Os 12 meses de pandemia no Brasil até aqui foram de dor, mas não deixaram de haver alegrias. Para muitas famílias, os sentimentos foram ambíguos: luto e alegria, perdas e nascimentos. Maria José Gonçalves de Oliveira, Masé para os íntimos, descobriu que estava grávida em meados de janeiro de 2020. Até então, não tinha tomado consciência da ameaça de pandemia que então começava a rondar o mundo. Percebeu um atraso menstrual e logo fez o teste de gravidez. Dois traços: o resultado deu positivo.
O primeiro a saber foi o marido, Franklin, que acompanhou o teste. O segundo, o primogênito da casa, Bernardo. Para evitar a ansiedade, eles resolveram esperar o exame de ultrassom para contar à família. Mas Bernardo, então com 5 anos, não conseguiu se conter e, numa viagem ao Interior, disse à avó materna a novidade: "Eu vou ganhar um irmão!". Rosa Gonçalves, a Rosinha para todos, respondeu à revelação do neto: "Que coisa boa! Esse ano vai ser um ano muito feliz!"
Os dias dos 9 meses foram passando. Enquanto Benjamin tomava forma, a pandemia do novo coronavírus crescia ao redor do mundo. Os primeiros casos foram confirmados no Brasil no fim de fevereiro. Em Fortaleza, os primeiros contágios foram confirmados em março. A doença assustou a família. Do grupo de risco, Rosinha ficou isolada com o marido.
Em maio, a matriarca começou a sentir falta de ar, seguida de febre. Os sintomas eram mal sinal. Preocupados, os filhos levaram Rosinha ao hospital. O diagnóstico temido se confirmou: Covid-19. Após oito dias de internação, a atendente do Hospital Geral de Fortaleza (HGF) telefonou para Célia, irmã de Masé. "Infelizmente a dona Rosa não resistiu e veio a óbito", comunicou a voz do outro lado da linha.
"O fato de estar gerando uma vida no período em que a gente a perdeu deu um certo alívio. Mas também tinha momentos, principalmente antes do parto e nos primeiros dias após, que foram bem difíceis. "
No quarto mês de gestação do segundo filho, Masé perdeu a mãe. O filho no ventre acabou sendo um consolo possível. "O fato de estar gerando uma vida no período em que a gente a perdeu deu um certo alívio. Mas também tinha momentos, principalmente antes do parto e nos primeiros dias após, que foram bem difíceis. Eu ficava pensando no quanto ela gostaria de estar presente", relatou Masé. Hoje, a felicidade de acompanhar o crescimento do filho guarda uma parte dolorida. "Pra mim é muito difícil aceitar o fato dela não ter conhecido o Benjamin, isso me dói muito."
Com o medo de contaminação misturado com o de ter complicações no pós-parto, os sentimentos eram divididos. "Eu perdi a minha mãe e ganhei um filho. Eu sei que isso não vai trazê-la de volta. Mas, ao mesmo tempo, eu me sinto de certa forma compensada pela perda (...). Eu sinto como se ele trouxesse um pouco de alívio pra gente. Muitas vezes eu olho pra ele e vejo um pouco dela nele. Não sei explicar. Talvez o sorriso, o olhar… É como se, através dele, ela tivesse presente comigo".
Fernanda Benevides foi mãe de primeira viagem. Descobriu a gravidez em 10 de maio de 2020. No mesmo dia, o Ceará marcou 6.638 casos confirmados de Covid-19. "O maior medo é que, por ser uma doença nova, sabemos poucas informações sobre os prejuízos que ela pode trazer pra gestação e pro bebê. Então, apesar da alegria enorme pela gestação, o receio foi grande", disse a mãe do Miguel.
Em 6 de janeiro, ela deu à luz. No dia do nascimento, alegria e medo se misturaram: "Claro que os primeiros sentimentos que aparecem são a ansiedade e a felicidade pela chegada dele. Não dá pra esquecer a pandemia em que estamos vivendo. Então, o medo de contaminação com o novo coronavírus estava ali presente, me deixando sempre em alerta para que fosse o mais cuidadosa possível."
Miguel Benevides de Lima nasceu com 3,8 quilos, 38 semanas de gestação e uma suspeita de miocardite viral, um comprometimento cardíaco devido a infecção provocada por um vírus. Com suspeita de Covid-19 logo ao nascer, a criança ficou seis dias no hospital, em observação. "Fiquei me sentindo culpada com medo de ter passado a doença pra ele. Por mais que eu saiba que tomei todos os cuidados possíveis. Mas, graças a Deus, a suspeita não se confirmou", desabafou Fernanda.
As visitas a Miguel continuam restritas: "Em casa, recebi apenas meus pais, sogros e irmãos, em dias diferentes e sempre de máscara. Muitas pessoas da família e amigos queridos perguntaram se podiam vir. Mas expliquei que, neste momento que estamos vivendo, pra segurança do meu filho, não estou recebendo visitas."
Antes da chegada dos bebês, Fernanda e Masé seguiram as consultas de pré-natal, mas com limitações. "Toda saída de casa trazia uma tensão. Tomava todo cuidado possível: máscara, muita lavagem de mão e álcool em gel, troca de roupa e banho imediatamente após chegar em casa. Infelizmente, nessas saídas, ainda notava uma parte da população mais displicente, e andando pelas ruas sem máscara", disse Fernanda, mãe do Miguel.
Para Masé o pré-natal teve complexidade extra, pois o médico que a acompanhou teve Covid-19. A mãe de Bernardo e Benjamin precisou passar um período sem atendimento: "Eu não deixei de ir para nenhuma consulta, exceto no período em que eu tive de ficar de quarentena e perdi o olhar da consulta, e quando o médico teve Covid e precisou adiar também. Passei uns dois meses sem consulta e ultrassom."
"Nós vivemos um momento muito difícil, pois sabemos que o aumento de profissionais e pessoas dentro dos hospitais aumenta a chance de contaminação do vírus."
De acordo com o médico obstetra Edson Lucena, mesmo com os riscos, o pré-natal precisa prosseguir. "Casos de alto risco foram pensados de forma adaptada, pela telemedicina", ele explica. Gerente de Atenção à Saúde na Maternidade Escola Assis Chateaubriand, Lucena explicou as restrições nos leitos de maternidade. "Nós vivemos um momento muito difícil, pois sabemos que o aumento de profissionais e pessoas dentro dos hospitais aumenta a chance de contaminação do vírus. A mãe ainda tem direito a um acompanhante na hora do parto, desde que este não esteja com nenhum sintoma gripal. As visitas também foram limitadas, com distribuição de horários, não se tornou mais estendida."
"Todas as gestantes são consideradas grupo de risco. As gestantes que tiveram Covid-19 têm mais risco de aborto espontâneo"
O obstetra ressalta a necessidade do isolamento social para gestantes: "Todas as gestantes são consideradas grupo de risco. As gestantes que tiveram Covid-19 têm mais risco de aborto espontâneo, ou de o bebê nascer com restrição de crescimento, ou de ocorrerem partos prematuros."
Foi o que aconteceu com Maryane da Rocha Santos. Diagnosticada com o novo coronavírus, ela deu à luz a José Bernardo, de forma prematura, aos 6 meses de gestação.
Maryane contou ter solicitado ajuda em um hospital público de Caucaia. Mas, por estar grávida, os médicos indicaram que ela voltasse logo para casa. Somente da segunda vez que procurou ajuda médica, conseguiu ser internada.
"Foi aumentando a falta de ar, meu marido (Diego de Freitas Rodrigues) me levou ao hospital. Lá fizeram o teste rápido, e detectaram que eu estava com Covid-19. Nisso eu estava com muita falta de ar, parecia que eu tava me afogando no seco. Só passava pela minha cabeça que eu ia morrer”, relatou sobre o momento do diagnóstico.
"Eu tenho queda de cabelo, e perda de memória, além da dificuldade de falar algumas palavras. Mas, eu consegui amamentar quando ele saiu do hospital."
José Bernardo nasceu no dia 8 de maio de 2020. No momento, a mãe estava desacordada. "Antes de chegar à sala pra ser internada, eu apaguei. Tive parada respiratória, aí eles me entubaram. Como eu estava com seis meses de gestação e ainda não respondia aos medicamentos, meu quadro não melhorava, eles resolveram fazer a cesárea para retirar o bebê. Com ele estava tudo normal. Ele chegou a fazer exames, e não contraiu o novo coronavírus. Maryane acordou cinco dias depois do nascimento do filho, que precisou ser encaminhado à incubadora.
A mãe de José Bernardo e do mais velho, Pablo Pietro, foi liberada no dia 22 de maio de 2020. "Eu tive sequelas de passar tanto tempo no hospital. Hoje em dia meu fôlego não é o mesmo. Eu tenho queda de cabelo, e perda de memória, além da dificuldade de falar algumas palavras. Mas, eu consegui amamentar quando ele saiu do hospital."
O menino não ficou com sequelas, e permanece recebendo acompanhamento de um médico. "Ele esta bem como um bebê que nasceu de seis meses ele esta evoluindo muito bem", acrescentou a mãe.
O pós parto de Masé foi difícil pelo isolamento por não ter recebido visitas. "Eu senti falta. É verdade que a gente fica mais despreocupada, mais à vontade, mas preferia ter recebido visitas, se fosse em um outro momento."
Fernanda diz observar vantagem ao ter mais tempo para dedicar atenção ao bebê. "Nesse primeiro mês após o nascimento, são muitos desafios, muita coisa nova pra quem é mãe pela primeira vez."
Já Maryane precisou esperar 74 dias até poder pegar José Bernardo nos braços.
Série de reportagens que marca um ano da pandemia de Covid-19 no Brasil