"Um dia passou um carro com um alto falante avisando sobre aulas de alfabetização. Pedi à mamãe e ao meu pai e eles aceitaram”, lembra Eneide Araújo. A menina com então seis anos de idade acompanhava os pais nas aulas e recorda do caminho feito todas as noites pelas ruas da pequena Angicos. O município a 170 km de Natal foi o primeiro local onde Paulo Freire aplicou em grandes proporções seu método de alfabetização.
O homem magro e de barbas compridas ia ocasionalmente à cidade potiguar; as lembranças vêm com a presença das educadoras voluntárias. “Elas entravam nas nossas casas para conversar e iam aprendendo o que a gente sabia, o que a gente falava. Foi assim que pegaram essas chamadas palavras geradoras para ensinar as letras, sílabas e palavras”, descreve a atual professora aposentada da rede pública. “Elas ensinavam as pessoas a se valorizarem e a fazer valer seu papel de cidadão.”
(Foto: Acervo Paulo Freire)Angicos, 1963 - Experiência de alfabetização com o método Paulo Freire. No plano da frente estão Maria Eneide, com seis anos, e sua mãe, Francisca Andrade de Araújo; atrás delas de cabeça baixa está o pai de Eneide, Severino de Araújo
(Foto: Acervo Paulo Freire)Angicos, 1963 - Educando com filha no colo, fazendo a identificação das sílabas
(Foto: Acervo Paulo Freire)Angicos, 1963 - Alfabetizando Antônio Ferreira fala ao então presidente João Goulart
O projeto ensinou cerca de 300 adultos a ler e escrever. Após 40 horas de aulas, a cidade tinha três centenas de novos cidadãos. Na época, o voto era proibido aos iletrados. Por causa dos resultados eficazes, o então presidente João Goulart — que realizava as Reformas de Base — aprovou a multiplicação da experiência no Plano Nacional de Alfabetização, que não chegou a sair do papel.
"Sempre vi a alfabetização de adultos como um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador."
A ditadura cívico-militar enxergou na filosofia freiriana um risco de revolta e extinguiu o Plano antes mesmo de seu lançamento. Conforme aponta o historiador Sergio Haddad, na biografia "O educador: um perfil de Paulo Freire", para o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima “o educador estaria implicado em subversão nos meios intelectuais e de alfabetização”. Como argumento para um mandado de prisão de Freire, Lima dizia que ”seu método não tinha qualquer originalidade e a velocidade era inferior a de outros modelos; a experiência de Angicos era por si só um atestado de subversão na medida em que mais politizava do que alfabetizava”.
Em Angicos, um silêncio durou quase 30 anos. Estava informalmente proibido falar e lembrar das 40 horas que haviam mudado a cidade. Todos queimaram ou esconderam os livros utilizados nas aulas de 1963. “Quando entrei na escola depois, a professora não gostava muito de mim não, porque eu queria saber mais”, relata Eneide. “Mas Angicos cresceu, mudou. Todos aprenderam e puderam ter uma vida melhor — meu pai se tornou pedreiro e minha mãe fez aula de corte e costura. O mundo se tornou maior”, avalia.
Desde então, o método que preza pela autonomia e pela relação dos aprendizados com a realidade vivida é reinventando em diversos contextos. O POVO conversou com educadores e pessoas que foram alfabetizadas no Ceará a partir dos ensinamentos freirianos.
Quando se tornou aluno do Programa Educando para Desenvolver, desenvolvido pelo Banco do Nordeste (BNB) durante seis meses em 2006, Vicente dos Reis enfrentou desconfiança. “Quando comecei a trabalhar aqui, como servente de pedreiro, sabia só assinar meu nome. Aí surgiu o convite para o projeto, o que uniu à minha vontade de aprender mais”, comenta. “Minha mãe dizia que papagaio velho não aprende a falar, mas hoje vejo que não é assim.” Segundo Vicente, a forma de ensino e a presença de momentos para conversar e desenvolver a autoestima tornaram a aprendizagem mais fácil.
(Foto: Aurelio Alves)Carla Colares, coordenadora geral do SAC do Banco do Nordeste. Ela foi professora no Projeto Educando para Desenvolver, usando o método Paulo Freire
(Foto: Aurelio Alves)Raimundo Vicente dos Reis Filho, eletricista. Participou de projeto de educação do Banco do Nordeste no bairro Passaré, que usou o método Paulo Freire
(Foto: Aurelio Alves)Francisco de Assis Moraes Sobrinho, aposentado do Banco do Nordeste, foi coordenador do projeto Educando para Desenvolver, que aplicou o método Paulo Freire no Passaré
(Foto: Aurelio Alves)Raimundo Vicente dos Reis Filho, eletricista. Participou de projeto de educação do Banco do Nordeste no bairro Passaré, que usou o método Paulo Freire
(Foto: Aurelio Alves)FORTALEZA, CE, BRASIL, 21-07.2021: Maria de Fatima da Silva, 66 anos, Serviços Gerais. Especial Paulo Freire, fomos ao Banco do Nordeste no Bairro Passare conhecer algumas pessoas que foram alfabetizadas com o metodo de Paulo Freire. em epoca de COVID-19. (Foto:Aurelio Alves/ Jornal O POVO)
Aos 49 anos, o eletricista está concluindo o Ensino Médio em um colégio que oferece Educação de Jovens e Adultos (EJA). “O projeto foi como um empurrão para mim. Saí lendo tudo por aí, nas paradas de ônibus, em todo canto”. Na mesma turma de Vicente, estava Maria de Fátima da Silva, auxiliar de serviços gerais. “Tinha meus 50 anos e não sabia ler nem escrever. Não tive a oportunidade de ir à escola de jeito nenhum, porque chegava tarde e cansada do trabalho”, menciona.
“Depois do expediente, todo dia a gente tinha o curso e aprendi muito. Hoje sei mexer em tudo, até no Whatsapp e no Facebook. Agora eu ensino minha irmã, mais velha que eu”, conta orgulhosa. “A gente está estudando juntas no EJA 2”, acrescenta se referindo ao curso equivalente aos anos finais do Ensino Fundamental. Como Vicente e Dona Fatinha, cerca de 800 trabalhadores, clientes do Crediamigo e moradores do entorno do BNB foram alfabetizados no Ceará e nas regiões metropolitanas dos demais estados nordestinos.
Como elucida o coordenador do programa, Francisco de Assis Moraes Sobrinho, foram utilizadas as pedagogias de Paulo Freire e de Jean Piaget, bem como princípios da educação biocêntrica. “Foram quatro turmas piloto e depois mais 38 turmas. Era um despertar para as pessoas, de que elas podem fazer mais. Hoje em dia o Instituto Nordeste Cidadania (Inec), que foi nosso parceiro, segue aplicando o método que desenvolvemos”, aponta. Além de possibilitar o aprimoramento da leitura e da escrita, são dadas noções básicas de matemática; orientações sobre cidadania, ética e meio ambiente; e vivências para fortalecimento da autoestima e da identidade.
Outro projeto desenvolvido em Fortaleza aconteceu na comunidade Vila Garibaldi, na Serrinha, a partir de uma ação integrada entre o programa de extensão Viva a Palavra, da Universidade Estadual do Ceará (Uece); a Associação de Moradores da Serrinha e o Instituto Irmã Giuliana Galli. Realizado em 2018, o projeto surgiu da percepção de que as mães de crianças participantes de atividades de contação de histórias eram analfabetas e não podiam contar as histórias em casa.
Gerlene Rodrigues, Gerlândia de Sousa e Andreia da Silva são três delas. Irmãs e comadre, elas encorajaram uma à outra para destinar uma hora às noites de segunda, quarta e sexta-feira ao aprendizado. “Começamos a ler de pouquinho em pouquinho; um dia aprendia uma coisa, noutro dia, outra”, aponta Gerlândia. “A vida ficou mais fácil. A gente vai tirar um documento e bota o nome da gente todinho. Aqui e acolá dá uma preguiça de escrever, mas a gente se lembra das professoras e faz.”
Para Andreia, os momentos de acolhida, dinâmicas e jogos estiveram entre os mais marcantes. “Mas eu gostava mesmo era quando a professora escrevia na lousa e a gente ia escrever e soletrar as palavras, formar frases”, enfatiza. “No dia a dia eu não leio muito porque não tenho tempo, mas de manhãzinha eu leio minhas leituras da Igreja. É muito bom, uma emoção grande.”
(Foto: Aurelio Alves)Francisca Gerlene de Sousa, 37 anos, catadora de materiais recicláveis; Andréa Fernandes da Silva, 40 anos, auxiliar do lar; e Gerlândia de Sousa Rodrigues, 39 anos, merendeira, irmã de Gerlene. Pessoas alfabetizadas com o método Paulo Freire na comunidade Garibaldi, no bairro da Serrinha
(Foto: Aurelio Alves)Francisca Gerlene de Sousa, 37 anos, catadora de materiais recicláveis, participou de projeto de educação com o método Paulo Freire na comunidade Garibaldi, no bairro Serrinha
(Foto: Aurelio Alves)Maria das Dores Alves Souza, professora na Universidade Estadual do Ceará (Uece), educadora popular e coordenadora do projeto Alfabetização e Cidadania, que aplicou o método Paulo Freire na Comunidade Garibaldi, no bairro Serrinha
“Nas aulas também fizemos maquete de como era a comunidade e como queríamos que fosse. Aí tanto a gente aprendeu com as professoras como acho que elas aprenderam com a gente, porque ficaram sabendo da história do bairro”, constata Andreia. “Na época não tinha esgoto encanado e tinha um lixão grande aqui em frente. A gente começou a fazer mais parte da comunidade e conseguimos melhorar”, indica como conquista.
“Agora quando se quer ir para um canto, a gente consegue ler qual o ônibus. E quando leva os meninos ao médico, a gente sabe ler a receita”, completa Gerlene. Atualmente, o trio segue os estudos do Ensino Fundamental por meio do EJA.
Assim como para quem aprendeu na Capital, a continuidade da educação é desejo estimulado entre aqueles que estiveram em projetos realizados por diversas iniciativas no meio rural. Um dos locais onde o pensamento de Paulo Freire segue aplicado são as escolas do campo e as iniciativas que levam a educação para além das capitais. No Ceará, muito desse trabalho é feito pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Em Canindé, a 118 km de Fortaleza, o assentamento Jacurutu esteve entre os primeiros na experiência de alfabetização de jovens e adultos. Sebastião Félix da Silva é um dos que participaram das aulas e conta que, na época com 42 anos, aprendeu a escrever o próprio nome e “o abecê todinho, de ponta a ponta”. “Aprendi um bocado de coisinha, porque eu não sabia de nada. Aí guardo comigo e, na hora da caneta, desenrolo.”
Os encontros aconteceram sempre ao final da tarde, em diferentes momentos entre 1996 e meados dos anos 2000, ensinando Língua Portuguesa e Matemática e discutindo sobre o dia a dia. “Toda escola que tinha aqui, a gente corria a estudar”, conta Sebastião, lembrando da presença da esposa, Maria de Fátima, nas turmas junto dele. Para eles, um “mundo escuro” mudou . “É você chegar num canto e saber o que está escrito. Ir num banco e não depender de botar o dedo. Assinar alguma coisa e saber o que é que está assinando”, afirma o aposentado.
"Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda."
A cerca de 40 km está o assentamento Vida Nova, onde também vivem idosos que tiveram aulas baseadas no método de Paulo Freire. “Eu já tinha uma leiturinha, mas aí aumentou; estava tirando já três operações de conta. Foi muito bom”, conta Sebastião Gomes, de 88 anos e morador do local. Sebastião tinha 74 anos quando, em 2007, topou o desafio da alfabetização junto da educadora voluntária Aline Sousa.
“Achava que seria impossível e na prática a gente viu que funciona. Com dez dias de aulas, de só 45 minutos, já sabiam muitas palavras e conseguiam escrever”, afirma Aline. Ao todo, 38 adultos foram alfabetizados na localidade. “Foi uma conquista. Erradicamos o analfabetismo aqui no assentamento.”
Dona Fátima, Seu Félix e Seu Sebastião juntam-se aos cerca de 20 mil trabalhadores dos campos e das periferias que foram letrados no Estado por meio de iniciativas do MST. Atualmente, o movimento tem como objetivo pós-pandemia “zerar o analfabetismo em todos os assentamentos no Ceará”. “Estamos elaborando uma jornada de solidariedade em que quem sabe ler ensina a quem não sabe”, diz Maria de Jesus dos Santos, integrante da coordenação estadual do setor de educação do movimento. “Uma ação como essa tem um impacto, mas precisa de continuidade. Então seguimos lutando por políticas públicas. Queremos que, na próxima década, a menor escolaridade nos assentamentos de reforma agrária no Ceará seja de Ensino Médio.”
Por que o pensador brasileiro mais polêmico no País é o mais citado no Exterior. O que é o pensamento de Paulo Freire? Qual o impacto na vida de pessoas que foram alfabetizadas pelo controverso método