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"Terceira via não foi capaz de marcar distinção em relação a Bolsonaro"
Reportagem Seriada

"Terceira via não foi capaz de marcar distinção em relação a Bolsonaro"

Autor de Democracia na periferia capitalista, pesquisador da UnB Luis Felipe Miguel discute cenário de déficit democrático a partir do Brasil e avalia quadro eleitoral no país nas disputas de 2022
Episódio 56

"Terceira via não foi capaz de marcar distinção em relação a Bolsonaro"

Autor de Democracia na periferia capitalista, pesquisador da UnB Luis Felipe Miguel discute cenário de déficit democrático a partir do Brasil e avalia quadro eleitoral no país nas disputas de 2022
Episódio 56
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Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Ciências Sociais, Luis Felipe Miguel passa em revista a via-crúcis da terceira via no Brasil a poucos meses da eleição presidencial.

Para o pesquisador, esse campo político, no qual se encontram João Doria (PSDB), Simone Tebet (MDB) e Sergio Moro (União Brasil), tem como principal desafio diferenciar-se do presidente Jair Bolsonaro (PL).

“Acho que a terceira via não foi capaz de marcar com clareza a sua distinção em relação ao Bolsonaro. Existe uma ambiguidade, e essa ambiguidade compromete a legitimidade do discurso dessa terceira via”, analisa o docente em conversa com O POVO por videochamada.

Autor do recém-lançado Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (editora Autêntica), obra na qual se dedica a examinar os processos de erosão democrática no país e no mundo, Luis Felipe Miguel coloca em perspectiva a crise do regime liberal desde o bloco do cone sul, estendendo-se a países como a França.

Nesse percurso, o professor identifica as etapas da gênese de uma extrema-direita que depois resultaria na vitória de Bolsonaro no processo eleitoral de 2018. Também se detém no desmonte do pacto social que se origina com a promulgação da Constituição de 1988.

De passagem, o cientista social lança um olhar sobre as disputas de 2022 e reflete sobre as razões pelas quais Bolsonaro recuperou terreno político e popularidade mesmo depois de um período de desgaste no curso da pandemia de Covid-19.

Assista à entrevista

 

O POVO – O que a disputa presidencial na França, que foi para o segundo turno com Macron e Marine Le Pen, representa nesse cenário de impasse e crise democrática?

Luis Felipe Miguel – A França é um laboratório interessante porque foi o primeiro país da Europa ocidental em que despontou essa nova extrema-direita. O pai da Marine Le Pen, o velho Le Pen, começou com uma visão absolutamente nazista, negacionista do holocausto, defensor do governo colaboracionista de Vichy na Segunda Guerra Mundial e com essa pauta anti-imigrante. Então já no século passado ele conseguiu chegar ao segundo turno, isso era algo completamente desviante em relação aos outros países democráticos do norte, com democracias consideradas consolidadas. E o que a gente vê é que isso não foi uma coisa de momento e que essa extrema-direita se consolidou na França. É a segunda eleição presidencial seguida em que a extrema-direita chega ao segundo turno.

Se a gente somar a Marine Le Pen com o Zemmour (Éric Zemmour, que terminou em quarto lugar) e aquele outro candidato nanico da direita, eles receberam um em cada três votos. Um terço do eleitorado francês votou no primeiro turno em candidaturas que são claramente antiliberais, antidemocráticas, xenófobas, racistas etc. Isso é muito grave e deixou de ser uma excepcionalidade francesa. Se a gente olhar pelo mundo afora, nos Estados Unidos e no Brasil, mas também em vários países da Europa, a gente vê o crescimento dessa extrema-direita. Isso é um sintoma da crise da democracia. A extrema-direita cresce porque os regimes democráticos representativos são cada vez mais incapazes de responder a necessidades básicas, cumprir as promessas que fazem de ter um governo de alguma maneira permeável às reivindicações da maioria da população. Então vem a extrema-direita com discurso mistificador, mas que surfa nessa insatisfação.

O discurso da extrema-direita é falso, ela apresenta propostas fajutas, que só agravam os problemas, mas a insatisfação que ela mobiliza é verdadeira. Porque a gente tem regimes democráticos que se mostram muito pouco suscetíveis de responder aos reclames da maioria. A gente olha ao mesmo tempo com pesar e atenção para a eleição francesa porque o que ela está nos apresentando ali, que é uma candidata de extrema-direita com uma trajetória próxima do fascismo e um candidato neoliberal com postura mais a favor das elites financeiras do que do povo, infelizmente acaba sendo o cardápio que sobra em muitos países. Isso é realmente chocante, os interesses populares são descartados nesse processo.

O POVO – Os adversários da extrema-direita (o chamado campo progressista) não têm sabido identificar e mapear quais são essas fragilidades, já que o discurso extremista se alimenta de uma contrariedade que tem um fundo real?

Luis Felipe Miguel – Quando a extrema-direita diz que o sistema político é impermeável às pessoas comuns, está dizendo uma verdade. Acho que o problema é que, a partir do final do século passado, quando há a queda do muro de Berlim e o socialismo real e os países do bloco soviético desaparecem, temos a derrota da esquerda, um projeto que já tinha ido pro buraco há muito tempo. Porque o regime soviético era profundamente autoritário, não cumpria aquilo que tinha sido seu projeto original. Mas, simbolicamente, a gente viu o fracasso do socialismo. E, ao mesmo tempo, estavam sendo desmontados os regimes de bem-estar social da social-demoracia na Europa.

Com a crise fiscal do estado de bem-estar social na Europa ocidental inteira, mesmo nos países em que esse regime estava mais consolidado, como nos países escandinavos, a gente vai vendo um desmonte. As formas de seguridade social do estado de bem-estar social vão sendo desmontadas por causa do triunfo de uma nova visão, a visão de que o mercado é que tem que regular todas as relações na sociedade. O que acontece? Quando chega no final do século XX, a esquerda parece que perdeu seus grandes projetos. Ela não consegue encontrar essa alternativa. Parece que a esquerda virou a guardiã da ordem. E quem é capaz de empalmar o discurso da inconformidade acaba sendo a extrema-direita.

O POVO – A balança se inverteu.

Luis Felipe Miguel – Isso, a balança se inverteu. Aqui mesmo no Brasil, o que a esquerda defende? A esquerda defende o estado de direito, a democracia representativa, as liberdades liberais, a Constituição. Em suma, toda uma ordem que é uma ordem de um país capitalista com pouco dinamismo na transformação social como é o Brasil. Mas parece que a alternativa é recuar. A esquerda, que historicamente diz que isto que nós temos é insuficiente, porque queria uma sociedade diferente, mais igualitária, mais autônoma, está defendendo aquilo que está aí. Parece que a esquerda é conservadora porque quer conservar essas instituições que estão periclitando. E a extrema-direita, não, é quem aparece querendo mudar tudo. Como a situação não está muito boa, quem diz que quer mudar tudo ganha as simpatias das pessoas. Esse dilema só se resolve na hora em que a esquerda for capaz de ter um novo projeto para apresentar.

Luis Felipe Miguel, professor da UnB(Foto: Regina Dalcatagnè / DIVULGAÇÃO)
Foto: Regina Dalcatagnè / DIVULGAÇÃO Luis Felipe Miguel, professor da UnB

O POVO – Como construir um horizonte de mudança?

Luis Felipe Miguel – A gente sabe que sociedade a gente não quer, mas qual sociedade a gente quer construir? Como é que ela se organiza? Muitas vezes, a esquerda acaba tentando recuperar elementos do passado, mas a realidade mudou. Não dá mais pra gente trabalhar com as mesmas bandeiras de 20, 30, 40 anos atrás, mas não é porque não são as mesmas bandeiras que a gente vai abandonar os valores de mais igualdade, autonomia para todos, menos violência, menos hierarquia na sociedade. Acho que no Brasil e no mundo estamos neste dilema: o que a gente quer construir daqui pra frente? Por um lado, isso é sintoma de um certo alargamento.

A esquerda hoje é mais consciente de muitos outros problemas, das diferentes formas de opressões na sociedade, então tem que integrar muita coisa. Tem as demandas do movimento das mulheres, do movimento negro, dos povos indígenas, as demandas ambientais que são importantíssimas e que eram coisas que no discurso tradicional da esquerda ficavam em segundo plano. Hoje, não. Elas têm que entrar no primeiro plano, mas, ao mesmo tempo em que aumentam os horizontes, por outro lado complica. Quais são as nossas prioridades neste momento? É mais difícil do que quando simplesmente a prioridade era aumentar salário ou coisa do gênero.

O POVO – Havia uma agenda mais homogênea da esquerda?

Luis Felipe Miguel – Mais homogênea e mais simples de ser definida. Agora, não. Mas isso não vai mudar. Às vezes a gente vê as pessoas nostálgicas dos partidos da metade do século passado, mas isso não vai voltar. O mundo mudou. A consciência das pessoas mudou e a gente tem que trabalhar com essa nova realidade.

O POVO – Há uma crise da democracia à brasileira ou essa crise que é vivida aqui tem uma relação direta com outras e é semelhante, por exemplo, à da França, do leste europeu e dos EUA? Como avalia esse quadro visto a partir da perspectiva brasileira?

Luis Felipe Miguel – É importante a gente procurar essa perspectiva porque muitas vezes a gente acaba consumindo as teorias produzidas lá nos Estados Unidos e na Inglaterra e a gente tenta adaptá-las à realidade brasileira para explicar essa realidade. E é claro que elas podem ajudar, mas não vão explicar toda a nossa realidade, que é diferente. Na verdade, a nossa democracia tem que ser entendida como uma democracia com um percurso histórico diferente dos países do norte. Uma democracia que teve que se adaptar a um regime social de desigualdade muito mais gritante, e isso é um problema. A democracia parte de uma ideia de igualdade, de que todos vão participar do processo de tomada de decisão porque todas as pessoas são iguais, os interesses de cada pessoa valem da mesma maneira e todos devem ser levados em conta. Então existe uma igualdade própria do processo democrático. Quando a gente tem uma sociedade muito desigual, isso entra em choque.

Um dos nossos problemas históricos no Brasil é que as nossas elites têm muito pouca tolerância à igualdade, e quando a democracia começa a forçar por mais igualdade social, elas se colocam contra a democracia. Nos países do norte, principalmente da Europa ocidental, que eu pego como modelo de como isso se colocou de maneira mais completa, a democracia permitiu uma acomodação entre as desigualdades próprias de uma economia capitalista, mas, ao mesmo tempo, a força de uma democracia garantia um padrão de vida mínimo para todo mundo e evitava certas aberrações de desigualdade como a gente conhece no Brasil. A crise deles lá está ligada com a dificuldade de manter esse pacto, de manter esse acordo que, ao mesmo tempo que permitia a manutenção do capitalismo e de suas desigualdades, garantia um patamar mínimo de vida pra todo mundo. Isso ocorre por vários motivos, tanto motivos materiais – a economia capitalista vive uma crise uma profunda, com dificuldade de manter taxa de crescimento, levando a endividamento dos estados –, e, por outro lado, há motivos ideológicos, quer dizer, os grupos privilegiados e classes dominantes começam a querer uma parte maior da riqueza para si. Acham que podem pretender isso.

 

"Não tem como escapar desses novos meios, eles são fundamentais, mas a esquerda também não sabe usá-los e não é apenas no Brasil. A esquerda está tendo dificuldade de encontrar um registro discursivo em que ela seja capaz de disputar esses espaços e mantenha o seu diferencial"

 

De alguma maneira, a crise lá nos países desenvolvidos é porque eles estão se aproximando da nossa realidade de sempre, de países subdesenvolvidos, em que a gente sempre teve que conviver com mais desigualdade e sente mais dificuldade de implantar esse pacto que era próprio da democracia. Mas não quer dizer que aqui a gente fique do mesmo jeito, porque a gente regride também. O nosso pacto foi consubstanciado na Constituição de 1988. A Constituição garante uma ação importante da sociedade por meio do estado para reduzir alguns padrões de miséria imperantes no país, tem um elenco de direitos sociais que é para garantir às pessoas um padrão de vida digno mínimo. Essa Constituição é o que vai ser implementado sobretudo nas políticas de transferência de renda dos governos do PT. Isso é uma tradução, em termos de políticas governamentais, do desenho de sociedade que a Constituição colocava. Não é uma sociedade socialista, comunismo, é simplesmente garantir para as pessoas um padrão digno de sobrevivência. E isso é o que está sendo rompido.

 

"Um dos nossos problemas históricos no Brasil é que as nossas elites têm muito pouca tolerância à igualdade, e quando a democracia começa a forçar por mais igualdade social, elas se colocam contra a democracia"

 

Acho que o emblema disso é o golpe de 2016 que destituiu a presidente Dilma Rousseff. Por que chamo de golpe? Porque não tinha abrigo na Lei do Impeachment. O Brasil não é um país parlamentarista, tinha que ter um crime de responsabilidade comprovado. Não teve. Foram os agentes políticos, econômicos e do aparelho repressivo do estado que decidiram que estava na hora de retirá-la. Só que, primeiro, a retirada já significa uma ruptura com a democracia liberal. Conquistou o mandato, mas não pode cumprir o mandato. Mas mais ainda, a retirada serviu para implantar um programa de anulação da Constituição.

A gente vai vendo a retração de direitos. Temos, no governo Temer e depois no governo Bolsonaro, redução de direitos trabalhistas, retirada de direitos previdenciários e o estado abandonando o seu compromisso de minorar as desigualdades sociais. O mais representativo disso é o teto dos gastos, o estado não vai mais investir nas políticas sociais. Então a gente tem no Brasil, de uma forma acentuada, esse processo pelo qual o pacto democrático, que garantia alguma voz e alguma atenção aos interesses dos mais pobres, trabalhadores, dominados e subalternos em geral, sendo destruído. Essa é a desdemocratização da maneira como eu a entendo. Acontece no norte, mas eles partem de um patamar superior, e acontece entre nós, e a gente parte de um patamar inferior. Eles se aproximam do que nós éramos e nós descemos mais.

O POVO – O problema deles é manter o pacto e o nosso é fazer com que aquilo que começou como pacto funcione, porque mesmo a Constituição é muito recente, pouco mais de 30 anos atrás. É um tempo curto para assegurar de fato essas garantias sociais?

Luis Felipe Miguel – É um tempo curto, e para assegurar essas conquistas não basta ter a lei. Não basta ter a Constituição, as chamadas instituições. É preciso ter força na sociedade para garantir que esses acordos sejam cumpridos. Acredito que uma das causas da derrocada da democracia no Brasil nos últimos anos é que existia um descompasso entre a manifestação de uma vontade pelo voto. A história brasileira mostra que o voto, com todas as limitações, tem uma expressividade.

Quando existem governos que melhoram a vida das pessoas, as pessoas votam para reeleger esses governos, mesmo com todas as outras interferências no processo. Existia um descompasso entre o poder do voto e a capacidade de organização da sociedade mesmo. A Dilma se reelegeu em 2014, mas numa reeleição complicada, uma campanha extremamente pesada, o auge da Lava Jato, com acusações diárias contra o governo, o PT, o grupo que apoiava o governo, acusações realmente muito graves, e todo dia da maneira mais sensacionalista possível. Aquele foi um momento em que parecia que era possível uma mudança via eleitoral porque o governo estava fragilizado por conta das manifestações de 2013 etc. Ainda assim a Dilma conseguiu ganhar.

Houve uma militância que se mobilizou, e os beneficiários das políticas de transferência de renda do PT votaram na manutenção do governo. Depois, quando se desencadeia o processo de derrubada do governo, não se vê capacidade de reação dessa base social. Claro, tem várias questões aí, o começo do governo aplicando uma política de ajuste neoliberal, que afastou essa base, ao contrário do que ela tinha prometido na campanha. Mas também porque essa base tinha sido ensinada a se expressar só pelo voto. Não eram pessoas mobilizadas, não eram pessoas organizadas. Os 13 anos de governo do PT não contribuíram para aumentar o grau de organização popular, de educação política.

O POVO – Muito menos de uma organização pelas redes sociais, que começaram a ter papel importante a partir de 2014 no Brasil.

Luis Felipe Miguel – Isso, as redes sociais mudam o jogo. A eleição de 2018 é emblemática, a campanha do Haddad era uma campanha que dava toda atenção ao horário gratuito na TV, como se isso fosse definir por si só a eleição, e atentou muito tardiamente para o que estava acontecendo no WhatsApp e nas redes. Isso é algo que trabalha contra a educação política. Essas novas mídias, em grande medida, operam por meio de discursos muito sintéticos, são memes, vídeos de 30 segundos, tuítes. Fica difícil qualquer tipo de discurso que tente desvendar a complexidade do mundo. Ele vai ter dificuldade de se expressar. É muito mais fácil repetir o senso comum do que desconstruir o preconceito do senso comum. É mais fácil dizer que bandido bom é bandido morto do que fazer uma análise das causas da criminalidade num país como o Brasil.

Não tem como escapar desses novos meios, eles são fundamentais, mas a esquerda também não sabe usá-los e não é apenas no Brasil. A esquerda está tendo dificuldade de encontrar um registro discursivo em que ela seja capaz de disputar esses espaços e mantenha o seu diferencial. Às vezes a gente vê, talvez pela irritação, pessoas dizendo: tem que fazer o mesmo que eles fazem, só que com sinal inverso, é fake news contra fake news. Mas se a gente quer dar um passo além, pra ter uma democracia mais verdadeira e que responda mais à vontade coletiva, não dá pra pensar nisso. Tem que arranjar um jeito de que as pessoas fiquem alertas contra fake news, não reproduzir umas do outro lado.

O POVO – Durante a pandemia, a gente viu a popularidade do presidente Jair Bolsonaro cair. Esse quadro é analisado no livro recém-lançado pelo senhor. Agora, o presidente começa a recuperar terreno. Como avalia essa recuperação de popularidade?

Luis Felipe Miguel – Pra interpretar o bolsonarismo a gente precisa entender que eles operam por uma lógica completamente paralela, mas que tem se mostrado eficaz. A primeira peculiaridade da lógica do bolsonarismo é não ter nenhuma vinculação com o mundo real. A gente vê o presidente e os ministros dizendo que o combate à pandemia foi um sucesso. A pandemia está no seu final, todos nós esperamos, mas isso apesar do governo e não por causa do governo. Mas eles elaboram uma narrativa para sua própria base e isso fica invulnerável para a realidade.

O Bolsonaro disse: não existe corrupção no meu governo. Isso ficou pipocando nas últimas semanas, com um caso de corrupção a cada dois ou três dias, com questões graves, no Ministério da Educação, nas licitações para obras públicas, nas forças armadas. Às vezes é desconcertante. É difícil se contrapor a um discurso que está falando de um mundo paralelo, não se tem a base para introduzir algum tipo de ruído porque a realidade não existe mais. Isso garante ao Bolsonaro algo que é muito importante para ele, que é uma base em torno de 25% que está com ele não importa o que aconteça. Mesmo no pior momento dele, não desceu abaixo de 20%. Isso com o coronavírus matando, o desemprego em alta, a inflação e assim por diante. Claro que isso não é suficiente pra ganhar eleição, mas garante que a direita não possa abrir mão do Bolsonaro. A conta não fecha. É também por isso que essa ideia de terceira via tem dificuldade de prosperar.

 

O que seria o eleitorado tradicional, mais à direita no Brasil, está em grande medida vinculado de alguma maneira ao Bolsonaro? Como Bolsonaro tem feito? Ele tem apresentado medidas, que a gente pode chamar de eleitoreiras, para tentar reconquistar uma outra parcela do eleitorado. Essas medidas são o Auxílio Brasil, que está previsto para acabar depois da eleição. Agora está anunciando que vai finalmente corrigir a tabela do imposto de renda, que era uma promessa de campanha dele, de isentar até cinco salários mínimos. São várias medidas, mas, a meu ver, elas têm fôlego curto porque a gestão da economia nesse tempo de governo, sob Guedes, foi tão desastrosa que não há condições de estabelecer, mesmo no curto prazo, políticas que rendam uma sensação maior de bem-estar para a população.

Isso que ele está oferecendo agora e que levou a uma certa recuperação da popularidade dele, a gente está vendo, é consumido pela inflação galopante. Tem um aumento do custo de vida, uma redução do poder de compra dos salários extremamente significativa. Não existem medidas de uma recomposição real. O governo Bolsonaro aprofundou uma característica da economia brasileira, que é seu baixo dinamismo e uma dependência do baixo salário para ter competividade internacional. Não foi feito nada em relação a isso, pelo contrário, tem se aprofundado. Embora a gente vá ver várias iniciativas no campo do debate ideológico, a volta das mentiras e das ameaças, a ideologia de gênero, o comunismo que está chegando, o Foro de São Paulo, a volta do discurso da corrupção, mas que só pega para a base mais alinhada com Bolsonaro, e também medidas para tentar amenizar a crise econômica, mas que não tem chance de manter um fôlego que chegue até a eleição; na verdade, o governo está tentando enxugar gelo. Está tentando resolver com remendos o que é resultado das políticas centrais de desproteção da força de trabalho, dos mais pobres, de ausência de políticas de seguridade social e assim por diante.

O POVO – Queria insistir no debate sobre a terceira via, embora o senhor já tenha começado a responder. Por que ela não emplacou de fato? Por que esse eleitorado, durante a pandemia, quando a popularidade do presidente caiu, não largou o bolsonarismo e abraçou, por exemplo, outro nome, como o Doria, o Moro?

Luis Felipe Miguel – Acho que tem vários motivos. Existe, por um lado, o fato de que esse setor da direita tradicional hesitou muito no rompimento com o Bolsonaro. Se a gente olhar, quando o país ficou estarrecido com o grau de cinismo e de irresponsabilidade do Governo Federal na gestão da pandemia, quando o Bolsonaro estava lá falando de gripezinha e boicotando todas as medidas sanitárias necessárias, houve um momento em que parecia que o negócio era tão absurdo que ia ser arranjada uma maneira de retirar o Bolsonaro. Mesmo que fosse pra instaurar o governo do Mourão, que é também de extrema-direita, mas que pelo menos não tinha essa irracionalidade em relação a uma questão gravíssima como a pandemia.

O que foi feito? O que foi feito foi uma composição. Se olharmos o que aconteceu ao longo desses anos de governo Bolsonaro, é isso. Bolsonaro esbraveja, faz ameaças. Daí as instituições, políticos da direita, o STF etc., eles ameaçam reagir, mas aí fazem um jantar no Palácio do Planalto e vem uma trégua, parece que as coisas vão se resolver. Não voltando ao respeito à Constituição, mas por meio de um apaziguamento das tensões entre os poderes. E com isso não há rompimento com Bolsonaro. Existe uma ambiguidade, e essa ambiguidade compromete a legitimidade do discurso dessa terceira via. Houve vários momentos em que seria possível parar o bolsonarismo, em que havia condições de construir na sociedade, no Congresso e no Supremo uma situação que permitisse a retirada do Bolsonaro do poder. E motivos não faltaram, porque ele comete crimes de responsabilidade dia sim e outro também. E não fizeram isso.

Acho que a terceira via não foi capaz de marcar com clareza a sua distinção em relação ao Bolsonaro. Os partidos da terceira via estão todos com um pé dentro e um pé fora, parte das suas bancadas dentro do governo, parte fora. Ganham cargo aqui, fazem uma crítica ali. Essa é uma questão. A outra questão é a carência de liderança. Aqueles nomes que aparecem como principais nomes prováveis da terceira via, João Doria, Sergio Moro, eles são pessoas que emergiram na onda da antipolítica. O Doria se elege prefeito de São Paulo no começo dessa onda no Brasil, que é a onda da extrema-direita. O Moro se torna essa figura e essa liderança política como juiz, que é uma coisa estranha, mas foi o que aconteceu, porque era um juiz que combatia os políticos. São figuras que mostram uma carência de habilidade política para costurar os apoios necessários para postular com alguma chance de êxito a presidência da República.

 

"a terceira via não foi capaz de marcar com clareza a sua distinção em relação ao Bolsonaro. Os partidos da terceira via estão todos com um pé dentro e um pé fora, parte das suas bancadas dentro do governo, parte fora"

 

O caso do Doria é emblemático, era o governador do maior estado do país e não consegue sequer garantir o apoio do seu partido para a sua candidatura. A gente vê até o presidente do PSDB dando declaração de público de que estão arranjando uma maneira de rifar o Doria, mesmo tendo ganhado as prévias dentro do PSDB. O que seria natural é que o governador de São Paulo teria esses três anos de mandato pra ir construindo o consenso no partido para sua candidatura presidencial. E, na verdade, o Doria só dividiu o PSDB cada vez mais. O Moro, que sempre teve uma série de entraves, é um sujeito muito incapaz na expressão oral, com pouco repertório e que revela desconhecimento grande de quase toda a agenda de problemas do país, mostrou também uma inabilidade política extraordinária que ficou patente nesses últimos movimentos dele, trocando de partido da noite para o dia. Ele tinha uma pequena massa de apoios dentro desses partidos da direita e o que conseguiu com essa movimentação foi romper com a maioria daqueles que o apoiavam.

Acho que a direita tradicional brasileira, que principalmente Doria e o PSDB representam, embarcou no discurso da antipolítica e abriu as portas para esse discurso achando que isso iria varrer a esquerda e eles iriam emergir, mas eles foram varridos junto. E não conseguiram reencontrar um registro próprio. Parte dos problemas da terceira via vem disso. Destruíram suas próprias lideranças e ficaram com um conjunto de novas lideranças pouco capazes e que não conseguem marcar as diferenças em relação ao bolsonarismo de maneira clara.

Luis Felipe Miguel, doutor em Ciências Sociais e professor da UnB(Foto: Regina Dalcatagnè)
Foto: Regina Dalcatagnè Luis Felipe Miguel, doutor em Ciências Sociais e professor da UnB

O POVO – Quais são os principais desafios que o senhor enxerga hoje para a recomposição no Brasil desse pacto social?

Luis Felipe Miguel – Olha, são tantos desafios. Acho que a gente tem várias questões que precisam ser enfrentadas. A primeira coisa que a gente tem que fazer é reinstaurar a vigência da Constituição de 1988. Embora a gente possa fazer várias análises da Constituição, seus problemas e seus méritos, o fato é que, quando ela foi fraturada, a gente começou a viver uma espécie de vale-tudo no Brasil. Estamos há anos em um momento de queda de braço entre os poderes porque não se sabe mais quem é capaz de resolver as disputas. O STF toma uma decisão, mas a gente não sabe se cola ou não cola, tem que fazer uma negociação para que a decisão seja cumprida.

A gente está numa situação bem complicada institucionalmente. Mas, ao mesmo tempo, não basta a gente restaurar aquilo que a gente tinha, porque aquilo que a gente tinha nos levou a essa ruptura. Existem fragilidades internas. Então acho que há uma série de questões que têm que ser enfrentadas. Não são questões fáceis, é por isso que não foram enfrentadas, mas ficou claro que varrê-las para debaixo do tapete não resolve. Temos que enfrentar a questão dos militares. A gente precisa construir no Brasil uma elite militar que seja compatível com a democracia, que aceite a subordinação ao poder civil e que não se arrogue ao poder de veto sobre decisões desse poder civil. O governo Bolsonaro piorou muito isso.

Há hoje uma espécie de “centrão” militar que está aí parasitando os cargos civis do governo, e isso evidentemente tem que ser enfrentado. Mas, mais do que isso, não é admissível que a gente esteja numa democracia com uma cúpula militar que faz apologia da ditadura de 1964 e que não é capaz de fazer autocrítica sobre as torturas e os abusos que foram cometidos nesse período. A gente tem que profissionalizar as forças armadas a fim de que elas sejam compatíveis com o poder civil. E a gente tem que enfrentar o problema dos meios de comunicação de massa.

 

"A primeira peculiaridade da lógica do bolsonarismo é não ter nenhuma vinculação com o mundo real. A gente vê o presidente e os ministros dizendo que o combate à pandemia foi um sucesso. A pandemia está no seu final, todos nós esperamos, mas isso apesar do governo e não por causa do governo"

 

A gente vive no Brasil uma situação séria de oligopólio da comunicação em que nós temos umas poucas empresas com um grau de profissionalismo muito baixo e um grau de militância política muito alto controlando a difusão da informação no país. Isso também exige força política, mas temos que aumentar o pluralismo da mídia a fim de que o debate público seja informado por visões mais diversas, que contemple interesses diversificados, do contrário a gente fica à mercê de formas de manipulação, como a gente viu nos processos eleitorais nos últimos anos. Só pra não me estender demais nessa lista, mas a gente tem que enfrentar o veto dos mais ricos, e especialmente do capital financeiro, a uma tributação progressiva.

Estamos num país em que aqueles que detêm dinheiro praticamente não pagam imposto, temos enorme dificuldade para sustentar políticas sociais, de ampliação da igualdade e de enfrentamento da miséria. Uma boa parte da movimentação política da classe média à direita é porque, como a gente não consegue taxar os ricos, parece que a classe média é que paga toda a conta das políticas sociais. E isso faz com que ela sinta raiva dos pobres, mas quem está ganhando com isso são os multimilionários e grandes empresários, que pagam pouquíssimo imposto e o pouco imposto que é cobrado deles muitas vezes nem é pago porque temos índice altíssimo de sonegação.

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