Para José Jackson Coelho Sampaio, ensinar nunca foi apenas um ofício, mas um ato de construção coletiva. Aposentado desde outubro de 2024, ele dedicou 31 anos à Universidade Estadual do Ceará (Uece), que neste mês de março completa 50 anos de existência, onde deixou um legado inegável.
Jackson ocupou cargos importantes na instituição. Foi reitor por oito anos, pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa por 11, diretor do Centro de Ciências da Saúde (CCS) por cinco, e coordenador do Mestrado em Saúde Pública – programa que ajudou a fundar e que, posteriormente, se tornou o Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva (PPSac).
Psiquiatra, também ajudou a moldar a história do Brasil ao participar da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, cujo relatório final serviu de base para o capítulo sobre Saúde na Constituição de 1988 e contribuiu diretamente para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Além do médico e professor, vive o poeta, que transborda pensamentos em mais de 200 publicações, onde suas palavras ecoam entre a ciência e a sensibilidade.
O POVO - O senhor já chegou a mencionar a forte influência de seus pais na construção de seus valores. Quais foram as maiores lições?
Jackson Sampaio - Meus pais valorizavam muito a cultura. Meu pai, ex-seminarista, falava latim e francês e estimulava meu aprendizado. Desde criança, ele me fazia ouvir a rádio BBC de Londres para que eu aprendesse inglês. Esse incentivo intelectual foi um dos maiores legados que me deixaram.
Por exemplo, em Coroatá (MA), o tabelião da cidade, amigo da família, era sobrinho do escritor maranhense Aluísio de Azevedo, considerado o pai do naturalismo brasileiro. Ele possuía, em sua biblioteca, manuscritos do tio, mas meu pai não queria que eu os lesse, por considerá-los moralmente pesados.
Quando questionei essa proibição, ele propôs um acordo: ele leria primeiro e responderia minhas dúvidas depois. Isso me ensinou desde cedo sobre autonomia crítica e liberdade com responsabilidade, mostrando que não existe liberdade absoluta, pois toda liberdade é regulada pela interdependência humana. Minha "perversão" infantil, como diria Freud, era não fazer perguntas ao meu pai.
O POVO - O senhor é sobralense e morou em algumas cidades antes de vir para Fortaleza, não é?
Jackson Sampaio - Quando meu pai assumiu a gerência de uma unidade das Casas Pernambucanas, foi transferido para Sobral, onde nasci. Depois moramos em Russas, voltamos para Crateús e fomos para Coroatá (MA), onde ele ficou por 12 anos. Fiz o ensino primário em Coroatá (MA) e o quarto ano do ginásio em São Luís. Como lá não havia escola além do segundo ano ginasial, vim sozinho para Fortaleza, aos 13 anos. Coincidentemente, cheguei em 15 de março, pouco antes do golpe militar de 31 de março.
Morei na casa de um tio ligado ao Partido Comunista, que acabou preso. Eu era apenas um garoto e vivi tudo de perto. Naquele ano, Fortaleza teve um dos invernos mais rigorosos do Ceará. Lembro de atravessar o quintal alagado, com água no joelho, para esconder livros políticos em sacos plásticos. Escondi-os em uma venda de bananas atrás da casa dos meus avós. Então a revolução não foi só no País, mas dentro de mim também.
O POVO - Como isso influenciou sua atuação no campo político e social?
Jackson Sampaio - Nunca fui filiado a partidos, mas sempre defendi a democracia. Norberto Bobbio (filósofo) diz que a definição de esquerda e direita depende da visão sobre a desigualdade. Se você a vê como algo natural, se alinha à direita. Se a entende como um fenômeno histórico, fruto de disputas econômicas e sociais, está à esquerda. No Brasil, 10% da população detém 90% da renda, enquanto os outros 90% dividem apenas 10%. Se você acredita que essa desigualdade pode ser transformada por lutas sociais e econômicas, se posiciona à esquerda. Se a naturaliza, está à direita. Eu me posiciono no campo da esquerda democrática.
O POVO - O que atraiu o senhor a seguir na Medicina?
Jackson Sampaio - Brinco que escolhi Medicina por exclusão. Na época, as opções mais comuns para a classe média eram Medicina, Direito e Engenharia. Nunca me interessei por Matemática, então descartei Engenharia. Direito também não me atraía. O advogado precisa defender seu cliente, mesmo sabendo que ele é culpado, porque a defesa é um direito fundamental. A necessidade de inventar argumentos me incomodava. Então, acabei optando pela Medicina. Descobri A. J. Cronin, um autor inglês que escrevia sobre médicos atendendo os pobres no interior da Inglaterra pós-Revolução Industrial. Achei aquilo fascinante, mais uma idealização do que um desejo concreto.
O POVO - E quando decidiu seguir com a psiquiatria?
Jackson Sampaio - No terceiro ano da faculdade, organizamos uma frente democrática para lutar contra a ditadura militar. Fomos informados de que estavam levando presos políticos para o Manicômio Judiciário do Ceará. Na mesma época, surgiu um concurso para técnico de práticas médicas, vinculado ao Ministério da Justiça, para atuar no manicômio.
Como estudantes de Medicina, nos candidatamos para identificar presos políticos entre os internados, e eu acabei sendo um deles. Lá, encontrei pessoas com transtornos psiquiátricos que haviam cometido crimes e cumpriam pena, mas o mais chocante era que, na prática, o local funcionava como prisão perpétua. Muitos ficavam internados por décadas, além do tempo que cumpririam em um presídio comum.
Naquela época, o sistema era extremamente cruel. Hoje ainda há muitos problemas, mas existem mais mecanismos de fiscalização. A estrutura era precária. Se uma chave quebrasse, não havia reposição, e tínhamos que dormir com a porta aberta. Alguns internos passavam a noite acordados, mesmo sob fortes medicações. No início, senti medo, mas pensei: "Não posso temer meu próprio paciente". Então, decidi ficar acordado com eles.
Foi assim que conheci um interno apaixonado por música, ex-locutor de rádio que cantava em francês. Passamos a cantar juntos músicas como La Vie en Rose e Sous le Ciel de Paris, de Edith Piaf. Os técnicos de enfermagem achavam que eu era tão louco quanto os pacientes. Mas sempre gostei dessas experiências transgressoras. Para mim, a relação com o paciente nunca poderia ser apenas técnica, precisava ser humana. Só assim era possível entender e, de fato, ajudar no tratamento. Essa foi uma lição que marcou toda a minha trajetória.
O POVO - O senhor morou um tempo no Rio de Janeiro, quando ingressou na militância do Movimento Brasileiro de Reforma Psiquiátrica e também de Reforma Sanitária. Como foi isso?
Jackson Sampaio - Eu já estava formado há quase 10 anos quando eu percebi que não queria mais continuar apenas no serviço hospitalar. Era o momento de voltar ao que mais gostava: estudar. Minha esposa e eu pegamos nossos três filhos e decidimos: "Vamos para o Rio de Janeiro fazer mestrado!" Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), participei do Movimento Brasileiro de Reforma Sanitária e também fui convidado a presidir a Sociedade Brasileira de Neurologia e Psiquiatria.
Atuei pelo Instituto de Medicina Social da Uerj e no Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde fui diretor de uma unidade e integrei o hospital a um projeto da Organização Pan-Americana de Saúde, focado em testar modelos de reforma psiquiátrica. Então, eu fui para a 8ª Conferência Nacional de Saúde como delegado, onde trabalhamos na modelagem do Sistema Único de Saúde. Depois, seguimos para a luta para incluir o SUS na Constituição de 1988.
No entanto, a Constituição não estabeleceu o SUS diretamente como lei autoaplicável; era necessário criar uma lei orgânica para regulamentá-lo. A batalha para aprovar essa lei foi intensa, e ela acabou sendo aprovada em 1990. No entanto, quando a lei foi sancionada, o então presidente Fernando Collor de Mello impôs uma série de vetos, principalmente nos mecanismos de controle social e participação popular.
Quando Collor foi afastado, Itamar Franco assumiu a presidência e, por meio de negociações, grande parte dos vetos de Collor foi revertida. A Lei Orgânica da Saúde foi aprovada em dezembro de 1990, mas como o orçamento da União para 1991 já havia sido aprovado sem a inclusão do SUS, não foi possível implementá-lo imediatamente. Começou, então, uma nova luta para incluir o SUS no orçamento da União, o que só foi conquistado em 1992.
"A universidade é um lugar de produção de conhecimento, amadurecimento intelectual e cidadania plena, que, por acaso, também pode proporcionar entrar no mercado de trabalho"
O POVO - O SUS que o senhor sonhava naquela época corresponde ao que temos hoje?
Jackson Sampaio - O SUS que temos hoje é um grande avanço, mas ainda distante do que sonhávamos na 8ª Conferência Nacional de Saúde. Naquele momento, queríamos revolucionar o modelo vigente e inverter a lógica existente, colocando a atenção primária como ponto de partida e não como algo secundário ou marginal. A ideia era que a atenção primária fosse capaz de resolver pelo menos 70% dos problemas de saúde da população, enquanto os demais 30% seriam encaminhados para a atenção secundária [ambulatórios especializados] ou terciária [hospitais].
No entanto, no meio do caminho, o avanço do neoliberalismo se manifesta na terceirização e precarização dos contratos de trabalho. O poder público passou a contratar cooperativas médicas, empresas terceirizadas e profissionais como pessoa jurídica (PJ), com contratos temporários de seis meses a um ano. Esse modelo compromete a qualidade da assistência e fragiliza os trabalhadores do setor.
Além disso, um dos desafios que enfrentamos é a judicialização da saúde. Muitas pessoas, especialmente das classes médias urbanas, começaram a contratar advogados para garantir na Justiça o acesso a medicamentos caros, muitas vezes recém-lançados e com eficácia questionável. O problema é que, em cidades pequenas, um único tratamento judicializado pode consumir grande parte do orçamento da saúde pública. Ainda assim, hoje o SUS é fundamental para o Brasil. Se ele não existisse, o que teria sido de nós durante a pandemia da Covid-19?
O POVO - E quais os impactos desse modelo atual nos tratamentos da saúde mental?
Jackson Sampaio - É extremamente prejudicial. A elaboração de um projeto terapêutico para um grupo de pacientes pode levar, no mínimo, um ano e meio. Mas como liderar um projeto terapêutico com profissionais com contratos de trabalho de apenas um ano, sem garantia de renovação, comprometendo a continuidade do tratamento?
Desde 1985, com mais de 40 ministros da saúde, a descontinuidade das políticas públicas tem sido um grande desafio. O SUS foi projetado de forma progressiva, mas na prática, a implantação foi desorganizada. Em Fortaleza, por exemplo, a cidade, com 2,5 milhões de habitantes, deveria ter 25 Caps, mas conta com apenas 16, sobrecarregando as equipes e com estruturas inadequadas.
Em grandes metrópoles como Fortaleza, o SUS enfrenta sérias dificuldades, enquanto em cidades médias o sistema até funciona melhor. Além disso, a realidade demográfica exige soluções regionais diferenciadas, como no Amazonas, onde o acesso ao SUS é muito mais difícil.
O POVO - A respeito de seu período como gestor na Uece, há algum projeto que o senhor considere um "filho favorito"?
Jackson Sampaio - Eu sempre tive a consciência de que boa parte do que realizei foi dar continuidade a projetos iniciados por outros. A produção no serviço público é contínua. Claro, tenho projetos que considero especiais, como o Mestrado em Saúde Pública. Ele foi o quarto mestrado da Uece e, com um ano de criado, foi o primeiro a ser recomendado pela Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior].
Como Pró-Reitor, também iniciamos uma política de formação de professores e decidimos criar um doutorado em Saúde Pública. Para isso, fizemos uma parceria com o Unifor e a UFC, que também tinham mestrados na área. Como nenhum dos três mestrados alcançava a nota 4 individualmente, optamos por uma colaboração para viabilizar o doutorado de forma mais rápida.
O doutorado tinha dois objetivos principais: antecipar em pelo menos oito anos a formação de doutores em Saúde Coletiva no Ceará e fortalecer os mestrados para que cada instituição pudesse, no futuro, criar seu próprio programa. E a estratégia foi bem-sucedida, acelerando a formação de doutores e permitindo que as três universidades desenvolvessem seus próprios doutorados.
O POVO - Durante a pandemia de Covid-19, o senhor enfrentou uma experiência pessoal grave com a doença. Como foi isso?
Jackson Sampaio - Em 2020, eu estava na gestão da universidade e iria terminar meu mandato em 22 de maio. O governo do Ceará emitiu um decreto com o isolamento social e a adoção do trabalho remoto em 16 de março. Eu precisei suspender o processo eleitoral que já estava em andamento.
No dia 22 de abril, fui internado e passei 20 dias intubado. Fiquei dois dias sem a intubação, mas precisei ser entubado novamente por mais 10 dias. Após mais uma semana sem intubação na UTI, fui transferido para um leito hospitalar, onde permaneci por três semanas. Ao todo, fiquei 76 dias alimentado por sonda nasal enteral, o que "aposentou" meu estômago nesses dias. A intubação também afetou a traqueoplastia, porque eu respirava artificialmente.
O capacete Elmo ainda não havia sido criado. Afinal, fui um paciente da “primeira leva” da Covid. Quando voltei para casa, precisei de dois meses e meio de atendimento domiciliar. Foi quando iniciei a batalha para ganhar peso, algo sempre difícil para mim, especialmente com a idade e as condições impostas pela pandemia. Até hoje, consegui recuperar 19 dos 25 quilos perdidos.
Após a internação, pedi meu prontuário médico, que tinha mais de 2.800 páginas. Nele, vi que tomei mais de 20 remédios diferentes, incluindo três psiquiátricos, pois os sensores indicavam que eu estava alucinando ou delirando. Fiquei irritado por terem me dado esses medicamentos, pois eu queria ter alucinado de maneira mais livre.
O POVO - Em algum momento do pós-doença o senhor ressignificou o que passou?
Jackson Sampaio - Durante o atendimento domiciliar, vi uma psicóloga algumas vezes e comecei a falar sobre as alucinações, anotando tudo. Sem perceber, estava criando um estudo de caso sobre mim mesmo e decidi escrevê-lo como um estudo científico. Esse já foi um processo de ressignificação. Pensei: "A Covid vai me dar, pelo menos, um ponto no currículo." Hoje eu fico muito feliz com ele. Recentemente, reli e fiquei emocionado, porque fui eu quem viveu essa história. Eu estou o tempo todo ressignificando essa história também na poesia. Mas eu disse a mim mesmo que não queria que minha poesia fosse um canto fúnebre.
O POVO - No pós-Covid, qual foi a Uece e a reitoria que o senhor encontrou?
Jackson Sampaio - Observei uma convivência muito boa entre alunos e professores, especialmente na pesquisa. A universidade, mesmo com dificuldades, sobrevive, muitas vezes, apesar da gestão. Houve uma reitoria interina, porque eu não pude mais participar do processo eleitoral de um novo reitor. Quando chegou o momento da eleição, o novo reitor foi o meu vice por oito anos. Então, eu me senti muito à vontade na universidade em geral.
Era um ambiente que recuperou muito do que eu estava fazendo, também muito da herança deixada pelos ex-reitores Manassés (Fonteles) e (Assis) Araripe. Mas havia dois candidatos que queriam justamente essa ruptura. Eles sabiam que, se o Hidelbrando [atual reitor] ganhasse, ele levaria essa herança consigo.
Então, eles entraram com uma manifestação no Tribunal de Contas do Estado (TCE), alegando corrupção. Se houvesse algum problema nas minhas contas, tanto eu quanto meu vice, que era o Hidelbrando, seríamos responsabilizados, o que ajudaria na vitória deles.
Eu, mesmo debilitado me recuperando em casa, entrei em ação. Contatei o TCE e conseguimos agilizar a análise das minhas contas. Hoje tenho seis anos de contas analisadas. Até o momento, a denúncia não resultou em nada. O ambiente também tem seus lados tóxicos, suas pontas negativas. Isso foi uma ação absolutamente antidemocrática.
O POVO - Muitos jovens hoje questionam o valor do ensino superior, principalmente pela dificuldade de conseguir emprego após a graduação. Como você enxerga essa situação?
Jackson Sampaio - Um ponto a se entender é que a universidade é um local de produção de conhecimento, não apenas como um passaporte para conseguir um emprego. Quando a universidade é vista apenas como uma preparação para o emprego e o aluno não consegue entrar nesse mercado, isso não é um fracasso da universidade, mas sim de um modelo econômico que não valoriza a formação acadêmica.
Na sociedade capitalista, o trabalho muitas vezes exige três coisas: dinheiro, satisfação pessoal e segurança. Porém, poucos setores oferecem essas três coisas. O mercado fragmenta isso para evitar que as pessoas sejam autossuficientes, criando uma individualidade que dificulta a luta coletiva, como a sindicalista.
A universidade é um lugar de produção de conhecimento, amadurecimento intelectual e cidadania plena, que, por acaso, também pode proporcionar entrar no mercado de trabalho. No entanto, se o mercado não valoriza a educação superior e prefere pagar mais barato para profissionais com formação técnica, a universidade enfrenta um desafio. Mesmo assim, ela deve manter seu compromisso com a formação acadêmica e cidadã.
SBPC
Em 2005, Jackson Sampaio, na época diretor do Centro de Ciências da Saúde (CCS), foi responsável por trazer para a Uece a 57ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A realização do evento impulsionou a expansão do campus Itaperi, com construções como da Reitoria e novos blocos
Covid
Vítima da Covid, o professor Jackson Sampaio enfrentou o período dramático. Chegou a ter alucinações, experiência que ele transformou em estudo científico. Foi uma forma de ressignificar o sofrimento, inclusive através da poesia. “Mas eu disse a mim mesmo que não queria que minha poesia fosse um canto fúnebre”, conta
Atuante
Mesmo aposentado, Jackson Sampaio segue atuando no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva (PPSAC) e Grupo de Pesquisa Vida e Trabalho (GPVT) da Universidade Estadual do Ceará (Uece)
Grandes entrevistas