A Polícia Militar salva muita gente todos os dias. Fui policial durante cinco anos e conheci muitos PMs – de soldado a coronel – que pautavam o ofício com essa incumbência. Não é fácil estar dentro de uma farda e, cotidianamente, ir às ruas para manter os outros seguros e ainda voltar vivo para casa.
Porém, a polícia ainda mata muito. Exclusivamente na periferia. Não vou me apegar a números nem a estatísticas. O assassinato de um único inocente é uma repercussão imensurável de dor e de perda material para a família vitimada e uma ferida na nossa noção de civilidade. Principalmente quando ferida é provocada por um PM.
Falo de inocentes, mas a morte de quem é considerado “bandido” também não pode ser encarada com normalidade nem incluída no universo de seres vivos “matáveis” por causa de uma política social discriminatória. Aquele que, por algum motivo, burla o padrão de convivência não é um “matável”. Tem de ser investigado, preso e julgado segundo os acordos civilizatórios.
E o que teria isso a ver com o motim da PM de 2012, que está completando dez anos? Tem uma relação próxima. Ou pelo menos teria de ser uma das facetas políticas encaradas pelo grupo que liderou o movimento e, depois, aproveitou para chegar à Câmara Municipal, à Assembleia Legislativa e à Câmara Federal.
Passados dez anos do motim, o que teriam a população e a segurança pública do Ceará ganhado com o movimento de 2012? O que os líderes, depois políticos eleitos, contribuíram de concreto para a busca da paz coletiva?
E não vale se esconder na desculpa que, por serem de partidos de oposição, não tiveram espaços. Jair Bolsonaro, eleito em 2018, é guia de todos que encabeçaram o motim e, nem assim, houve contribuição real nos últimos três anos no Ceará. A começar pela transformação de uma polícia que pare de matar pobres e negros na periferia.
O problema, talvez, tenha sido o surgimento de lideranças pouco afeitas ao coletivo e voltadas, prioritariamente, com projetos individuais de vida. Repetindo o modelo viciado de políticos tradicionais – de oligarquias rurais, empresariais e de líderes por acaso. Gente que se deslumbra com o poder político individualizante e tomados por um oportunismo corporativista cego.
"Aquele motim pariu outro, também desastroso. Com uma intransigência para o diálogo que beirou o fascismo"
É uma pena, mesmo sendo um motim armado e tendo colocado a população em risco de morte em 2012, achei que poderia sair dali algum líder com autocrítica sobre o ocorrido perigoso e se voltado para os temas coletivos. Principalmente na área da segurança pública.
Aquele motim pariu outro, também desastroso. Com uma intransigência para o diálogo que beirou o fascismo. Com omissão perigosa, inclusive, de um ministro da Justiça – na época Sergio Moro. Além do próprio presidente da República e seus puxa-sacos.
Infelizmente, o motim fez surgir “novos” políticos “velhos”. Tradicionais. Quase nada de diferente em comparação aos que se perpetuam há décadas na política em Fortaleza e no Ceará. Muda somente a sigla partidária e o discurso próximo a cada eleição.
Não há problema em serem eleitos políticos oriundos das polícias. É legítimo. O lamentável é o uso dessa liderança enraizada na velha política e em um projeto individual de poder.
Demitri Túlio — jornalista do O POVO
Análise dos levantes de policiais que ocorreram no Estado