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Leitura do mundo: texto que Paulo Freire escreveu para O POVO há 25 anos
Reportagem Seriada

Leitura do mundo: texto que Paulo Freire escreveu para O POVO há 25 anos

Em texto originalmente escrito para o caderno Sábado, em 13 de abril de 1996, e reproduzido no Vida & Arte em abril do ano seguinte, Paulo Freire fala sobre as desigualdades sociais e defende que a realidade e a sociedade podem ser modificadas
Episódio 4

Leitura do mundo: texto que Paulo Freire escreveu para O POVO há 25 anos

Em texto originalmente escrito para o caderno Sábado, em 13 de abril de 1996, e reproduzido no Vida & Arte em abril do ano seguinte, Paulo Freire fala sobre as desigualdades sociais e defende que a realidade e a sociedade podem ser modificadas
Episódio 4
Tipo Opinião Por

 

 

Tive, recentemente, em Olinda, numa manhã como só os trópicos conhecem, entre chuvosa e ensolarada, uma conversa, que diria exemplar, com um jovem educador popular que, a cada instante, a cada palavra, a cada reflexão, revelava a coerência com que vive sua opção democrática e popular.

Paulo Freire em Angicos, no Rio Grande do Norte (RN), 30 anos depois, recebe homenagem na escola José Rufino, em 1993(Foto: Acervo Paulo Freire)
Foto: Acervo Paulo Freire Paulo Freire em Angicos, no Rio Grande do Norte (RN), 30 anos depois, recebe homenagem na escola José Rufino, em 1993

Caminhávamos Danilson Pinto e eu, com alma aberta para o mundo, curiosos, receptivos, pelas trilhas de uma favela onde cedo se aprende que só a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida.

Tropeçando na dor humana, nós nos perguntávamos em torno de um sem número de problemas: Que fazer, enquanto educadores, trabalhando num contexto assim? Há mesmo o que fazer? Como fazer, o que fazer?

Paramos no meio de um pontilhão estreito que possibilita a travessia da favela para uma parte menos maltratada do bairro popular. Olhávamos de cima um braço de rio poluído, sem vida, cuja lama empapa os mocambos nela quase mergulhados. "Mais além dos mocambos - me disse Denilson - há algo pior: um grande terreno onde se faz o depósito do lixo público. Os moradores de toda esta redondeza 'pesquisam' no lixo o que comer, o que vestir, o que os mantenha vivos".

Foi desse horrendo aterro que há dois anos uma família retirou de lixo hospitalar pedaços de seio amputado, com que preparou seu almoço domingueiro. A imprensa noticiou o fato, que citei horrorizado e pleno de justa raiva no meu último livro.

 

"O discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio imposto, de que resulta a imobilidade dos silenciados, o discurso do elogio da adaptação tomada como fato ou sina, é um discurso negador da humanização" Paulo Freire, educador

 

É possível que a notícia tenha provocado em pragmáticos neo-liberais sua reação habitual e fatalista: "É triste, mas o que fazer? A realidade é mesmo esta." A realidade, porém, não é inexoravelmente esta. Está sendo esta, como poderia ser outra.

Eu me sentiria mais do que triste, desolado, e sem achar sentido para minha presença no mundo, se me convencessem de que a existência humana se dá no domínio da determinação. Domínio em que dificilmente se poderia falar de opções, de decisão, de liberdade, de ética.

Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação, tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo.

Meu direito à raiva pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo pré-dado, mas um desafio, um problema.

O discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio imposto, de que resulta a imobilidade dos silenciados, o discurso do elogio da adaptação tomada como fato ou sina, é um discurso negador da humanização de cuja responsabilidade não podemos nos eximir.

Adaptação a situações negadoras da humanização só pode ser aceita com tática na luta política. Dou a impressão de que aceito hoje a condição de silenciado para bem lutar, quando puder, contra a negação de mim mesmo. Esta questão, a legitimidade da raiva contra a docilidade fatalista diante da negação das gentes, foi um tema que esteve implícito em toda a nossa conversa naquela manhã.

 

"Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela." Paulo Freire, educador, ao refletir sobre a possibilidade de mudar a realidade

 

O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente, me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito.

No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela.

É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda - seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o matemático, ou o pensador da educação.

Há perguntas a ser feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheiado de nós e nós dele.

Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?

É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil, mas é possível, que vamos programar nossa ação político-pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos comprometemos é de alfabetização de adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de evangelização, se de formação de mão-de-obra técnica.

Não se trata obviamente de impor à população espoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se de, simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos, desafiar a grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta.

Não posso aceitar como tática do bom combate a política do quanto pior melhor, mas não posso aceitar, impassível, a política assistencialista que, anestesiando a consciência oprimida, prorroga, "sine die", a necessária mudança da sociedade.

Partindo de que a experiência da miséria é uma violência e não a expressão da preguiça popular ou fruto da mestiçagem ou da vontade punitivista de Deus, violência contra qual devemos lutar, tenho, enquanto educador, de ir me tornando cada vez mais competente, sem o que a luta perderá a eficácia necessária a que me referi.

 

"Como educador, preciso ir "lendo" cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do contexto maior de que o seu é parte." Paulo Freire

 

Preciso ter e renovar saberes específicos em cujo campo minha curiosidade se inquieta e minha prática se baseia. Como alfabetizar sem conhecimentos precisos sobre a aquisição da linguagem, sobre linguagem e ideologia, sobre técnicas e métodos do ensino da leitura e da escrita?

Como educador, preciso ir "lendo" cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do contexto maior de que o seu é parte.

O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira nenhuma nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber. Sua explicação do mundo de que faz parte e a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo "leitura de mundo" que precede sempre a "leitura da palavra".

Um dos equívocos funestos de militantes políticos de prática messianicamente autoritária foi sempre desconhecer totalmente a compreensão do mundo dos grupos populares. Vendo-se como portadores da verdade salvadora, sua tarefa irrecusável não é propô-la, mas impô-la aos grupos populares.

É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação. Daí a culpa que sentem eles, em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com as classes dominantes por se acharem nesta ou naquela situação desvantajosa.

É exemplar a resposta que recebi de mulher sofrida, em São Francisco, Califórnia, numa instituição católica de assistência aos pobres. Falava, com dificuldade do problema que a afligia e eu, quase sem ter o que dizer, afirmei indagando: "você é norte-americana, não é?"

"Não, sou pobre", respondeu como se estivesse pedindo desculpas à "norte-americanidade" por seu insucesso da vida.

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Pessoas assim fazem parte das legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua dor na perversidade do sistema social, econômico, político em que vivem, mas a sua incompetência. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam o poder do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante.

Alfabetização, por exemplo, numa área de miséria só ganha sentido na dimensão humana se, com ela, se realiza uma espécie de que vá resultando a extrojeção da culpa indevida. A isto corresponde a "expulsão" do opressor de "dentro" do oprimido, enquanto "sombra" invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade.

Saliente-se contudo que, não obstante a relevância ética e política do esforço conscientizador que acabo de sublinhar não se pode parar nele, deixando relegado para um plano secundário o ensino da escrita e da leitura da palavra.

Não podemos, numa perspectiva democrática, transformar uma classe de alfabetização num espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão de ser dos fatos, nem tampouco num "comício libertador".

A tarefa fundamental dos Danilson, entre quem me situo, é experimentar com intensidade a dialética entre "a leitura do mundo" e a "leitura da palavra".

"Programados para aprender" e impossibilitados de viver sem a referência de um amanhã, onde quer que haja mulheres e homens há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender.

Baixe a página original.

 

 

  • EDIÇÃO Érico Firmo e Regina Ribeiro
  • REPORTAGEM Gabriela Custódio e Marcela Tosi
  • RECURSOS DIGITAIS Wanderson Trindade
  • IMAGENS Acervo Paulo Freire
  • PESQUISA Data. Doc O POVO
  • COLAGENS DE CAPA Letícia Bernardo
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