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Cultura na pandemia: primeira a parar, última a voltar
Reportagem Seriada

Cultura na pandemia: primeira a parar, última a voltar

Fragilizada em termos de políticas públicas há anos, cultura teve desafios acentuados com a chegada da pandemia e espera apoio para uma retomada futura plena
Episódio 10

Cultura na pandemia: primeira a parar, última a voltar

Fragilizada em termos de políticas públicas há anos, cultura teve desafios acentuados com a chegada da pandemia e espera apoio para uma retomada futura plena
Episódio 10
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"Parece clichê dizer isso, mas, de fato, fomos os primeiros a parar as atividades e seremos os últimos a retornar com a segurança necessária". A frase de Edceu Barboza, artista e produtor do Grupo Ninho de Teatro, da região do Cariri cearense, sintetiza os desafios iniciais e ainda presentes impostos pela pandemia de Covid-19 ao setor artístico-cultural.

A necessária série de restrições às atividades de aglomeração impactaram diretamente o fazer artístico, que é essencialmente coletivo, seja em termos de criação ou de audiência. As adaptações tiveram que ser rápidas, como narram os membros do K'Os Coletivo, dedicado à palhaçaria.

"A gente estava com agenda bem lotada de circulações, temporadas. Tudo foi cancelado", rememora a atriz, palhaça e produtora cultural Aline Campêlo. "Ficamos um período sem saber o que ia ser, na nossa cabeça era 'daqui um mês vai resolver'. Depois, fomos entendendo o que estava acontecendo. Em poucos dias, apresentações anteriormente agendadas passaram para on-line", recupera a artista.

"A gente descobriu algo que nos possibilitou manter contatos com palhaços de outros estados, o que antes demandava agenda, condições financeiras", avança Aldrey Rocha, também do K'Os. Hoje, a adequação ao formato virtual já é uma demanda absorvida pelo setor. "Passado esse um ano de pandemia, isolamento e impossibilidades de recepção presencial, temos entendido que o que era adaptação já chega como linguagem, mais uma via de trabalhar", compreende Edceu.

Fortaleza, Ce, Brasil 17.02.21- Na foto: Aline Campelo e e Aldrey Rocha membros do coletivo KOs (caos coletivo) (Foto: Fco Fontenele/O POVO)(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Fortaleza, Ce, Brasil 17.02.21- Na foto: Aline Campelo e e Aldrey Rocha membros do coletivo KOs (caos coletivo) (Foto: Fco Fontenele/O POVO)

Mais crucial do que a readequação inicial, porém, foi a necessidade de manutenção e sobrevivência. Sem poder circular, a classe trabalhadora da cultura se viu sem renda. Naquele momento, diversas campanhas de apoio foram promovidas, como destaca o produtor musical Dalwton Moura.

"Foi essencial. O campo da cultura cuidando do campo da cultura, diversas redes. Foi muito importante a sociedade civil se articular para se ajudar e fazer interlocução com o poder público para construir e demandar ações", destaca. Os movimentos de solidariedade foram da doação de cestas básicas à articulação por políticas.

 

No Cariri, o Grupo Ninho, em parceria com o coletivo Atuantes em Cena, já tinha planejado lançar uma campanha de financiamento coletivo para apoio à Casa Ninho, espaço co-gerido pelos grupos. O local, como ressalta Edceu, "não tem apoio de modo direto e contínuo do poder público em nenhuma das esferas" e o contexto da pandemia levou ao adiantamento da campanha. "Tivemos uma adesão muito positiva, que foi o que nos permitiu manter o espaço sem atividades", destaca.

Além do apoio mútuo da classe, as ações de entidades e do poder público foram cruciais. O ápice foi a Lei Aldir Blanc, criada a partir de articulação entre o setor, sociedade e membros do legislativo. Investindo em assistência e fomento, a lei foi executada por municípios e estados, que dividiram as responsabilidades. A partir dela, espaços culturais puderam contar com subsídios para manutenção, trabalhadoras tiveram auxílio emergencial e dezenas de editais foram lançados, estimulando a economia.

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As experiências de execução da Lei Aldir Blanc apontam a importância do apoio público para a retomada futura do setor e ressaltam caminhos necessários para as gestões. "Na operacionalização da lei, recursos voltados à arte e cultura vêm chegando em agentes e produtores que, a nível de estado, nunca se tinha conseguido alcançar. É interessante pensar isso como uma real política de descentralização", reconhece Edceu.

Dalwton reforça a avaliação lembrando que o número de inscrições de auxílio emergencial, operado pela Secretaria da Cultura do Estado, foi menor do que o previsto, enquanto no âmbito de fomento da Secretaria da Cultura de Fortaleza a decisão por contemplar todos os inscritos habilitados - distribuindo para mais proponentes um valor menor - foi positiva.

"Precisamos reavaliar a política de editais. Um edital mais inclusivo deixa claro o quanto temos de demanda, de gente que faz cultura e precisa desse apoio. O da Secultfor deixa claro quantas pessoas precisam ser mapeadas e incluídas nesse processo. Já o auxílio da da Secult deixa a lição de que é preciso chegar nas pessoas que não conseguem se inscrever", observa Dalwton.

O produtor ressalta, ainda, a necessidade de movimentação também da iniciativa privada. "A pandemia deixou evidentes as precariedades do campo cultural que não se referem somente ao poder público, mas também demandam reflexão e ação da iniciativa privada. Não é um desafio exclusivo do poder público", avança.

"O cenário é incerto. Vai levar uns anos para a 'normalidade' e os fluxos cotidianos voltarem com segurança. Penso que é um futuro que vai ter que continuar atento à reunião de pessoas. O futuro é de cuidado", prevê Edceu. Um esboço possível do porvir foi experimentado a partir de setembro de 2020, quando a situação da pandemia esteve menos crítica no Estado e atividades reabriram.

Na cultura, este retorno foi trôpego. "Ele se deu de modo muito tímido porque é complexo pensar, ainda que dentro dos protocolos, a junção de pessoas num espaço fechado. Há um princípio de responsabilidade coletiva e optamos, naquele momento, por não reabrir atividades externas", conta Edceu.

A posição foi a mesma do K'Os Coletivo. "A gente não chegou a retomar as atividades presenciais como antes - acho que ninguém chegou", arrisca Aldrey. O grupo, conta, não reabriu atividades com público, mas participou pontualmente de festivais que tiveram apresentações presenciais.


As experiências provaram a impossibilidade de uma reabertura de fato por conta de um entrave específico: os custos. "Os eventos seguiram à risca os protocolos, fizemos testes de covid-19 antes. Vimos toda essa demanda para fazer apresentações e que não teríamos condições de fazê-las na nossa sede", aponta o artista.

O cenário é de desafios acentuados, repita-se, mas não novos. "Agora, mais do que nunca, a gente percebeu a necessidade da arte para reelaboração de cidadanias e construção das subjetividades", destaca Edceu. "Historicamente falando, o artista passa por isso não é de agora. Mas nós estamos aqui hoje", identifica Aldrey. "E se a gente está, é porque conseguimos ultrapassar barreiras que são impostas. Essa é a magia da arte", finaliza.

 

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