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"Quem tem fome, tem pressa" continua atual, diz Kiko Afonso
Reportagem Seriada

"Quem tem fome, tem pressa" continua atual, diz Kiko Afonso

Nascido no exílio dos pais, ele é quem lidera, a convite de Daniel Souza, filho de Herbert de Souza, o processo de transformar a Ação da Cidadania em referência nacional de segurança alimentar mobilizando agendas sociais, públicas e privadas

"Quem tem fome, tem pressa" continua atual, diz Kiko Afonso

Nascido no exílio dos pais, ele é quem lidera, a convite de Daniel Souza, filho de Herbert de Souza, o processo de transformar a Ação da Cidadania em referência nacional de segurança alimentar mobilizando agendas sociais, públicas e privadas
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Para quem acompanha o dilema da fome no Brasil, o cenário atual até parece uma reprise do que as pessoas viviam em 1993, quando o sociólogo e ativista dos direitos humanos brasileiro, Herbert José de Sousa, o Betinho, fez uma grande mobilização nacional para tirar 32 milhões de pessoas da fome.

Hoje, 31 anos depois, muitas pessoas, até famílias inteiras estão morando nas ruas dos grandes centros e pedindo um pão ao menos para ter uma refeição no dia. Além disso, os noticiários voltam a falar sobre o retorno, em 2022, do Brasil para o Mapa da Fome Mundial.

Mas o propósito do Betinho não se foi com sua partida. Ele continua de pé e contrariando as estatísticas de tempo de duração, a Organização Não Governamental (ONG) vislumbrada por ele, a Ação da Cidadania,  continua ajudando milhares de pessoas enquanto esse problema não tem uma solução definitiva.

Rodrigo Afonso, o Kiko, diretor-executivo da Ação da Cidadania, durante campanha de Natal 2023(Foto: Breno Lima/ Divulgação da Ação da Cidadania)
Foto: Breno Lima/ Divulgação da Ação da Cidadania Rodrigo Afonso, o Kiko, diretor-executivo da Ação da Cidadania, durante campanha de Natal 2023

À frente da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida está Rodrigo Afonso, o Kiko, como o diretor-executivo da entidade. Ele chegou na ONG para prestar consultoria, por intermédio de um amigo que tem em comum com Daniel Souza, filho mais velho do Betinho.

Era o destino, já que Kiko, foi concebido durante o exílio dos pais, Carlos Alberto Afonso e Cleyde Fernandes Afonso, no Chile, no período da Ditadura Militar brasileira. Foi neste mesmo contexto que o casal e Betinho passaram a compartilhar dos mesmos sonhos e propósitos.

Em suas memórias afetivas muitos contatos com o sociólogo que junto com o seu pai fundou, em 1981, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), organização de cidadania ativa, sem fins lucrativos.

Kiko a princípio seguiu outros caminhos. Enveredou pela tecnologia, outro campo que o pai foi percussor no Brasil e também atuou no mercado financeiro. Mas sentia que tudo o que vivenciou de exemplos dos pais estavam em segundo plano. Resolveu tirar um ano sabático foi quando surgiu a primeira oportunidade de atuar na ONG. 

Rodrigo Afonso, o Kiko, diretor-executivo da Ação da Cidadania com os pais, Carlos Alberto Afonso, economista, e Cleyde Fernandes Afonso, produtora audiovisual e, também, a esposa, Beatriz Louven, c onsultora de imagem (Foto: Thais Alvarenga/ Divulgação da Ação da Cidadania)
Foto: Thais Alvarenga/ Divulgação da Ação da Cidadania Rodrigo Afonso, o Kiko, diretor-executivo da Ação da Cidadania com os pais, Carlos Alberto Afonso, economista, e Cleyde Fernandes Afonso, produtora audiovisual e, também, a esposa, Beatriz Louven, c onsultora de imagem

De lá para cá, muita coisa mudou, menos o propósito que auxiliar a quem tem fome. Hoje, avalia que o trabalho feito por muitos ao longo desses trinta anos no Brasil subiu de patamar no sentido de estrutura. E, mesmo sabendo que Betinho é um elemento insubstituível em termos de maturidade profissional, a organização avançou muito.

Combater a fome, no seu ponto de vista é muito mais que distribuir cestas básicas: é atuar em todo o sistema da insegurança alimentar. E, mantém a premissa trazida do Betinho que a Ação da Cidadania é uma entidade do diálogo e do debate para transformação de lideranças e processos tanto para empresas como para o governo em relação à insegurança alimentar. 

Rodrigo Afonso, o Kiko, é diretor-executivo da Ação da Cidadania e Daniel Souza, presidente do conselho da ação da cidadania, filho do fundador Herbert de Sousa durante a inauguração da estátua do Betinho em Botafogo, no Rio de Janeiro(Foto: Breno Lima/ Divulgação da Ação da Cidadania)
Foto: Breno Lima/ Divulgação da Ação da Cidadania Rodrigo Afonso, o Kiko, é diretor-executivo da Ação da Cidadania e Daniel Souza, presidente do conselho da ação da cidadania, filho do fundador Herbert de Sousa durante a inauguração da estátua do Betinho em Botafogo, no Rio de Janeiro

"Não aguentamos mais, como sociedade, o nós contra eles. Não andamos para lugar nenhum e o eles, infelizmente, quase sempre tem mais forma que o nós", diz Kiko.

Os dados mais atuais do Instituto Fome Zero, encomendada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), mostra que o número de brasileiros que passam fome caiu de 33 milhões em 2022 para 20 milhões em 2023. 

 

 

O POVO - O senhor nasceu no Panamá enquanto seus pais estavam exilados, correto? Quais as primeiras recordações da sua infância nesse contexto pelo qual o país passava?

Kiko Afonso - Essa história toda, certamente, um dia vai virar filme (risos). Meus pais engravidaram de mim no Chile, quando fizeram amigos na época do Betinho (Hebert de Souza, fundador da ONG). Quando aconteceu o golpe militar no Brasil (1964), minha mãe estava grávida de oito meses e, com o golpe acontecendo também no Chile, meus pais tiveram que se refugiar na embaixada do Panamá.

Era uma sala de cento e poucos metros quadrados com centenas de pessoas dentro tentando sobreviver. O Betinho era uma dessas pessoas, além de mais pessoas de outras nacionalidades. Assim, eles conseguiram o exílio no Panamá. Chegando lá, as mulheres grávidas ficaram em uma cidade e os homens em outra. Então, meu pai não ficou próximo da minha mãe perto do meu nascimento.

Na época, o Panamá estava no processo de implantação do Canal do Panamá (obra civil que permite o fluxo de grandes embarcações entre os oceanos Atlântico e Pacífico) e dependia muito do governo americano para o investimento, e o governo americano pressionou o governo panamenho por estar abrigando "comunistas" sob pena de perda de apoio. Assim, o governante foi conversar com os exilados com lágrimas nos olhos pedindo para que eles saíssem do País.

Pagaram o voo para onde quisessem e damos um documento autorizando a saída de vocês. Então, nós conseguimos uma entrevista com a embaixada do Canadá e, no meio do processo, chega informação de amigos que moravam no Canadá dizendo que iam negar o nosso visto e, a única forma de conseguir ir para lá, era ir clandestino. Eu estava com três meses de idade.

 

 

Daniel Souza, presidente do conselho da Ação da cidadania e Rodrigo Afonso, o Kiko,  diretor-executivo da ONG durante o lançamento do Livro Ação da Cidadania(Foto: Thais Alvarenga/Divulgação da Ação da Cidadania)
Foto: Thais Alvarenga/Divulgação da Ação da Cidadania Daniel Souza, presidente do conselho da Ação da cidadania e Rodrigo Afonso, o Kiko, diretor-executivo da ONG durante o lançamento do Livro Ação da Cidadania


OP - E como foi esse processo?

Kiko Afonso -  A gente não tinha documento nenhum, apenas algumas folhas de papel almaço e fizemos uma capinha parecendo com o passaporte brasileiro. Fizemos isso acertado com um diretor do aeroporto da Jamaica, conhecido do grupo, e ele liberou a gente para ir para o avião que pousou no Canadá. 

Eram dezenas de pessoas com uma malinha pequena, sem dinheiro e sem nada. Já na imigração, havia uma linha que determinava a entrada no Canadá. O pessoal pediu ao pessoal da imigração para sentar numas cadeiras que existiam do lado de lá, eles deixaram e, nesse momento, o pessoal da Igreja Anglicana que apoiava o grupo dos meus pais entrou com processo de advogado afirmando que a partir disso, a gente tinha direito de conseguir um exílio. 

A gente morou dentro de um dos prédios da Igreja, uma espécie de convento, e tivemos apoio para conseguir emprego, morar num apartamento... Mas o começo era chocante. Pegava móveis de lixão. Mas vamos combinar que o lixão canadense era de móveis bem melhores. E as minhas primeiras lembranças são essas: dos móveis pintados de laranja numa casa de madeira bem rústica.

Meu pai era engenheiro e minha mãe sempre trabalhou muito com audiovisual. No Canadá, ela integrou organizações de direitos das mulheres. Quando ela saiu de lá, tinha reconhecimento do governo canadense pelo trabalho que ela fez, com carta do primeiro ministro agradecendo.

OP - E como o senhor via esse envolvimento dos seus pais com o social e como enxerga hoje a importância que isso tudo teve para a história, não só do Brasil, mas dos outros países por onde eles passaram?

Kiko - Eu não tinha muito a referência do que estava acontecendo. Saí do Canadá aos sete anos. A minha lembrança do Canadá era coisa de criança. Foi até visitar os lugares lá, há uns oito anos, para rever os lugares que imaginava imensos, mas na verdade não eram (risos). 

Voltamos para São Paulo e, depois, viemos para o Rio (de Janeiro) com o Betinho, que foi quando se criou o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas). A minha tia Leila, teve meu primo, o Daniel de Freitas, no exílio também. E, hoje, é meu irmão. 

Eu tenho uma honra gigante de ser filho deles. A luta que eles tiveram é algo que não se vê na juventude e da nossa sociedade, que não consegue se mobilizar corretamente diante de tanta coisa motivo de indignação. E o que eles passaram, perseguição, risco de morte, prisão... Depois de um país maltratar tanto eles, eles ainda voltaram para desenvolver projetos sociais e trazer uma esperança para milhões de pessoas.

Eu já convivia com projetos sociais, ia junto com eles, atuava de alguma forma e sempre foi muito divertido para mim todo aquele processo. Isso me incentivou em várias coisas. Quando entro em um colégio aqui no Brasil, após cursar um colégio inglês-português, durante alguns anos comecei a me envolver com movimento estudantil, era do grêmio do colégio, lutando no processo do voto aos 16 anos...

Então, tem uma série de ações, na época, que eu era muito ativo no movimento estudantil. Isso foi me fazendo criar essa ligação com a parte social muito forte.

Rodrigo Afonso, o Kiko, é diretor-executivo da Ação da Cidadania e filho de ex-exilados políticos brasileiros(Foto: Paulo Barros/ Divulgação da Ação da Cidadania)
Foto: Paulo Barros/ Divulgação da Ação da Cidadania Rodrigo Afonso, o Kiko, é diretor-executivo da Ação da Cidadania e filho de ex-exilados políticos brasileiros


OP - E em que ponto você viu que queria mesmo seguir esses passos como os do Carlos Afonso, do Betinho e demais pessoas dessa geração?

Kiko - Então, foi um processo complexo (risos). Meu pai fundou, dentro do Ibase, o Alternex, que foi o primeiro provedor de internet da América Latina. Ele é um dos pais da internet no Brasil e eu fui muito nessa linha, de tecnologia.

Primeiro, eu fundei uma empresa assim que entrei na faculdade, a Via Web. Para se ter ideia, quando eu entrei na PUC, em 1993, os meus professores não sabiam o que era internet. Foi um dos motivos de eu não ter me formado.

Tudo que eu estava aprendendo era defasado em relação ao que eu precisava para trabalhar. Passei de dois a três anos me manter na faculdade. Parei pensando em voltar depois de uns anos, quando chegassem essas novas informações, mas a vida me engoliu completamente.

Rodrigo Afonso, o Kiko, é diretor-executivo da Ação da Cidadania e Daniel Souza, presidente do conselho da Ação da Cidadania criam diálogos com outros atores para acabar com a fome no país(Foto: Breno Lima/ Divulgação da Ação da Cidadania)
Foto: Breno Lima/ Divulgação da Ação da Cidadania Rodrigo Afonso, o Kiko, é diretor-executivo da Ação da Cidadania e Daniel Souza, presidente do conselho da Ação da Cidadania criam diálogos com outros atores para acabar com a fome no país

Eu olhava: eu estou voltando mais para ter o diploma no currículo do que aprender. Mas resolvi continuar desse jeito. A gente estava fazendo conectividade da Eco 92, antes de entrar na faculdade. Como eu entrei nessa área e tinha conhecimento à frente do tempo, a minha empresa atendia muito outras empresas.

Fiquei com a empresa até 2002, fora do social. Como eu era filho do Carlos Afonso, muitas ONGs me procuravam, mas era uma coisa comercial, não social.

Trabalhei muito tempo na iniciativa privada, tive um aprendizado enorme com outros trabalhos na área privada, e quando eu saí, que a Via Web fechou na bolha da internet, e fui trabalhar na RITS, uma ONG de inclusão digital de larguíssima escala.

Fui ser o responsável da tecnologia do projeto que tinha parceria com a Petrobras e mais de 1,5 mil telecentros espalhados pelo Brasil e atendeu milhões de pessoas. Era uma época na qual a internet existia, mas as pessoas não tinha acesso.

Foi um projeto maravilhoso, incrível, mas é aquilo, com o tempo o acesso aumenta e o projeto fecha. Eu volto para o setor privado e vou trabalhar, veja só, para uma empresa de software do mercado financeiro. Passei seis anos (risos). Fui para coordenar a área de tecnologia e acabei virando sócio da empresa depois.

Aí sim foi o momento que eu virei a chave. Eu trabalhava, ganhava muito bem, a empresa era inovadora, mas chegou o momento em que eu não aguentava mais ser aquela pessoa falsa com que eu estava atendendo.

Eu tinha reunião com banqueiro, dono de corretora e dá para imaginar os absurdos que se ouvia contra toda minha concepção de vida. Não concordava com nada do que falavam, mas não ia confrontar.

No fim do dia, eu estava bem financeiramente, mas mal... Olha a história dos meus pais e olha o que eu estou devolvendo para eles. Em 2013, eu pedi demissão, pego a minha grana e me digo: vou passar um ano sabático estudando para entender o que eu quero fazer. Na minha cabeça, eu queria fazer algo que envolvesse tecnologia e impacto social.

Esse processo começou, fiz várias conexões com diversos atores do meio, cheguei a viajar a outros países... Em 2014, eu estava iniciando o projeto nessa área, mas foi para outra vertente. Criei uma organização focada em políticas públicas em startups, com foco na melhora do ambiente de startups no Brasil.

No meio de tudo isso, um amigo em comum meu com o Daniel Souza, que é o filho do Betinho, diz que o Daniel está precisando de ajuda lá na Ação Cidadania depois que o Brasil sai do mapa da fome. Ele precisa pensar numa Ação Cidadania nova, precisa de cabeças inovadoras e achava que a gente tinha tudo a ver.

Daniel e eu nos conhecemos no exílio. Ele foi exilado na Suécia e depois em Londres, além de morar com o Betinho em temporadas no Canadá e México. A gente tinha convivência naquela época, mas a nossa diferença de idade é de cinco anos. Tínhamos uma relação de carinho, respeito, mas não éramos próximos.

Então, eu entro na Ação para dar consultoria. Passo dois anos dando consultoria gratuita para eles. Deu tudo certo, eu tocando meu projeto em paralelo e com eles. Em 2016, concluímos o projeto de mudança de estatuto, de montar um outro olhar.

Apresentamos ao conselho, o Daniel me chama para ser diretor-executivo, mas quando começamos a fazer a mudança, a fome começa a voltar. Nós começamos a receber relatos dos nossos comitês pelo Brasil de que a fome está voltando. Nesse processo, a gente retoma depois de dez anos o Natal Sem Fome.

OP - Você acredita que a tecnologia e os novos modelos econômicos podem contribuir para a gente conseguir sanar a falta de alimentos para os brasileiros?

Kiko - Poder, pode. Se está é outra coisa. Toda a tecnologia tem muito a contribuir para o combate à fome, para a geração de emprego... O problema todo é que a gente vive um modelo que muitos negócios são construídos em cima de manter o status quo na pobreza. No fim do dia, é o capitalismo colocado.

Essa tecnologia praticada com a mentalidade para de fato fazer transformação social. O que a gente tem visto é que muito da tecnologia tem sido colocado para aprofundar a desigualdade.

Diferentemente das outras revoluções, a tecnológica vem uma velocidade acelerada e sem que haja oportunidade para realocação da mão de obra. Além do mais, como você capacita uma pessoa que está com fome?

Como traz uma pessoa para dentro desse universo se a gente tem 33 milhões de pessoas passando fome e outras 65 milhões em quase fome. Tem um fosso de desigualdade social, financeiro, de conhecimento acontecendo todo dia e a velocidade da tecnologia está aumentando estruturalmente.

Falta uma compreensão de que não é só oferecer um curso para essa pessoa porque ela não tem capacidade de ir aprender porque está com fome. Tem um efeito dominó de problemas que precisam se resolver e o primeiro deles é a fome.

A tecnologia tem uma aplicação importante, no sentido de aumento da produção de alimentos, melhoria de processos logísticos, qualidade de alimentos.. Nesse sentido, a tecnologia tem uma relevância muito grande no combate à fome.

"Falta uma compreensão de que não é só oferecer um curso para essa pessoa porque ela não tem capacidade de ir aprender porque está com fome. Tem um efeito dominó de problemas que precisam se resolver e o primeiro deles é a fome"

OP - Qual o peso da volta da campanha do Natal Sem Fome?

Kiko - Eu acho que é uma derrota completa para o povo brasileiro. Não foi a Covid-19 que causou a fome. Se fosse um agente externo que tivesse causado a fome, poderíamos dizer que o povo brasileiro não teve influência em relação ao que aconteceu.

Mas tem. Nós fizemos as nossas escolhas nas urnas e sofremos as consequências disso. O que está provado hoje em todas as pesquisas e avaliações que a gente fez é que as políticas públicas que foram estabelecidas no Brasil no período pré-saída do Mapa da Fome eram revolucionárias nesse universo de combate à fome.

No Brasil, tem um escritório de excelência da WFP, que é a agência da ONU de combate à fome. É a maior agência da ONU e, no Brasil, eles não fazem distribuição de alimentos. Eles trazem delegações aqui para aprender como a gente conseguiu sobreviver nessa escala.

Desde o golpe da presidente Dilma (Rousseff, PT) até o fim do governo (Jair) Bolsonaro (PL), a gente passa seis anos numa mudança do que é alimentação no Brasil. Quando chega no governo Temer (PMDB), tem uma mudança radical. Passa-se a olhar o alimento simplesmente pelo viés do negócio.

É o incentivo ao agronegócio porque o agronegócio é a nossa força motriz econômica. Então, começa a jorrar dinheiro de incentivos para aquilo.

Mas, em vez de manter o que se fazia com os pequenos produtores para manter toda a questão dos programas sociais, o desenvolvimento da agricultura do agronegócio foi em detrimento do investimento da agricultura familiar, em detrimento do investimento em programas sociais, de uma série de programas de alimentação escolar e isso foi um massacre para a população.

Em 2008, quando aconteceu a grande crise econômica da nossa geração, a gente não percebeu fome porque as políticas públicas estavam implementadas.

Aumentou a pobreza, mas aumentou o investimento social, aumentou o investimento da produção de alimentos, e isso fez com que a gente conseguisse manter o preço do alimento estável. Como virou um mero negócio, o que aconteceu? O agronegócio tomou conta e o pequeno produtor fragilizado fica refém.

Ficamos de 2017 até agora, quando entrou o presidente Lula (PT), sem aumento do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Congelou tudo no momento em que a inflação dos alimentos chegou a quase 100%. Isso fora a fila gigante das pessoas para o Bolsa Família.

OP - Com a volta do Brasil ao mapa da fome em 2022, depois de oito anos fora, qual a sua visão e como sair novamente? 

Kiko - A volta ao Mapa da Fome, para a Ação e para mim foi um soco no estômago. A gente se sentiu derrotado. São 20 e poucos anos de atuação para sair do mapa da forma da ONU para, em poucos anos, voltar.

A gente percebeu e aprendeu uma série de coisas sobre as políticas públicas, como a necessidade de um controle social mais rígido para atuar de forma mais coordenada. Isso levou ao que é a Ação Cidadania hoje, uma robustês para não só atingir o objetivo como evitar o retrocesso.

A raiz da grande maioria dos problemas é a desigualdade de classe. A mudança vai vir nesse processo como uma série de políticas que são importantes, tanto as políticas que a gente conhece, do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e os programas de aquisição de alimentos etc, mas, antes, as políticas estruturantes que vão mudar de fato essa questão da desigualdade.

Porque a fome é um resultado da desigualdade social sim, a fome é resultado da pobreza. Não é o contrário. A gente precisa resolver o problema da distribuição de renda para resolver o problema da fome. Enquanto isso, cria-se programas que vão tentar fazer as pessoas sobreviverem a esse processo enquanto essa redução da desigualdade não vem.

OP - E nós estamos ainda nesta fase de políticas públicas?

Kiko - Se você olhar as políticas públicas que estão implementadas e que são essenciais, como PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e o programa internacional de alimentação escolar, vê que existem para oferecer a uma família que não tem condição de adquirir os seus alimentos o alimento.

Essa família ainda não teve a oportunidade de exercer um emprego que pudesse fazer com que ela pague por tudo sem precisar de um subsídio do governo.

É o que estávamos falando antes, a economia do jeito que está, muitas empresas estão criando seus modelos de negócio em cima desses pobres trabalhadores que já vivem com subsídio.

No fim do dia, o governo, com esses programas, também está subsidiando essas empresas com os trabalhadores que elas pagam mal. Não adianta só a gente falar de programas de transferência de renda, de programas de alimentação, de melhoria de alimentação.

A gente precisa falar também da redução da desigualdade de forma intensa. O Brasil precisa sair do ranking dos top três mais desiguais do mundo e virar um país realmente que foca na redução da desigualdade e isso vai partir do Capital.

Quando eu olho o que mudou no Brasil, eu acho que o primeiro foi essa compreensão, pelo menos da nossa parte. A gente entende que a luta por uma alimentação mais saudável é importante. A luta é contra grandes corporações que só tem interesse em ganhar mais dinheiro.

O Brasil é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, mas esse alimento não chega na nossa mesa. E quando chega, chega ultraprocessado. Esse motor da economia que muitas pessoas alegam ser o motor da economia, quando você para e faz um estudo para entender os números, vê que é difícil.

A única coisa que, de fato, o setor de agronegócio contribui efetivamente, ou seja, é acima da média, é a balança comercial. Todo o resto é a base de incentivos. O agronegócio não paga ICMS para adquirir os insumos, não tem imposto de exportação e os agrotóxicos são isentos de impostos.

Uma grande plantação de soja no interior do Mato Grosso precisa de rodovia para escoar a produção. O governo vai lá e constrói uma estrada robusta. Quem paga isso? Porque eles são isentos de ICMS.

Esse processo aqui precisa mudar. Eu estou muito feliz de ver as falas do (Fernando) Haddad (ministro da Fazenda) em relação a isso. Acho que isso vai ser transformador. A gente já teve uma reforma tributária Inicial, vamos ter na segunda etapa que é a etapa da renda mesmo, que é a mais importante.

OP - E aí está ligando a parte da fome, de resolver o problema da fome?

Kiko - De forma estruturante, sim. A partir do momento que tem uma mudança nessa equação de acumulação de riqueza, essa riqueza é distribuída de uma maneira melhor.

OP - E isso entra na questão de que a fome tem cor, tem gênero...?

Kiko - Exatamente. Quando a gente olha o mapa da pobreza brasileira, vê que isso é resultado e está ligado diretamente a como está estruturado o preconceito da nossa sociedade. Quem mais sofre? A mulher preta pobre. Esse é o rosto da fome no Brasil.

Agora tem que começar a reconstruir isso. E aí a dificuldade desse governo. Não é a mesma realidade do primeiro mandato e tem dois elementos importantes. O primeiro é: se pegou o Brasil destruído.

O CadÚnico, a principal ferramenta do governo para conseguir inserir as pessoas nos programas sociais, foi totalmente destruído. O último ano foi de reconstrução. E todo esse processo de reconstrução foi com o orçamento aprovado no governo anterior. Neste segundo ano, eu já tenho mais expectativas.

É um orçamento já negociado do governo atual, é um momento no qual já se teve tempo suficiente para para reconstruir as coisas e começar, de fato, a colocar o planejamento à frente e eu espero que, a partir desse ano, a gente veja ações mais robustas, como aumento do investimento social, de emprego.

A gente tem tudo para reverter esse quadro de estar no Mapa da Fome em poucos anos. Tenho certeza que temos todos os instrumentos para isso.

O POVO - O Governo Federal tem o Plano Brasil Sem Fome, que segue a meta da ONU com agenda até 2030. Conseguimos até lá tirar o Brasil do Mapa da Fome e reduzir a extrema pobreza 2,5% e reduzir a insegura alimentar e nutricional?

Kiko - Eu acho que é desafiador, especialmente por conta do que a gente tem de Congresso (Nacional) hoje. Acho que essa é a principal diferença em relação aos primeiros governos do Lula.

Tínhamos um Congresso mais favorável e tínhamos como negociar questões e econômicas e sociais de uma maneira mais simples. O mecanismo mudou de tal forma que o Congresso hoje tem um pedaço do orçamento nas suas mãos muito maior, tirando o dinheiro de decisão do governo.

Apesar disso, estamos indo num caminho bom, positivo. Mas eu ainda tenho muito receio dessa relação. Parte da câmara dos Deputados tem uma visão de desenvolvimento mais pessoal e da sua região para receber os recursos e se reeleger.

Quando a gente fala de problemas nacionais, redução desigualdade impostos.. A discussão da reforma tributária foi surreal porque os estados querem manter o status quo. Eu acho que esse processo ele precisa ter um olhar mais para o Brasil, especialmente dos senadores.

Com esse processo difícil, acho que a gente pode atrasar um pouco (a meta de 2030), porque as políticas e a implementação requerem novas políticas aprovadas, requerem algumas pessoas abrirem mão de algumas coisas para que outros possam ter o mínimo de sobrevivência e esse processo é um processo político difícil hoje.

É fatível a gente chegar a 2030 com esse indicadores que o Brasil Sem Fome está se propondo. Vai acontecer? Depende dessa capacidade política do governo e do Congresso e do Senado entenderem o seu papel como indutores de um país mais justo e não dos seus benefícios próprios.

Congresso Nacional tem tido maior interesse na pauta da segurança alimentar(Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado)
Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado Congresso Nacional tem tido maior interesse na pauta da segurança alimentar

O POVO- Como avalia o trabalho que vem exercendo na Ação da Cidadania?

Kiko - Estou muito feliz com o resultado que a gente está conseguindo fazer com ações muito relevantes e esse ano a gente vai lançar muitas coisas legais. Temos essa cabeça de trabalhar em parceria com diversos atores.

Eu sou membro do Pacto Contra a Fome que a Geyze Diniz atua, que está inclusive, em Fortaleza. Mandamos, inclusive, para as duas entidades uma contribuição para a Reforma Tributária em relação à cesta básica nacional. Falamos sobre a redução de incentivos para os produtos ultraprocessados e aumento para os alimentos saudáveis. 

Existe uma briga do setor de alimentos para incluir o máximo de produtos possível e a gente entende que esses produtos têm que ser saudáveis e regionalizados. Produtos que de fato sejam consumidos pela população e não um produto que eles querem simplesmente deixar zerados.

Isso já mostra um pouco o resultado do nosso trabalho. Acho que é uma construção de maturidade da Ação da Cidadania em termos de um olhar quase 360º para a questão da segurança alimentar.

Estamos atuando no combate à fome na ponta, realizando formação de lideranças e de agentes públicos na questão da segurança alimentar, uma atuando na questão do advocar-se em Brasília nos estados e municípios.

E, ainda, estamos fazendo uma única estrutura de bancos de alimentos no Brasil inteiro. Estamos em um processo de transformar a Ação da Cidadania na referência nacional de segurança alimentar. temos planos de expansão no Brasil.

O POVO - As empresas estão mais ativas em questões sociais e da comunidade, seja por necessidade ou oportunidades. Como que vê esse momento? 

Kiko - Na minha compreensão, o ESG não veio para salvar o mundo. Ele veio para salvar o dinheiro dos investidores. Sei que é meio traumático essa minha visão, tanto é que o ESG está ligado a área de risco da empresa.

O que é o ESG no fim do dia? É um grupo de investidores que começou a olhar e falar que as ações estão caindo o tempo todo e o que, por exemplo, estão espancando um jovem negro aqui na entrada do supermercado e que estão derrubando uma barragem ali, não sei onde....

Aí essa imagem da empresa fica ruim eu perde-se dinheiro. Então, na mentalidade das empresas, o que que é precisa fazer? Criar uma série de políticas de governança para que se possa primeiro evitar que esses problemas aconteçam onde elas impactam.

E uma coisa intracorporação e não fora. Ou seja, só age onde impacta diretamente. Hoje, uma empresa que não tem diversidade de gênero ou raça é uma empresa mal vista.

Assim, no sentido da necessidade, para proteger o seu patrimônio, elas se organizaram. Isso não quer dizer que são assim, mas especialmente no Brasil, porque muitos profissionais que foram para essa área ESG vieram do marketing ou da área de risco do negócio. E eles têm uma visão muito dura do negócio.

Passo esse conceito do que é o ESG para mim, eu acho isso de uma forma meio goela abaixo faz com que as empresas acabem adotando políticas internas super importantes que aumentam a diversidade, questão de gênero e raça e a questão ambiental e uma série de coisas de governança e de transparência.

Diga-se de passagem, isso não é algo que elas estão fazendo melhor do que deveria, era obrigação, já era obrigação, mas não faziam. E se olharmos os relatórios na B3 (Bolsa de Valores) nenhuma faz o 100% do que já deveria fazer.

Mas porque que para além disso, o ESG gera um problema para o terceiro setor brasileiro e mundial. Cada vez mais você tinha empresas e fundações que investiam nas áreas ambientais e sociais, só que não tinha a camisa de força do ESG, as empresas olhavam para o centro, mesmo se estivem em um estado, ajudavam outro que precisava.

Porque você não tinha a amarração da materialidade de localidade. No fim do dia, você perdeu a proximidade das empresas de investir em ações que elas consideram importantes como empresa. Hoje você não tem mais donos, têm grupos de investimentos que exigem que você entregue aqueles lucros e indicadores. 

Engessando mais a distribuição dos recursos. E para piorar a fome não é materialidade de nenhum indicador. Na B3 você conta na palma da mão quais as empresas que tem o ODS 2 (Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 2 diz Fome Zero e Agricultura Sustentável) na materialidade.

Combater a fome não é algo que possa entrar no relatório de ESG das empresas. 

O POVO – O início de todo esse trabalho da Ação da Cidadania foi retratado recentemente na série televisiva “Betinho - No Fio da Navalha”. A história do seu pai com o Betinho foi bem retratada?

Kiko – A série é uma coisa que, para mim, foi muito emocionante. Porque por mais que o Betinho não seja um parente de sangue, ele é minha família. Ele era bem tio, como irmão do meu pai sim. Eles eram amigos nesse nível de irmandade mesmo.

Toda a convivência que eu tive desde o Canadá até no Brasil. Ele frequentava a casa o tempo todo, tenho recordações da casa de Itatiaia, ele estava sempre junto. Tinha uma proximidade e ver aquilo retratado da forma que foi é um pouco o retrato da minha vida.

Foi muito bem retratado, claro que tem uma dramatização ali, porque também tem a questão do tempo para contar toda a história dele. Ali é um resumo. E eu assisti a séria com a Maria (viúva do Betinho) e meus pais lá em Itatiaia.

A própria Maria diz que Betinho era uma figura muito além de nós. A série deixa claro no começo, a dor que ele tinha com o sofrimento da humanidade. Era muito maior do que qualquer outra coisa. Ele tinha um senso de urgência. Isso que o diferencia do resto.

Ele não tinha nenhuma visão de patrimônio, de riqueza, ele queria era fazer conseguir acabar com a fome. Ele acordava e dormia pensando nisso e se você não pensava assim era difícil conviver com ele.

O POVO – Como era o Betinho na sua visão?

Kiko - O Betinho era muito além, muito à frente do seu tempo, muito além em termos de espírito e de dedicação dele para a humanidade. É uma coisa que, de fato, inspirava muito nele. E isso obviamente refletia na relação dele com a família.

O POVO – Pensa em livro ou documentário da história da sua família?

Kiko - Tenho muita vontade de contar a história dos meus pais, na verdade não deles especificamente, mas de muitos personagens incríveis de resistência e de luta e que precisam ser contadas.

O Brasil não pode esquecer essa história de jeito nenhum, porque duas pessoas, meu pai e o Betinho, dois exilados que saíram do Brasil quase assassinados e perseguidos, voltam e causa uma revolução no Brasil em várias frentes: de combate a fome, internet, combate à AIDS, cidadania, mobilização popular.

São muitas coisas e histórias que precisam ser contadas para as pessoas entenderem o drama que foi a Ditatura e a luta que foi dessas pessoas para que a gente pudesse voltar à Democracia e reerguesse o país.

É um plano a médio prazo, já começamos a registrar para não se perder e esse ano queremos sentar para planejar a roteirização.

O POVO – Para finalizar, o Betinho emblematizou a frase “Quem tem fome tem pressa”. Ela continua atual para você?

Kiko – Continua atualíssima. Acho que ela sistematiza muito e ela é uma fala muito profunda e que poucas pessoas têm a visão de quão profunda ela é.

Porque ela vai além da intenção do que está sendo dito. Mostra que se tem uma visão de que não é a educação, não é a saúde... Se essa pessoa está com fome, ela tem muito mais pressa porque ela precisa disso para conseguir acessar as outras coisas.

Pela frase, entendemos que as políticas públicas de oportunidade que emprego, renda, saúde e educação é o que vai tirar esse cara da fome em definitivo, mas enquanto isso não chega, e a nossa experiência diz o quanto isso demora a chegar, quem tem fome tem pressa.

Quando o Betinho cunhou essa frase junto com a dona Terezinha (pessoa que fala essa frase para ele), ele foi muito criticado pelos movimentos de esquerda e que isso ia pelo olhar assistencial.

E Betinho respondia ‘Cara, eu entendo, mas vocês façam a sua parte de fazer as políticas mudarem logo que a gente aqui está fazendo elas (pessoas) sobreviverem até quando a política chegar'.

No ritmo que está acontecendo, ninguém vai sobreviver para sua política nova que você está fazendo. Essa era a forma de expressar a necessidade da pressa para todos que estão envolvidos no combate à fome. Seja em quem está distribuindo alimento hoje para uma família que está com fome.

Lembrando que, as crianças de zero a seis anos estão em um importante processo de formação física e cognitiva, se elas não se alimentam na idade correta da vida não adianta chegar com 18 anos e dar um monte de comida para ela, pois a capacidade dela intelectual parou ali no desenvolvimento infantil.

É preciso de fato entender que a fome tem pressa por diversos motivos, enquanto isso a gente luta pelo resto.

 

 

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