As pessoas ouvidas para esta reportagem foram convidadas a compartilhar registros de interações com meios de informação. Junto das imagens, comentaram dois aspectos: a atual forma de consumo delas e um costume antigo, do qual sentem falta ou guardam na memória. As fotos estão exibidas ao longo do material, com comentários especiais.
Saudade é a memória do que já foi. É ver além do que está no campo de visão, os fantasmas. E, assim, ao mirar o chão da Praça do Ferreira, o dono de banca, Francisco Paixão, 76, vê além de pedregulhos sob as estruturas de concreto, as árvores, o relógio central e as pessoas que caminham. Ele vê o que não mais existe.
Chegou por ali em 1963, quando trabalhava na banca “O Bodinho”, homônima de um dos mais famosos jornaleiros da Capital. Chegavam a vender 600 jornais impressos por dia, 400 revistas por semana e, além de tudo, transformavam o espaço em um ponto de encontro de notícias, livros e jogos de futebol.
O relato traz uma percepção de “quebra”, se comparado ao visível. As frentes das bancas são, em sua maioria, um vazio. Os stands exibem poucos jornais, livros e, nos bancos, as pessoas conversam, mas sozinhas — por meio do celular.
Questionado dos motivos desta transformação, Paixão atribuiu ao aparelho: “Acho péssima a mudança”, disse o vendedor, enquanto exibia um telefone antigo, de “receber e fazer ligações” somente. Aos smartphones, olhou com aversão, como se estes também fossem um tipo de assombração.
A quebra nas interações de rua, perpetuadas por décadas e décadas, revela muito sobre como nos adaptamos às transformações tecnológicas para consumir cultura e informação. Os meios digitais mudaram isso e seguirão mudando.
Porém, a própria banca “O Paixão” revela que lembranças não são somente isso. Quando a reportagem chegou, um grupo de idosos conversava. Eram a "trupe”, amigos de longa data de Francisco. Falavam de política e esportes. Alguns seguravam smartphones.
Na praça, em intercalação aos sentados com o celular, outros jovens se dirigiam em grupo ao Cine São Luiz, para uma tradicional sessão de cinema. Alguns liam panfletos. Outros observavam o movimento.
A comunicação se transforma e as relações mudam em conjunto com a sociedade, a cultura, a política e a economia. Mas, nem tudo é uma total substituição e, ainda que se tornem discretos, os 'resquícios do passado' sobram para além das memórias. Rodeada de fantasmas, a vida também é de coexistências.
O consumo de informação não “evoluiu”, mas transformou-se, conforme defende Robson Braga, professor do curso de jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC). “Para tratar de evolução a gente teria que afirmar que de fato está tendo uma melhora nessas tecnologias. Este seria um outro debate”, explica.
Esse impulso por comunicação seria necessário à sobrevivência, mas que ganha aspectos diferentes em cada cultura ou meio social. “A necessidade é moldada à sociedade e ao tempo que o sujeito está inserido”, resume o professor da UFC. Não há, portanto, um marco inicial para quando passamos a consumir informação. É algo nosso.
Consumo de informação do jornalista Robson Braga
Na sociedade grega clássica, as pessoas reuniam-se em praças para dialogar e trocar experiências. Passaram ainda a criar histórias e dançar, com festas dedicadas ao deus Dionísio, que depois seriam vistas como precursoras do teatro moderno.
Os livros também derivam de um antigo costume humano de armazenar a palavra escrita. Primeiro em pedra, argila ou madeira e demais materiais pesados, posteriormente transpostos ao papiro, no caso dos egípcios. “Nesse contexto, surgem os volumes – cilindros de papiro, facilmente transportados e armazenados em cofres denominados bibliothéke ou depósito de livros”, aponta artigo da Universidade do Piauí.
Alguns marcos tecnológicos de informação ao longo da história
Um marco tecnológico no consumo de informação é a prensa de Johannes Gutenberg, criada em 1448, que permitiu uma maior celeridade na produção de escritos.
Os séculos XVIII e XIX vieram acompanhados de novos aparatos. A luz da eletricidade acendeu a lâmpada, ligou o motor elétrico, o telefone e o telégrafo. Os trens chegavam nas cidades cada vez maiores, nas quais os jornais eram distribuídos nas calçadas, com notícias, fofocas e novelas de folhetim.
Décadas depois, estávamos “massivos”. Ondas mágicas levavam as vozes do rádio para os lares ou estabelecimentos nos quais eles estavam expostos. Os timbres bem enunciados cantavam, atuavam e informavam. Logo depois, ganharam rostos e, em seguida, cores.
Uma ebulição de tecnologias quebrou os vidros e impactou consumo, modo de vestir, músicas a ouvir e modo de pensar. “Essas tecnologias, e aí não quero falar apenas da imagem e das redes, mas de modo geral, vão de algum modo orientando o olhar. Orientando o modo como vamos nos relacionar”, conta Robson Braga.
Ao mesmo tempo, quem consome não apenas absorve e a mesma necessidade surgida nos antepassados gregos - que os levou a falar em praças - permaneceu durante todo esse processo. Quem usufrui, também enuncia, conforme falaremos mais adiante.
Antes de chegarmos ao modelo atual, cabem metáforas. Diversas analogias foram elencadas, pelos especialistas ouvidos, na descrição da relação das mudanças tecnológicas acima com os consumidores que as usufruem.
O professor Robson Braga citou-a como uma "via de mão-dupla", na qual a sociedade transforma diretamente as tecnologias que, por sua vez, causam impacto nas pessoas.
“No entanto, existe algo anterior a essas tecnologias, que as geram. São os aspectos sociais, econômicos, políticos. Essas transformações da nossa sociedade geram as tecnologias que por sua vez transformam o nosso modo de se comunicar. Isso é retroalimentado”, defende o professor.
No âmbito da história, o divulgador científico André Totti foi ao encontro aos aspectos comentados pelo professor jornalista. Mestre em História Social (PPGH-UFC), ele considerou que "os novos aparatos tecnológicos são instrumentos que visam aumentar a eficiência da produção como um todo”. Por consequência, grandes mudanças nas tecnologias podem interferir diretamente na circulação de informações na sociedade.
Consumo de informação do historiador André Totti
Os aspectos que impactam na mudança do consumo de informação ao longo da história podem ser mais gerais, como a conjuntura da sociedade, a cultura e o período histórico na qual o sujeito está inserido.
As mudanças dos séculos XVIII e XIX, por exemplo, ocorreram em meio à efervescência da Revolução Industrial, com o surgimento das primeiras fábricas. Nelas, o maquinário permitia produções em larga escala e demandava ampla mão-de-obra. As pessoas se deslocaram, em massa, às cidades.
No mesmo período, houve a “revolução da prensa”, que permitiu "a produção cada vez maior de jornais e periódicos de grande circulação, com largo alcance na sociedade”. “Uma mudança tecnológica se relacionou com o consumo de informação por várias parcelas da sociedade”, segundo Totti.
Os aparatos de informação provocaram grandes transformações na história, conforme o professor. “Como teríamos tido o fim da escravidão sem a atuação do movimento abolicionista em seus jornais?”, citou Totti, considerando que o consumo de informação é fundamental “para que os sujeitos possam se mobilizar e lutar por mudança”. Este seria apenas um exemplo na história brasileira.
Linha do tempo da relação da informação com mudanças históricas brasileiras
Questões mais personificadas também impactam na utilização de tecnologias. A forma de consumo de informação varia, conforme o comunicólogo Robson Braga, de acordo com o grau de escolaridade, raça, gênero e alfabetização.
Neste ponto, a política e a economia - que rodeavam silenciosas - surgem. É dever do Estado prover que a cultura e a informação sejam de amplo acesso, conforme relembra Paula Vieira, cientista política e integrante do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC). E, assim, as questões “individuais” tornam-se direitos.
Consumo de informação da cientista Paula Vieira
A política, na verdade, entra na disputa pelos meios de consumo, já que estes impactam diretamente na construção da opinião pública - essencial no meio. “Entra nessa formação porque começa a fazer a divulgação também em concorrência com os meios de comunicação tradicionais”, diz a pesquisadora.
Nas diversas tecnologias de informação ao longo da história, houve/há a aderência por parte do meio político. Jornais precursores - inclusive do Ceará - tinham natureza política; presidentes, como Getúlio Vargas, comunicavam constantemente anúncios do Governo à população e, hoje, a internet tornou-se um dos principais palcos de guerra de discursos.
Tudo isso impactaria na percepção das pessoas e na escolha delas sobre como consumir informação. Para esta relação, Paula Vieira, citou algo semelhante a um “cabo de guerra”, mais intenso com as transformações tecnológicas.
Além disso, a economia influenciaria no nosso consumo de informação. Primeiro, em termos mais diretos, um maior poder de compra leva a um maior acesso às novas tecnologias e às amplas possibilidades de acesso.
Porém, há uma outra relação e, para esta, foi usada a metáfora da “engrenagem”, por Carolina Matos, mestre em economia pela UFC. A circulação de informação, segundo ela, seria uma “estratégia imprescindível” para esta engrenagem do meio econômico que, na verdade, trata-se da manutenção da ordem.
“Na lógica da economia de mercado, o lucro só se realiza quando os resultados da produção são vendidos. Portanto, a circulação de informação é uma estratégia imprescindível. Os valores que reproduzem tal engrenagem estão presentes na cultura social, no que lemos, no que assistimos, no que ouvimos”, disse.
Algumas teorias da comunicação estudam fenômenos como o citado. A indústria cultural, por exemplo, se refere a uma suposta produção e distribuição dos meios culturais/comunicacionais para “lucro e homogeneização”.
Consumo de informação da economista Carolina Matos
Caroline Matos defende que os avanços tecnológicos, neste sentido, “ao mesmo tempo em que ampliam a produção e o acesso à informação, conseguem ditar menor ou maior relevância ao conteúdo, permitindo que novos artifícios da publicidade e da propaganda induzam o caminho de quem consome a informação". "Isso prejudica o debate público, a busca pelos fatos, o discernimento coletivo”, acrescentou.
Mas, de novo, quem consome não o faz quieto e a economista defende que “a influência não é absoluta”. “O senso crítico que pode ser despertado a qualquer momento, em qualquer esfera da sociedade, relativiza a informação configurada pela ordem econômica e incentiva a construir contrapontos”, acrescentou.
O mesmo foi apontado pelos demais especialistas ouvidos na metáfora final - da “faca de dois-gumes”, presente ao longo da história. Enquanto o governo usava jornais para passar mensagens, outros comunitários circulavam. Enquanto uns preferiam o sertanejo rural, outros entregavam-se aos “revoltosos urbanos”. São os contrastes e variedades na produção e no consumo.
Para toda ação há uma reação e, hoje, cada vez mais estas diversas formas de consumo se acumulam e os emissores confundem-se com os receptores. Um ponto central, no entanto, segue: a desigualdade no acesso e o poder de cada um nesta briga informacional.
A conjuntura atual de consumo de informação teria ganhado força aos poucos: do surgimento dos primeiros computadores, no meio do século passado, que encolheram. Passaram a caber em mesas ou bolsos e tornaram-se, por si só, ambientes portáteis de trabalho e lazer.
A internet, expandida na década de 1990 no Brasil passou a permitir interações entre usuários e tornou-se mais veloz. Passou-se a questionar, no âmbito da comunicação, o que seria o tal “ciberespaço” que, cada vez mais, integrava-se à vida. As fronteiras entre o online e o offline diminuíram.
Marcos tecnológicos do consumo de informação atual
Os meios de comunicação e informação “massificados” tiveram de dividir espaço com a segmentação. Houve um aumento na “pluralidade” de atores/consumidores e, assim, demandas surgiram e tornaram-se mais específicas.
“Isso é muito próprio das redes sociais, você vai ter ali comunidades específicas, comunidades identitárias que vão apresentar uma demanda por conteúdo especializado e linguagem especializada a partir do seu desejos e necessidades”, disse jornalista Robson.
Assim, o processo político de formação de opinião também se fragmenta. “Mais grupos conseguem mobilizar interesses em torno de uma determinada notícia, de um determinado filme”, resumiu Paula Vieira, cientista política.
Neste meio, a desinformação também fragmentou-se. Paula citou vertentes de “fake news” ou da chamada “informação paralela” - mentiras - que visam a um contraponto ao conhecimento científico. Um exemplo seriam as ideias difundidas por Olavo de Carvalho, astrólogo bolsonarista: de antivacina e terraplanismo, por exemplo.
O contato com este tipo de material impacta não apenas grupos específicos, mas o meio político como um todo. Mesmo a política institucional torna-se uma postura, uma visão de mundo. “A pessoa que se posiciona contra se posicionar, já está se posicionando”, disse Paula.
E acrescentou: “Essa nova forma de consumo de informação faz com que o meio político modifique a linguagem e a forma de comunicar. Para que chegue de acordo com essas plataformas de informações. E, dentro delas, temos tanto as fake news quanto as não fake news”.
A ampliação nas formas de consumo levou a mudanças sobre quem é produtor/consumidor de conteúdo. “Se eu tiver um canal do Youtube eu tenho um nível, um potencial, de fazer a minha mensagem circular e ser consumida”, explicou Robson Braga, que - no entanto - salientou a diferença no potencial de alcance.
Grandes conglomerados de mídia migraram para a internet, ainda que sigam com os modelos “massivos”. Há conteúdos patrocinados e ferramentas treinadas para entregar ao usuário um conteúdo de potencial interesse. Estudos de comunicação ainda indicam uma suposta tendência de maior entrega quanto os conteúdos tratam de determinados temas - geralmente políticos ou polêmicas.
De fato, a desigualdade no consumo segue presente. Pelo menos metade dos municípios brasileiros não têm veículos de jornalismo, conforme indica o projeto “Atlas da Notícia”, referente a 2022.
Quanto às bibliotecas, mapeamento do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) indica 7.173 bibliotecas públicas em funcionamento no Brasil. No entanto, há uma concentração desigual por região. Enquanto o Amapá tem 20 bibliotecas, em São Paulo são 1.081.
Bibliotecas por região no Brasil
O analfabetismo funcional segue constante no Brasil, com os mesmos percentuais de 2018. Três em cada dez brasileiros com idade entre 15 e 64 anos não sabem ler e escrever ou formular pequenas frases e identificar números de telefones ou preços.
Outro aspecto importante, o letramento digital, tem índice semelhante. Somente 29,9% das pessoas no Brasil possuem habilidades digitais básicas. Dados são referentes a 2023, da Superintendência de Relações com os Consumidores (SRC) da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Assim, ainda que a variedade de consumo tenha aumentado, a incidência de desinformação pode atingir a todos os segmentos da sociedade digitalizada. Ou seja, o que você consome pode ter milhões de acessos e, mesmo assim, ser desconhecido por uma boa parcela da sociedade.
As mentiras, no entanto, podem atingir a todos e são potencializadas com os elementos acima: pouco letramento digital, baixa escolaridade e falta de acesso a equipamentos de cultura e conhecimento.
Estamos todos inseridos no meio e, assim como Francisco Paixão, dono de banca do início da reportagem, carregamos memórias de antigos costumes que foram embora.
André Totti, historiador, lembra de interagir com amigos e assistir televisão na infância. Hoje, a internet é o foco não apenas de consumo, mas de produção de conhecimento. Por meio das redes sociais, ele trabalha com a divulgação de conteúdo científico de história.
O jornalista Robson Braga debruça-se todos os dias sobre os algoritmos das redes, postagens, matérias e artigos extensos nas longas aulas de comunicação na UFC. Uma velocidade imensa, contrastante com a espera da internet dos anos 1990 - mais barata durante à madrugada - e com a publicações de textos que fazia para o caderno infanto-juvenil de jornais.
Para todos os ouvidos, uma lembrança ou rupturas. Na visita da reportagem à Praça do Ferreira, o desejo por consumo cultural de qualidade exibia-se nas portas abertas do Cine São Luiz, com programação mensal. Alguns jovens liam, outros conversavam com amigos.
Francisco Paixão, citado no início do material, disse se informar por jornais impressos todos dias - dentre eles, O POVO, que recebe para vender na banca. Gosta do cheiro da tinta e de ver as palavras em uma folha. Depois desse contato, só acessa diretamente às notícias à noite, no jornal televisivo.
Mirella Justino, 18, contou consumir filmes e séries constantemente, mas via celular. Próximo dali, em um banco, Maria de Fátima Lemos, 59, foi ao contrário da nostalgia e se disse satisfeita por ter largado as notícias "ruins" da televisão para os vídeos das redes.
Do que restou ou do que foi embora, das saudades ou rancores, a informação cada dia mais torna-se elemento fundamental na existência humana. Circula a vida, define caminhos individuais e coletivos e, ainda que muitas vezes "suja" e perigosa, é onipresente e capaz de mudar tudo.
Para aproveitar ainda mais o conteúdo exclusivo do O POVO+, a cientista política e professora Paula Vieira - participante desta reportagem – selecionou três reportagens especiais para você conferir.
Abaixo, a jornalista Sara Oliveira também selecionou três conteúdos. Ela é editora da editoria de Cidades do O POVO e colunista do O POVO+.
A estagiária de Política do O POVO e estudante de jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), Rogeslane Nunes, elencou os materiais favoritos dela do O POVO+.
"Olá! Aqui é Ludmyla Barros, repórter do O POVO+. O que achou da matéria? Te convido a comentar abaixo!"