Logo O POVO+
O que pensava Paulo Freire, e por que era questionado não só por conservadores
Reportagem Seriada

O que pensava Paulo Freire, e por que era questionado não só por conservadores

Mais do que ferramentas para ensinar a ler e escrever, Paulo Freire pensou um sistema de educação baseado no diálogo e na valorização do conhecimento popular. Para especialistas, o pensamento do educador pernambucano segue atual, embora tenha polêmicas em vários aspectos, para além da política
Episódio 2

O que pensava Paulo Freire, e por que era questionado não só por conservadores

Mais do que ferramentas para ensinar a ler e escrever, Paulo Freire pensou um sistema de educação baseado no diálogo e na valorização do conhecimento popular. Para especialistas, o pensamento do educador pernambucano segue atual, embora tenha polêmicas em vários aspectos, para além da política
Episódio 2
Tipo Notícia Por

 

 

Paulo Freire não criou somente um método de alfabetizar jovens e adultos. A proposta para o aprendizado da leitura e da escrita era uma parte, um momento, de uma "teoria do conhecimento", como pontuou em uma entrevista publicada na edição nº 462 do jornal O Pasquim, em dezembro de 1978. Mas ele não diminuía o papel do "metodólogo". "Ele achava isso de uma importância fantástica, mas queria ir além. Ele foi realmente um filósofo da Educação", diz Lutgardes Costa Freire, filho caçula de Paulo.

"Paulo Freire pensou um sistema de educação que começaria na educação infantil e terminaria em uma universidade pública popular. O projeto era mais grandioso, mas, com o golpe militar, ele teve de ser expulso. Mas há estudos mostrando todo o trabalho de bases de um sistema Paulo Freire de educação", explica Margarete Sampaio, professora do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

O pensamento dele como um todo passa pela valorização do conhecimento de cada pessoa, e para ele o "saber de experiência feito", aquele que se adquire dia após dia, tinha tanta importância quanto o saber acadêmico. Esse aspecto está presente na ideia de educação libertadora.

"Se eu for discutir com os pescadores de Redonda, em Icapuí, o que eles vão me ensinar de construção de embarcação, de pesca de lagosta... eu não tenho noção. E aquele conhecimento não é importante?", questiona a professora, que é membro da Cátedra Paulo Freire da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Paulo Freire presente no 1º Seminário Nacional de Alfabetização de São Tomé e Príncipe, África, em 1976(Foto: Acervo Paulo Freire)
Foto: Acervo Paulo Freire Paulo Freire presente no 1º Seminário Nacional de Alfabetização de São Tomé e Príncipe, África, em 1976

A professora acrescenta que Paulo Freire é reconhecido, internacionalmente, como "o divisor de águas", por inaugurar uma Pedagogia Crítica. "Ele trazer, para dentro da educação, essa possibilidade de refletir sobre as condições de vida e existência e desejar transformá-las, eu diria que é o diferencial", complementa.

Criar condições para que as pessoas se expressem e, de fato, ouvi-las, na opinião do professor Leunam Gomes, causa uma "revolução", pois mexe com a autoestima dos educandos. "Uma coisa é você estar querendo dizer algo e ninguém escutar. Outra é alguém criar oportunidade para você dizer aquilo que pensa. Isso muda tudo. A sua visão de si, a sua visão do outro, a sua visão do mundo. Você vê que o outro tem valor, que você tem valor", afirma.

Gomes teve oportunidade de atuar como secretário de educação em municípios cearenses e, com isso, desenvolver iniciativas inspiradas em Paulo Freire. Uma dessas cidades foi Croatá, onde ele foi o primeiro gestor da pasta, em 1989, após a emancipação do município. A primeira atitude, na gestão, foi realizar um seminário com representantes de diferentes segmentos da população para entender os anseios das pessoas.

"Isso era o espírito de Paulo Freire, a participação das pessoas em alguma coisa que era delas", aponta. Uma das decisões tomadas a partir desse diálogo foi adaptar o calendário escolar ao calendário agrícola, conta. Por sugestão da própria comunidade, as aulas começavam em maio.

"Os próprios alunos, na sala de aula, eram divididos em equipes. Uma (equipe) de organização, uma de comunicação, uma de recreação, uma de avaliação e uma de estudos. Isso proporcionava oportunidade de participação do aluno", relembra ainda o professor. Além de Croatá, Leunam Gomes foi secretário de educação em Poranga e em Guaraciaba do Norte.

Curso de capacitação para a experiência de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte (RN), em 1963(Foto: Acervo Paulo Freire)
Foto: Acervo Paulo Freire Curso de capacitação para a experiência de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte (RN), em 1963

Na dimensão pedagógica, Margarete Sampaio aponta que, no pensamento de Paulo Freire, o diálogo é o caminho, "como princípio, como prática, como exigência democrática". Sérgio Haddad, autor de "O educador: um perfil de Paulo Freire" e doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP), também destaca a importância da escuta e do diálogo na produção do pernambucano.

Esses aspectos podem impactar na construção de uma sociedade que preste mais atenção aos problemas dos menos favorecidos. "(Freire diz que) você ganha consciência discutindo seus problemas, em diálogo com outras pessoas, para poder buscar soluções. E essas soluções só vão se realizar a partir dos oprimidos", explica Haddad.

"Ninguém liberta o outro, essa ideia dele é muito clara. As pessoas se libertam em comunhão, mas a partir dos seus problemas", complementa. Paulo Freire defendia, portanto, que a realidade não é algo imutável. Pelo contrário, afirmava que a realidade não "é", ela "está sendo".

"Eu me sentiria mais do que triste, desolado, e sem achar sentido para minha presença no mundo, se me convencessem de que a existência humana se dá no domínio da determinação. Domínio em que dificilmente se poderia falar de opções, de decisão, de liberdade, de ética", escreveu Freire no texto "Leitura do mundo", publicado no O POVO em 1996.

Paulo Freire recebendo o título de cidadão de Angicos, no Rio Grande do Norte (RN), em 1993(Foto: Acervo Paulo Freire)
Foto: Acervo Paulo Freire Paulo Freire recebendo o título de cidadão de Angicos, no Rio Grande do Norte (RN), em 1993

 

 

Limitações e discordâncias

Como método de alfabetização, Cristiane Holanda, doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professora da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Sobral, avalia que a proposta de Freire é "uma base inicial" que precisaria de aprofundamento posterior. Ela abre as portas para o mundo da leitura e da escrita, "mas o caminhar ainda precisa acontecer".

Porém, a professora vê os ensinamentos do educador para além desse aspecto metodológico. "Eu vejo o método Paulo Freire para além de um método de alfabetização e vejo Paulo Freire para além de um método. É um novo paradigma, é uma nova lente, um jeito de olhar a vida. É muito pequeno e pobre reduzir Paulo Freire a um método de alfabetização", declara.

Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 1989(Foto: Acervo Paulo Freire)
Foto: Acervo Paulo Freire Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 1989

O educador pernambucano, porém, nunca foi uma unanimidade, e os questionamentos ao pensamento dele não são motivados apenas por visões conservadoras. A valorização do saber popular recebeu críticas entre seus pares, grandes nomes da academia. Alguns apontam, por exemplo, que ele negaria ou negligenciaria o ensino dos conteúdos escolares.

"E ele dizia: 'Não se trata disso. Eu parto do princípio de que o avião sai do chão para decolar. O chão é a realidade, para saber o que esses sujeitos trazem com eles, mas o avião não fica no chão. Há acrescentamentos a serem feitos. Não de forma transmissiva, mas de forma construída, na dialogicidade, na problematização da realidade'", explica Margarete Sampaio.

Outra discordância que existe é o fato de Paulo Freire falar em "amorosidade" na educação de jovens e adultos. "(Argumentam que) é uma relação técnica, o objetivo é que os alunos aprendam, eu gostando ou não dos alunos e eles, de mim. Mas, para Paulo Freire, tem um sentido", continua a professora.

Alguns estudiosos dizem, ainda, que a proposta de Paulo Freire não levaria os alunos a desenvolverem bom nível de competitividade. "Bom, aí é posicionamento pedagógico", responde Margarete.

"Paulo Freire estudou muito Jean Piaget e Anísio Teixeira, Escola Nova. Ele bebeu naquela fonte que veio pensar que o sujeito não é uma tábula rasa, não é uma folha em branco quando nasce, mas também ele não é aquela lógica de 'filho de peixinho, peixinho é', que quem nasceu para ser inteligente, inteligente é. Ele aposta em uma perspectiva relacional entre os sujeitos da aprendizagem", complementa.

 

 

Paulo Freire na atualidade

 

Há alguns pontos na produção do educador que, segundo explica João Figueiredo, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (Faced/UFC), são decorrentes do tempo em que ele viveu. A forma como ele percebia os animais, com olhar "ainda muito antropocêntrico", é um exemplo. Para o professor, com as discussões sobre senciência animal, hoje Freire "certamente" teria outra leitura sobre o assunto.

"Ele fazia uma separação entre o diálogo entre humanos e o diálogo com animais. Hoje, eu mesmo, quando tenho trabalhado com a teoria de Freire, trabalho em uma perspectiva de que ela inclua essas questões. Quando falamos na relação entre ser humano e mundo, entendemos que o mundo também tem sua competência, sua senciência, sua capacidade de interagir conosco e trazer lições para a gente. E tudo isso Freire não teve tempo de fazer", explica Figueiredo.

Evento em que Paulo Freire anuncia saída da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 1991(Foto: Marcio Novais / Memorial da Educação Municipal da cidade de São Paulo)
Foto: Marcio Novais / Memorial da Educação Municipal da cidade de São Paulo Evento em que Paulo Freire anuncia saída da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 1991

Quando estava nos Estados Unidos, ainda no período do exílio, Freire recebeu críticas de feministas americanas, que apontaram machismo na linguagem utilizada em "Pedagogia do oprimido". Nessa ocasião, conta o professor, o pernambucano teria reconhecido a questão e chegado a propor mudanças à editora. "Paulo Freire é um homem do seu tempo. Como homem do seu tempo, ele se equivocou, mas é curioso que ele estava sempre disposto a aprender", aponta.

Por outro lado, especialistas apontam a atualidade no pensamento de Freire. Lutgardes Costa Freire, que é professor e responsável pelo Acervo Paulo Freire, relembra que o pai costumava dizer que as pessoas não deveriam segui-lo, mas reinventá-lo. "Enquanto houver, no mundo, opressores e oprimidos, a pedagogia do oprimido vai ser atual. Esse livro foi escrito em 1968, e as pessoas continuam lendo, continuam refletindo sobre o que ele diz", afirma.

De volta a Angicos, no Rio Grande do Norte (RN), 30 anos após a experiência de alfabetização, Paulo Freire foi homenageado na escola José Rufino, em 1993(Foto: Acervo Paulo Freire)
Foto: Acervo Paulo Freire De volta a Angicos, no Rio Grande do Norte (RN), 30 anos após a experiência de alfabetização, Paulo Freire foi homenageado na escola José Rufino, em 1993

Com a Covid-19, Sérgio Haddad cita uma preocupação "bem freireana" em relação a como se está encarando os impactos da pandemia para crianças e jovens.

"Hoje, o que você vê nas notícias de jornal, entre os educadores, é uma discussão sobre o quanto os alunos perderam nessa pandemia. Quase que tentando dar uma métrica, fazer uma autópsia, sobre como essas crianças, esses jovens, se atrasaram; o quanto o País vai andar para trás etc. Mas ninguém fala em ouvir esses jovens, ouvir essas crianças", afirma.

Para ele, esse diagnóstico deve, sim, ser feito, mas deve contemplar também os processos de aprendizagem que vêm ocorrendo. Ele diz que não se pode esquecer o que houve durante a pandemia. No lugar disso, deve-se trabalhar a partir das experiências vividas.

"Quais foram as vivências que eles tiveram com os pais, com os amigos? Como foi a experiência de trabalhar com o celular, com o computador? Tudo isso é freireano. (...) Acho que o Paulo me ajuda muito a pensar a sociedade de hoje e o papel que a Educação vem tendo."

 

 

Movimento de Cultura Popular e de Educação de Base

Paulo Freire aplicou na Educação a metodologia do círculo de cultura, que surgiu com a criação do Movimento de Cultura Popular (MCP) por intelectuais do Recife — entre eles, o educador. No MCP, as pessoas reuniam-se para debater os problemas da própria realidade, que são chamados por Paulo Freire de "situações limite". Essas pessoas, independentemente da idade ou da formação, debatiam os problemas do lugar que viviam. "As situações que impedem o ser humano de ser mais, de viver a vida abundantemente humana", explica a professora Margarete Sampaio.

Vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Movimento de Educação de Base (MEB) foi fundado em 21 de março de 1961. Atualmente, o movimento está presente nos estados do Amazonas, Roraima, Ceará, Piauí, Maranhão e Distrito Federal, além das regiões norte e nordeste de Minas Gerais. Utilizando os princípios de Paulo Freire, o MEB realiza capacitação de agentes de educação de base, operacionalizada por meio da rede de dioceses e paróquias, e trabalha na linha da educação popular em ações de mobilização social, de alfabetização de jovens e adultos e de educação de base.

 

 

Faça o download de Pedagogia do Oprimido, uma das mais importantes obras de Paulo Freire, em versão manuscrita por ele. Clique aqui para ter acesso.

CRÉDITOS

  • EDIÇÃO Érico Firmo e Regina Ribeiro
  • REPORTAGEM Gabriela Custódio e Marcela Tosi
  • RECURSOS DIGITAIS Wanderson Trindade
  • IMAGENS Acervo Paulo Freire
  • PESQUISA Data. Doc O POVO
  • COLAGENS DE CAPA Letícia Bernardo
O que você achou desse conteúdo?