Da janela de um avião veio a experiência que mudou a vida da geógrafa cearense Vanda Claudino Sales, 61 anos. Ainda eram tempos de colégio quando a cearense buscou descobrir qual era a ciência capaz de estudar toda a imensidão observada por ela durante o voo.
A vista aérea de rios, vales e até mesmo da própria distribuição geográfica das cidades acenderam um chamado no coração de Vanda. Era o começo de uma relação intrínseca com a ciência, que nem mesmo a aposentadoria foi capaz de romper.
Tamanha paixão resultou em grande dedicação à área. No último ano, o reconhecimento veio por meio de uma publicação da Elsevier, uma das maiores editoras científicas internacionais, que apontou a cearense Vanda Claudino como a terceira pesquisadora que mais publicou artigos no Brasil, sendo a única mulher da lista. A conquista representativa não é por acaso, é fruto de noites mal dormidas e finais de semana inteiramente dedicados à pesquisa. Mas Vanda não se arrepende.
Responsável por estudos de referência sobre o litoral do Ceará, Vanda também atuou ainda na linha de frente pela garantia da preservação do Cocó. Sobre o atual cenário ambiental do Estado, a geógrafa mostra preocupação, mas não perde a esperança em dias melhores.
O POVO - Qual é a grande questão ambiental, hoje, no Ceará? Qual o grande nó que o Estado enfrenta?
Vanda Claudino - É difícil falar uma só, porque são várias, mas acho que temos dois problemas básicos: o desmatamento, que é muito acentuado no Estado do Ceará, a caatinga está indo embora, a gente percebe, inclusive pelos dados, que, bem ou mal, são publicados pelos órgãos federais, como o
É uma cascata de problemas ambientais que são definidos a partir da poluição dos recursos hídricos, porque as águas são eutrofizadas, gerando o aguapé, que é aquela vegetação aquática que ocupa as áreas poluídas e a água deixa de ter o fluxo normal, e a gente vai perdendo nutrientes e sedimentos para a zona costeira, criando uma sequência de fatores. Isso porque não há esgotamento sanitário, os dados mostram que menos de 50% das áreas urbanas no Ceará não contam com esgotamento sanitário.
OP - Então podemos dizer que todos os recursos hídricos estão poluídos?
Vanda Claudino - Estão todos poluídos. A gente vai ter alguns setores, fora das áreas urbanas, onde o nível de poluição é menor, mas, atravessando as áreas urbanas, mesmo as áreas rurais, você não tem controle do esgotamento sanitário, ele vai para fossas, as residências do meio rural usam fossas sépticas, que nem sempre são bem controladas, poluem o lençol freático, que vai, de qualquer forma, atingir pelo escoamento superficial, os rios mais próximos. Então, a gente tem a poluição um pouco menor nas áreas rurais, mas, entrando nas áreas urbanas, a poluição é 100% de todos os recursos hídricos superficiais e subterrâneos, o que é um problema.
OP - Talvez, nas nascentes, ainda tem alguma coisa que sobre sem poluição?
Vanda Claudino - Sim, nas nascentes ainda tem um certo controle. Até porque as nascentes, no geral, não são tão ocupadas, porque são áreas mais íngremes, com relevo mais acidentado, com vegetação mais fechada, fora do acesso urbano. Então, as nascentes são um pouco mais preservadas, mas o desmatamento está chegando lá também. Em várias nascentes de pequenos cursos fluviais, no Estado todo, a gente vê o desmatamento e até o turismo nas nascentes e nos olhos d'água. O turismo que não tem uma orientação, que não é controlado, deixa dejetos que ficam a partir das atividades de lazer, e a gente tem os recursos hídricos sob um estresse muito grande no Ceará.
OP - Você acha que, no geral, somos "preconceituosos ambientais"?
Vanda Claudino - Eu nunca tinha pensado nesses termos de preconceito. O que posso dizer, com certeza, é que falta educação ambiental. A gente sofre de uma carência monstruosa de elementos de educação ambiental. As escolas não ensinam. A sociedade civil não tem instrumentos para produzir e reproduzir as regras de educação ambiental. Então, ninguém aprende a cuidar do meio ambiente e ninguém nasce educado. Você tem que produzir, permitir e ofertar essa educação.
A educação ambiental não é levada a sério nesse país e nem no Ceará. Talvez isso seja gerado por uma certa falta de sensibilidade para a questão ambiental. Existem leis que obrigam a educação ambiental nas escolas, mas isso não é obedecido. Então, falta atenção, talvez seja por conta de um certo preconceito. Eu vou refletir mais nessa perspectiva. Talvez eu venha a concordar com você nesses termos em um futuro breve.
OP - Você falou das escolas, mas e a universidade consegue exercer esse papel?
Vanda - Eu falo das escolas, porque a educação tem que vir do berço. Tem que vir das etapas iniciais, se você aprende esses limites de educação ambiental desde a formação básica fundamental, é mais fácil essa reprodução da situação no futuro. Nenhum currículo das universidades, fora daqueles cursos específicos como geografia, ciências ambientais, geologia, biologia, tem algo dedicado à análise da questão ambiental. É uma falta de atenção muito grande.
OP - Abordando esse lado educacional, quais as principais dificuldades para se fazer ciência no Brasil e, mais precisamente, no Nordeste?
Vanda Claudino - Fazer ciência no Brasil é uma luta porque falta verba. Em nenhum país do mundo se faz ciência se não tiver recurso público. Quem produz ciência no mundo são os recursos públicos, são as universidades públicas, aquelas que recebem verbas de impostos, porque pesquisa é caro. Para fazer pesquisa, precisa de subsídio, não dá para fazer pesquisa com um salário, por exemplo. Não dá para fazer pesquisa sem um financiamento que venha a cobrir compra de equipamentos, pagamento de técnicos, datação de laboratório, dados de satélites. Então, é caro fazer pesquisa, mas é necessário, porque nenhum país do mundo pode avançar sob nenhuma perspectiva, se não tiver uma produção científica razoável e saudável.
No Brasil, isso é difícil. Porque, historicamente, temos dificuldade de alocamento de verbas para educação e pesquisa. Parece que nossos gestores imaginam que isso é "perder dinheiro", não têm a visibilidade, não têm a visão de alcance de perceber que isso é um investimento no futuro. Isso vem sendo muito mais intenso nos últimos seis, sete anos. Estamos percebendo um corte de 95% dos recursos do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Desenvolvimento Tecnológico do Brasil (CNPQ), você imagina, 95% dos recursos sendo cortados, sobram 5% para financiar as pesquisas em todas as áreas da ciência no Brasil. É um colapso da ciência, nós vamos pagar um preço muito alto no futuro breve pela falta de investimento.
Sempre foi complicado, eu não quero fazer campanha política, mas eu não posso deixar de atestar que os anos de governo do PT foram os anos que a ciência do Brasil mais cresceu nas últimas décadas, a gente teve financiamento, teve o programa Brasil Sem Fronteiras, teve bolsa de pesquisas científicas na iniciação científica, teve abertura de universidades, teve oferta de vagas para professores. Foi um período de ouro da universidade brasileira nos últimos 50 anos. Isso diminuiu drasticamente com o governo Temer, e agora é um caos absoluto.
OP - Em quatro anos nesse ritmo, você acha que esse prejuízo para a área ambiental levará quanto tempo para ser reparado?
Vanda Claudino - Vai levar décadas para ser revertido e tem algumas coisas que podem ser irreversíveis, como a degradação ambiental acentuada por desmatamento, se você não reverter esse quadro em um certo intervalo de tempo, as terras ficam áridas e não têm mais processos reversíveis, pelo menos dentro da tecnologia atual. Pode ser que se descubram certas coisas no futuro que revertam alguns processos degradatórios acentuados hoje, mas algumas coisas podem ser irreversíveis, é uma catástrofe sem limites.
No Nordeste é pior ainda, porque existe uma política de financiamento das grandes pesquisas em universidades no Brasil, os centros de excelência, que não estão no Nordeste, estão no eixo Centro-Sul, tem uma ou outra universidade de excelência em alguns departamento em particular no Nordeste, mas as principais universidades, como a USP, a UFRJ, a UFMG e, depois, a UFRS, são universidades de excelência em diversas áreas e tendem a dominar o aporte de recursos. Para as outras, vão as migalhas, e o Nordeste está nessa situação. A gente recebe as migalhas do que sobra do processo de financiamento de pesquisa no Brasil.
OP - Como está a situação da UFC hoje?
Vanda Claudino - A UFC está bem colocada a nível nacional, ela deve ser hoje a oitava ou a nona universidade nacional em termos de produção científica, tem alguns departamentos que se projetam mais, mas está sofrendo muito as consequências desse corte, a gente não sabe como isso pode avançar no futuro. Mas dentro do contexto das universidades brasileiras, a UFC consegue se sobressair.
OP - Há uma dificuldade para a pesquisadora mulher ou isso é relativizado?
VC - A universidade brasileira tem uma coisa muito boa, ela paga o mesmo salário para professores homens e professoras mulheres, o que não é muito frequente no mercado de trabalho lá fora, onde as mulheres sempre ganham menos do que os homens. Não tem questão de gênero na definição salarial, isso dá um grande fôlego para as mulheres, que conseguem avançar sem muitas restrições. Mas, é claro, que existe o machismo, ele está presente na nossa sociedade e ocorre também dentro das universidades. Eu, particularmente, na minha experiência pessoal, na minha vida acadêmica toda, nunca prestei atenção no machismo. Fui pesquisando, fazendo minhas coisas, fui adiante e fui andando e nunca parei pra ver o que o machismo do meu lado estava dizendo.
Eu não sofri, particularmente, essa questão de machismo na minha produção científica. Mas tem registro de colegas que sofreram assédio sexual, que sofreram preconceito com pesquisas que estão fazendo, que têm dificuldades nos laboratórios com alunas mulheres e alunos homens, então, existe um pouco, mas não é o centro mais machista da sociedade brasileira. As universidades públicas, pelo menos, eu não tenho muita informação do que acontece a nível das universidades privadas, porque o universo é muito diferente de funcionamento. Mas nas universidades federais, acho que a gente tem, de certa forma, uma liberdade nessa questão de gênero, que não define muito o comportamento feminino e o comportamento masculino nas pesquisas. Embora, eu não possa negar, o machismo existe também, mas não é o centro principal.
OP - Recentemente, o seu nome apareceu na lista dos três principais autores que mais publicam artigos no país, sendo a única mulher. O que isso representa e qual foi o preço?
Vanda Claudino - Isso representa um presente para a nossa vida acadêmica. Eu estou na universidade há 40 anos, e receber essa indicação, da Elsevier, que é uma das mais prestigiadas editoras internacionais, que fez esse ranking, das publicações particularmente associadas às áreas de meio ambiente e desenvolvimento sustentável. Então, me senti extremamente honrada, extremamente feliz e é como se fosse o recebimento de um prêmio, depois de tantos anos de batalha, de dureza, de brigas, de pesquisas que avançam aqui e, outras vezes, não. Então, é um prêmio para esses anos todos de vida acadêmica que eu desenvolvi, e eu não cheguei sozinha.
Eu dedico esse ranking aos meus alunos, que me auxiliaram bastante nesse processo de produção cientifica, aos meus colegas, não todos, alguns deles, que foram muito importantes nesse nosso processo de produção científica. É um conjunto, você não chega numa posição dessa, que eu considero muito especial e honrosa, sozinha. Você chega em conjunto, é um coletivo, é o meu grupo de pesquisa da Universidade Federal do Ceará, da qual eu já me aposentei. Eu agora estou como professora visitante da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), aos colegas dos meus grupos de pesquisa na UFC e agora da UVA, que a gente consegue dedicar e agradecer pela contribuição ao longo de todos esses anos, para chegarmos nesse nível que nós chegamos com esse ranking da Elsevier.
OP - Por que você foi embora daqui?
Vanda Claudino - Pelo seguinte, eu casei com um americano, e eu passei uma década fazendo pontes, e trabalhava em uma universidade americana, a Universidade da Flórida, em Tampa. Eu ia nos meus períodos de férias, nos feriados e no recesso escolar, e isso estava prejudicando tanto a produção científica lá, quanto a minha vida pessoal. Meu marido pediu para que eu abandonasse a terra e fosse morar em terras americanas. Eu comecei muito cedo a ensinar, eu entrei na universidade com 16 anos, me formei com 20, comecei a ensinar na UFC com 21, e pude me aposentar com a idade de 52. Então, pude me aposentar e fui morar nos Estados Unidos.
Achei que ia me aposentar, começar uma nova vida só de dedicação a outras coisas, atividades lúdicas, recreação e exercícios físicos, "cuidar da vida", mas fiquei três anos nessa situação e foi o pior período da minha vida, o de aposentadoria. Senti falta da universidade, senti falta do trabalho, senti falta da produção. Eu pedi demissão tanto aqui, quanto lá, porque realmente achei que ia começar uma nova fase da vida, mas não me adaptei com a vida de aposentada. A UVA me chamou para ser professora visitante lá, eu aceitei, e agora estou "de vento em popa" de novo na produção científica. Se Deus quiser, não vou parar tão cedo.
OP - Você nunca parou de pesquisar durante esse período?
Vanda Claudino - Eu passei esses três a quatro anos aposentada, parada. Foi de 2012 a 2016, eu ainda produzi alguns artigos e pesquisas que já estavam concluídas, que eu só tinha que redigir e mandar para as revistas publicarem, mas não produzi nada novo nesses quatro anos em que fiquei parada. Publiquei uns quatro ou cinco artigos, e, realmente, tinha pensado que era o fim da minha vida acadêmica, mas voltei atrás completamente.
OP - Qual é a sua maior pesquisa no Ceará? Aliás, você nunca perdeu esse vínculo?
Vanda Claudino - De jeito nenhum, a minha pesquisa está sendo centrada no Ceará ainda, eu fiz pesquisa na Flórida nos dez anos em que eu ensinei na universidade de lá. Eu pesquisei sobre o impacto dos furacões na zona costeira, a ocupação das dunas. As pesquisas eram, basicamente, sobre zona costeira. Mas, quando eu me aposentei da UFC, eu saí da universidade da Flórida também, porque eu pensei que estivesse abrindo um novo capítulo na minha vida, quis me aposentar e iniciar uma vida nova, não funcionou, foi a pior experiência da minha vida, ficar fora da universidade.
OP - Você esperava fazer o que depois da aposentadoria?
Vanda Claudino - Viver, aproveitar a vida. Meu marido estava se aposentando e ele é ciclista. Ano passado, nós fizemos o circuito de bicicleta da costa leste dos EUA à costa oeste, foram 6.800 km que ele fez de bicicleta, e eu fui dirigindo o carro de apoio. Eu pensei que a gente fosse ficar fazendo esses circuitos o tempo todo. Passeando, fazendo exercícios, fazendo outras atividades lúdicas, mas foi um mero engano. Foi uma ilusão minha imaginar que eu poderia preencher minha vida com essas atividades, dada toda a minha empolgação com a produção científica anterior. Quando a UVA me chamou, não hesitei.
Hoje, eu tenho a melhor vida que eu poderia ter, eu passo três meses nos EUA e três meses aqui. Quando eu estou lá, eu trabalho em home office, já vinha nesse modelo mesmo antes da pandemia. Tanto que, quando a pandemia entrou, não trouxe nenhum tipo de impacto no meu trabalho. Assim, quando estou lá, eu posso fazer um pouco dessas atividades. Nos três meses que estou lá, aproveito para fazer um circuito de bicicleta, uma forma de aproveitar essa atividade a qual meu marido é dedicadíssimo. Então, estou em um momento da vida que posso continuar a minha pesquisa científica com o mesmo ritmo de antes, mas, ao mesmo tempo, incorporei atividades lúdicas.
Porque, antes, eu não tinha isso. Era dedicação exclusiva à vida acadêmica. Eu casei com 44 anos, não tinha tempo nem de namorar. Era só trabalhando, direto. As férias e os finais de semana eram o melhor período para pesquisa, porque não tinha interrupção. Não tinha aluno, reunião, colega. Nos finais de semana, eu chegava em casa na sexta-feira da universidade, e ia até segunda-feira direto estudando. Pedia comida de fora, não tinha nem trabalho de cozinhar. Ficava pesquisando direto, sem interrupções. Era uma dedicação completa. Eu achei que eu pudesse aproveitar um pouco mais dessa parte de festividades da vida, que eu não tive muito durante a minha vida acadêmica, mas só isso não me satisfaz, não é suficiente. Agora, estou em um período excelente porque posso fazer as duas coisas. A dedicação maior é à produção científica, mas eu tenho algum tempo para cuidar da vida.
OP - Quando você notou a sua aptidão para a pesquisa e para a ciência?
Vanda Claudino - Eu resolvi fazer o curso de geografia quando tinha 15 anos, foi quando voei de avião pela primeira vez, que eu vi lá de cima as paisagens. Os rios, os vales, uma cidade aqui, outra ali. Eu entrei na semana seguinte a esse voo, no colégio onde eu estudava, em Brasília, e fui falar com meus professores para saber qual ciência estudava isso que eu vi da janela do avião, e descobri que era geografia.
A geografia tem a parte de humana e física, eu fui logo para a parte física, e tive uma excelente professora, uma professora de renome nacional, Margarida Penteado, ela foi minha orientadora, eu fui monitora dela durante três anos e era uma pesquisadora de ponta. Foi professora nos EUA, na França e me deu esse gosto pela produção científica. Eu fiz trabalhos de campo com ela, ajudava na preparação das aulas e aprendi a vida acadêmica muito cedo. Assim que saí da universidade, o que eu queria era ser professora. Saí da universidade, tinha um concurso na UFC, eu vim de Brasília para cá, comecei trabalhando no Labomar, Laboratório de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará, onde eu fui pesquisadora, teve um concurso para o departamento de geografia, eu fiz e deu tudo certo.
OP - Mas você é cearense, como foi ida para Brasília?
Vanda Claudino - Eu fui para Brasília, porque meu pai foi eleito deputado federal (Claudino Sales), e a família inteira se mudou para lá. Eu morei 12 anos em Brasília, terminei o meu científico (Ensino Médio) e a universidade lá. Quando me formei, queria trabalhar com zona costeira, que é a minha maior produção: dinâmica costeira, sobretudo com dunas e faixa de praia, e eu queria trabalhar com o litoral. Então, vim pra cá, me integrei ao Labomar, teve concurso na UFC e fiquei aqui.
OP - Qual é a sua pesquisa que teve maior impacto aqui no Ceará?
Vanda Claudino - São as pesquisas sobre evolução de praias. A gente fez uma discussão muito grande sobre a ocupação da zona costeira com o Porto do Pecém, nós fomos contrários à instalação do Porto do Pecém, porque ele iria alterar a dinâmica costeira e houve uma discussão enorme nessa época. Eu era, inclusive, conselheira do Conselho Estadual do Meio Ambiente, representava a Associação dos Geógrafos Brasileiros, da qual fui presidente-diretora durante seis anos, e também fazia parte do Conselho Municipal do Meio-Ambiente. Então, as discussões que a gente fez sobre os usos e ocupações da faixa de praia, acho que foram as maiores contribuições que poderíamos ter dado.
Claro que essa contribuição é relativa. Porque os órgãos públicos não escutam pesquisas. Vão fazendo projetos e as pesquisas científicas, sobretudo aquelas que indicam impactos ambientais, não são levadas em conta. Os relatórios são feitos apenas para referendar os projetos que estão sendo colocados. Temos esse aterro da Praia de Iracema, que está sendo concluído agora, eu passei na Beira Mar e achei uma coisa horrorosa, uma tristeza. A gente não vê mais nem o mar, o que é uma zona costeira belíssima como a que Fortaleza tinha, hoje, é concreto sem nenhuma árvore. Até as carnaúbas, que não sei de quem foi essa ideia de colocar carnaúba na beira do mar, estão todas mortas.
< Fizemos uma discussão muito grande sobre esses processos de ocupação da zona costeira, com os aterros, com o Porto do Pecém e essa talvez seja o que tenha causado maior reflexão sobre aqueles que intervém no espaço público.
OP - E sobre o Parque do Cocó?
Vanda Claudino - Tem, é claro, o Cocó, que eu passo e me emociono, porque a gente brigou e eu estive à frente da luta de preservação do Parque durante mais de 20 anos, foram 40 anos de briga para que o parque fosse criado, e eu estava na frente dessa briga, por mais de 25 anos seguidos. Não tenho dúvidas em dizer que a criação do Parque do Cocó é resultado da mobilização do movimento ambiental em Fortaleza. Exclusivamente, pela briga desse movimento ambiental é que esse Parque do Cocó, que é um prêmio para Cidade e para o Estado, foi criado. Eu me emociono quando eu passo lá, porque eu vejo as minhas horas de dedicação nessa briga serem revertidas em alguma coisa positiva. Então, acho que o maior legado da minha contribuição ambiental para a Cidade e o Estado, é realmente, a criação do Parque do Cocó.
OP - Você acha que o parque foi regulamentado com qual prejuízo?
Vanda Claudino - As dunas. O campo de dunas não foi completamente inserido na poligonal do Parque do Cocó. Se as dunas do Cocó tivessem entrado na poligonal do parque, estariam muito mais preservadas, as dunas do entorno do estuário do Cocó passando pelo Sabiaguaba e outro campo de dunas que tem na Praia do Futuro. Essas dunas não entraram no Parque do Cocó. Se estiver sem as dunas, o manguezal morre, porque as dunas infiltram a água, que alimentam o lençol freático, que alimentam o rio e o manguezal precisa de água doce. Sem duna, acaba o manguezal, sem manguezal acaba fauna e flora, acaba o parque. O maior prejuízo da criação desse parque foi a ausência de todo o campo de dunas dentro da poligonal.
OP - Tem-se a impressão de que o Parque é um ecossistema muito fragilizado e a qualquer momento ele pode ser destruído. Podemos falar que temos um "resto" de mangue e resto de floresta?
Vanda - Com certeza, era uma área muito mais ampla de manguezal e de ecossistema que existia e está reduzida, hoje, à área protegida, é um resquício do que existia anteriormente.
OP - O Parque do Cocó vai sempre viver em risco?
Vanda Claudino - Sim, sobretudo enquanto houver interferências. Eu achei que o incêndio do Cocó tinha algo a ver com a especulação imobiliária. É claro que o espaço afetado está dentro de uma área preservada, mas os vereadores dessa cidade mudam a legislação a qualquer momento. Embora seja um parque estadual, existe o plano diretor, que é um elemento de interação com as leis estaduais. A Câmara dos Vereadores é mais suscetível a alterações nas áreas de ocupação em Fortaleza. Mas uma mudança na composição da Assembleia Legislativa ou de Governo do Estado pode alterar essa legislação.
Então, eu achei que era a especulação imobiliária investindo no futuro, do jeito que eles estão fazendo na Amazônia agora, onde estão lançando agrotóxicos para aumentar a taxa de desmatamento e avançar no processo de ocupação. Existe sempre o risco da especulação imobiliária, mas é claro que a delimitação do parque é uma garantia, se não permanente, é a melhor que poderíamos ter para a existência do rio e do manguezal e do ecossistema.
OP - E sobre o novo polo gastronômico da Sabiaguaba?
Vanda Claudino - Eu analisei o projeto, recentemente, para encaminhar uma análise para a Comissão do Meio Ambiente da OAB-CE. O parecer técnico de liberação da obra não tem um dado falando sobre os efluentes resultantes desse polo gastronômico da Sabiaguaba. Não tem solução sanitária nesse projeto para os efluentes que serão produzidos pelo polo gastronômico.
OP - Mas essa não era justificativa, de que haveria a retirada das velhas barracas e a melhora do acompanhamento sanitário?
Vanda Claudino - Mas eu vi o parecer, que é extremamente superficial, e eles não dão a solução desse problema. Não tem solução indicada no parecer para o resultados dos efluentes.
OP - Então, iria voltar a cair no rio?
Vanda Claudino - É o risco. Eu estou questionando a OAB para solicitarem ao Ministério Público uma investigação sobre essa situação. Pode ser que eles tenham algum projeto mais detalhado da obra, que não está aparecendo no parecer técnico que foi disponibilizado pela Sema. Estamos analisando essa situação, mas é um risco de degradação ambiental maior. O polo gastronômico é só um exemplo, toda a poluição que chega ao vale do Rio Cocó, vindo desde a entrada de Fortaleza até a foz, já mostra todo o problema da poluição do recurso hídrico, que, de fato, coloca o manguezal em risco de sobrevivência.
OP - Há como ter esperança de que seja possível trocar o caminho que estamos traçando, ambientalmente falando?
Vanda Claudino - Eu sou uma pessoa cheia de esperanças, permanentemente. Se eu não tivesse esperança já tinha parado, porque o quadro é realmente dramático. Mas eu acredito que a gente possa controlar o processo de ocupação da zona costeira. Dentro da situação atual, eu não vejo uma situação que possa indicar uma ocupação sustentável, com equidade social, com preservação ambiental e com justiça social, que é o que diz o desenvolvimento sustentável. É um tripé: um é o desenvolvimento econômico, outro é a preservação ambiental e o outro é a justiça social.
Estamos vendo a justiça social na ocupação da zona costeira como um problema gravíssimo, porque as comunidades estão sendo expulsas. Os pescadores, as marinheiras, as catadoras, os assentamentos estão todos indo embora para ocupação de resorts, de hotéis, com equipamentos diversos voltados sobretudo para o turismo e lazer de alto padrão. As comunidades estão sendo expulsas.
Se a gente não tivesse na luta, denunciando, fazendo pareceres, todo ano eu faço quatro ou cinco pareceres técnicos para a OAB-CE, para o Ministério Público, para os órgãos de fiscalização, mostrando os prejuízos que são causados pelos usos de ocupações e a gente tem conseguido reverter em alguns casos, se não totalmente, pelo menos parcialmente, impedindo que a destruição seja completa. Multando empresas, obrigando a ter plano de ajustes técnico e ambiental. Então, eu acho que a mobilização dá esperança de que possamos ter uma zona costeira não completamente destruída num futuro próximo. Não acho que a gente consiga reverter tanto ao que se poderia querer, de 100% de preservação, mas, pelo menos, uma preservação relativa no contexto de uso ocupacional que vem sendo feito. A mobilização ambiental que é feita pelo movimento popular e as universidades, com aqueles professores que participam, porque nem todos participam, é fundamental para a qualidade do meio ambiente no Ceará, tanto na zona costeira como no interior.
OP - Você abdicou de muitos momentos na sua trajetória, há arrependimentos?
Vanda Claudino - De jeito nenhum. Só coisa boa, arrependimento nenhum, só prazeres e ganhos. Esse ranking da Elsevier é um prêmio muito grande, que compensa as noites mal dormidas e os finais de semana de trabalho. Não tenho arrependimento, sou uma pessoa completamente realizada na minha profissão. Completamente feliz com as minhas escolhas profissionais, feliz de consciência limpa com as minhas escolhas políticas, só posso ter muita gratidão pelo meu momento de vida tanto atual, quanto passado, que resultou no agora.
OP - Você chegou a ser ameaçada. Como foi isso?
Vanda Claudino - Foi na época da criação da área das dunas do Cocó, eu era perseguida, onde eu andava tinha um carro atrás de mim, as pessoas me abordavam. Eu era vigiada. Recebia ligações que diziam que eu perderia minha vida se eu continuasse brigando pela preservação dessas dunas, falavam que essas dunas tinham donos. Telefonemas, mensagens de email, diziam que eu não iria reverter esse quadro, falavam para eu sair dessa briga, para preservar a minha família. Recebi ameaças durante meses. Não fiz denúncia, hoje, eu teria feito, isso já tem cerca de 12 anos, se fosse hoje, eu teria feito um boletim de ocorrência. Na época eu não fiz, mas também não dei atenção, continuei. Deixei as ameaças de lado, coloquei as informações de conhecimento público onde podia, coloquei para os meus colegas jornalistas em algumas entrevistas, comuniquei ao movimento ambiental, avisei minha família, mas não fiz boletim de ocorrência, eu não tinha essa noção de que poderia ter feito isso, na época. E isso não me atrapalhou, eu continuei na mesma pegada.
OP - Você falou sobre a necessidade de preservar o que ainda resta da zona costeira. Entretanto, a produção eólica tem causado problemas para a comunidade...
Vanda Claudino - Infelizmente, é isso mesmo. Não só as eólicas, mas também a energia solar, que está desmatando extensas áreas do semiárido para a instalação de placas fotovoltaicas, atrapalhando comunidades e degradando o meio ambiente. As eólicas e térmicas chegaram com a mesma lógica da produção convencional, então não altera nada. Se a lógica da produção não é racional, se é voltada para o mercado de consumo bruto e tem as mesmas práticas de passar por cima da população e fazer a produção econômica ser mais importante que a preservação ambiental, tanto faz ser térmica, eólica, ou energia do petróleo, o resultado é o mesmo, é degradação socioambiental e nós estamos presenciando isso de forma muito intensa no litoral do Ceará, e agora com a energia solar, o mesmo ocorre no semiárido.
É um problema seríssimo que estamos tentando reverter. Na zona costeira, agora, as eólicas offshore, instaladas dentro do mar, próximo da zona costeira, o que pode atrapalhar a pesca artesanal, o que pode remover comunidades. Então, essas produções alternativas de energia estão chegando com a mesma lógica da produção capitalista do petróleo e não alteram em nada a degradação socioambiental, e nós temos que nos organizar melhor para tentar evitar mais instalações no modelo offshore, o que está sendo difícil. As outras eólicas, na zona costeira, já estão instaladas. E agora, também, é necessário controle, que já estamos discutindo no movimento ambiental, da instalação das placas fotovoltaicas para produção de energia solar no semiárido.
Na energia solar, eu fico me perguntando por que que esses investidores não colocam os painéis solares nas residências, por que eles precisam desmatar uma área enorme para instalar as fotovoltaicas, e depois pegar essa energia que é produzida e passar para um sistema comum de distribuição de energia, para depois chegar nas residências? É uma coisa só para beneficiar grandes empresas. O pequeno, o retalho, talvez não traga o mesmo benefício econômico dos grandes investimentos.
OP - Qual é a área costeira mais degradada do Ceará?
Vanda Claudino - É o entorno da Região Metropolitana de Fortaleza, sobretudo o litoral oeste, Fortaleza e Caucaia. Com a degradação das praias de Caucaia já chegando a São Gonçalo do Amarante, com a Taíba já passando por processo de erosão. Mas tem vários focos, a gente tem lá no litoral extremo leste, em Icapuí, uma intensa área de degradação ambiental com erosão das praias de Redonda e do entorno da região de Icapuí. Mas, com certeza, o litoral mais degradado é o litoral da Região Metropolitana de Fortaleza e entorno.
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