagram, com duas das coleções, cearenses.

“Entre meu trabalho de pesquisador, consultor e designer, o de professor está sempre vivo, se não em sala de aula convencional de uma pós graduação, em outros desenhos e formatos que o futuro nos apresenta”, como no vídeo a seguir, postado em sua rede social, durante os dias de isolamento social, vitrine do design dos novos pelo Brasil e mundo.


Conexões do existir, uma reflexão

Autorretrato de Maurício Alexandre(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Autorretrato de Maurício Alexandre

Maurício Alexandre soube do projeto por intermédio de outro nome da moda. "Eu vi o seu post de divulgação no Instagram de um amigo, do artista e designer Lindebergue Fernandes", conta. Ao se inscrever e ser selecionado para a curadoria de Mário Queiroz, deu início a uma experiência também totalmente nova.

"Logo de 'cara' pensando nesse momento atual do Brasil e do mundo em relação à Covid-19, pensei em ligar moda, corpo e filosofia", dando vida à Devir, coleção de sua autoria, cheia de referências. "Baseado com os meus estudos e experiências no campo da filosofia e em dança contemporânea em conjunto com a moda", mistura, em uma visão única sobre o que tende a.

Para Maurício, estudante de moda, pela Universidade Federal do Ceará (UFC), algo semelhante à metáfora do rio do filósofo pré-socrático Heráclito, que diz que uma mesma pessoa não pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois tanto ela quanto o rio já não são mais os mesmos no instante após o primeiro banho.

"Assim, a ideia seria trabalhar a nova forma de pensar moda tomando como base o impasse vivido, levando em conta que nós já não seremos os mesmos de antes e nem voltaremos a ser", associa às peças, que se fossem materializadas, se daria a partir de construção e desconstrução do corpo e da roupa. "A proposta é pensar a roupa e as questões vigentes no decorrer do ano e como isso afeta o indivíduo e o comportamento mundial", aprofunda o futuro designer, que já é, mas de formação.

Coleção Devir (participante de Fortaleza)(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Coleção Devir (participante de Fortaleza)

Atuando há seis anos já na área, atualmente de visual merchandising em uma rede de fast fashion (nas horas vagas, de ilustrador digital), mostra-se a par de uma realidade não muito distante, presente, da "digitalização" da moda, aporte de um consumidor, segundo Maurício, ultra dinâmico.

"Um sujeito mais sensível à conexões humanas; a confiança nas marcas para suas compras realizadas via dispositivos móveis", que ele acredita que será fundamental mais para frente. "Esse consumidor estará mais vinculado a preocupações climáticas/ambientais e economia do compartilhamento", desenha para um pós pandemia, calcado muito no hoje.

"As minhas criações são singulares, mas ao mesmo tempo sensível ao tempo, ao momento e ao social", diz o jovem, que não se limita só a roupas. Faz crítica, provoca. "Na coleção orientada pelo Mário, meu viés de descoberta foi a morte, as mortes por Covid-19. Vidas que foram perdidas devido a pandemia que não foram zeladas durante a sua vida existente", entrega o jovem, reconhecido por seu traço de ilustração de moda, mas também por sua abordagem artística de encarar o corpo humano em toda a sua potencialidade plástica.

 

Tempo e memória na moda 

Coleção Tempo e Memória, do projeto encabeçado por Even Saldanha durante a quarentena(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Coleção Tempo e Memória, do projeto encabeçado por Even Saldanha durante a quarentena

É a coleção do segundo cearense, Even Saldanha, somada ao #fiqueemcasaecrie, por Mário Queiroz. Nela, o estilista, natural de Timbaúba dos Marinheiros, já com dez anos de mercado, sendo seis de marca com seu nome, desafia a si e o momento. Parte totalmente do zero. "Precisava de um novo ponto que fosse coerente para o momento, sem muitas viagens e racionalizando o contexto de tudo", abrevia como deu "estalo" ao processo. "O início era para gente fazer uma reflexão de tudo e começar a montar um mood do tema que seria proposto, minha análise foi entender o contexto histórico, como tudo aconteceu e pode acontecer no futuro", e entende.

Para Even, a moda é transitiva; alinha-se aos novos tempos. O palpite? "Breve teremos novos consumidores digitais e precisamos entender essas mudanças e onde tudo está voltado para números e trabalhos excessivos", que faz com que chegue a uma conclusão: "cada vez mais temos pessoas esgotadas na vida e felizes nas redes sociais". "Isso me fez pensar sobre o tempo exaustivo e um reflexo de uma sociedade que tem ficado cada vez mais sem memória, comecei a pesquisa partindo desse ponto que fala sobre o tempo e a memória", justifica.

Na visão do estilista, que bebe de Freud e Dalí, para o conceito de coleção, estamos ficando sem memória histórica, sem tempo, sem poder criativo: "Essa coleção começaria a nascer com esse sentido sobre o produto durável, uma roupa para pessoas que sempre estão em mudanças de vida e precisa moldar o seu tempo", porém sem necessidade de troca, uma roupa atemporal, sem data de validade. A técnica que ele utiliza, como uma evidência extra ao trabalho, é a de moulage - aliada ao desperdício zero -, solução de design aplicada desde 2014, em seus desenvolvimentos de moda.

Even Saldanha após desfile em evento multicultural sediado em Fortaleza(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Even Saldanha após desfile em evento multicultural sediado em Fortaleza

"Meu pensamento como criador é esse novo sistema que ainda nascerá", aposta o estilista, ciente de que tem em mãos uma oportunidade, porque, para ele, "criar sem desperdiçar é o futuro, criar uma roupa e seu resíduo possibilitar uma nova criação já é algo positivo para o planeta, você deixa de criar uma para poder ter duas peças, isso é incrível para o mercado que pode faturar ainda mais, mas precisamos de capacitar pessoas para essa nova fase de mercado. Estamos acostumado a criar o previsto, mas aquilo que seria resíduo será que não pode virar algo novo e criativo?", devolve o questionamento, observado com mais intensidade em períodos como este, de rupturas e adaptações.

"A moda não vai mudar agora, ela precisa de tempo para refletir o seu consumo, isso será um reflexo dos clientes. As pessoas estão buscando outros valores, outras necessidades. O mercado está preso ao comercial, não existe mais criação para muitas empresas, existe apenas mais um produto com base do que vendeu na estação passada", critica, sendo um próprio agente dessa mudança. "Não temos como prever o futuro, mas captamos que a roupa precisa ser mais durável e planejada com mais qualidade, afeto, transparência...", acredita.


A seguir, conheça a imaginação de quatro jovens artistas ligados à moda que traduziram em imagens suas experiências com a pandemia, projetando o presente e o futuro. 

 

 

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