23 de setembro de 1974. Pelé faria 34 anos dentro de um mês e, no dia anterior, marcava o último gol dele em partidas oficiais pelo Santos Futebol Clube. Os destaques do 2º Caderno do O POVO, porém, eram outros. “Sumov x Coelce e Internacional x CREP Abrem Torneio de F. de Salão”, com quatro fotos de estrelas do então “futebol de salão” — o hoje futsal. “Milhares no Náutico Vêem o 50º Brasileiro de Tênis”, com as demais três fotos de capa.
A única menção ao Rei Pelé na edição não é ao mineiro, mas o alagoano. “Na vitória por 1x0 do CSA sobre o CRB, ontem à tarde, no Rei Pelé, com renda de 214,300,00 (recorde em Alagoas), ficou comprovado mais uma vez que em decisão o CRB não ganha do seu tradicional rival” (O POVO, 23/9/1974, página 14). Eram 6 páginas esportivas nesta edição, mas o dom da premonição não avisou que o gol lá na Vila Belmiro era de despedida.
No dia seguinte, porém, se avisava: “Será Domingo Último Jogo do Rei Pelé”. A partida prenunciada, porém, era a de domingo, 29, contra o Corinthians, não a do dia 2 contra a Ponte Preta. Pelé citava compromissos particulares, apesar de garantir conseguir ainda jogar por dois anos — jogaria ainda três. Havia, então, segundo O POVO, proposta do Real Madrid, prontamente rejeitada. O interesse do New York Cosmos ainda não dobrava a esquina.
A informação sobre a despedida seria corrigida no dia 28, já que no dia 2 haveria o derradeiro jogo.
Era 1º de outubro quando Solon Campos, via sucursal do “Jornal do Brasil”, avisava do fim — que em meses virou hiato. “Pelé Apenas um Homem de Negócios”. “O punho erguido, o soco no ar; o riso e o choro; a alegria do gol. Para Pelé, tudo isto está acabando” (O POVO, 1º/10/1974, página 11), reza a bela crônica.
Os planos de Pelé, porém, já indicavam reviravolta. “No dia 23 de outubro completo 34 anos. Pedi autorização ao Santos para continuar treinando no clube. Preciso manter a forma. Vou precisar dele fora do campo”, encerra a mesma matéria, que resume em meia página o que alguns precisam de 20 páginas para dizer. No dia seguinte, a preliminar aposentadoria ganhava outra minibiografia no O POVO, também na página 11.
Na Capa do O POVO após a derradeira apresentação de Pelé como profissional do Santos, o destaque esportivo era o Tiradentes derrubando a invencibilidade do Fortaleza. Dentro, a homenagem era mais condizente. “Pelé se despede: Fim do gênio e artilheiro”, em matéria em parceria com o Departamento de Pesquisas do O POVO.
O material resgata o primeiro gol — o primeiro jogo — do “pérola negra”, “deus dos estádios”, “rei”. E vai para os 22 minutos de partida, quando “Pelé (...) correu até o centro do gramado, ajoelhou-se, deu uma volta completa sobre si mesmo e depois de tirar a famosa camisa Nº 10 iniciou a volta olimpica em torno do campo” (O POVO, 3/10/1974, página 13). “Estou muito emocionado, não posso dizer nada”, desconversava o craque. Na súmula do jogo histórico, sai Pelé, entra Mazinho
Era 2 de maio de 1975 quando a especulação chegou à imprensa cearense. “Pensei muito e não vou aceitar a proposta do New York Cosmos, para jogar nos Estados Unidos”. A declaração teria sido dada nos vestiários do Santos, onde “mantinha a forma”. A proposta seria de US$ 5 milhões. Acabou saindo por US$ 9 milhões, segundo a imprensa da época. Corrigido pela inflação, a cifra salta para atuais US$ 43,48 milhões. Convertida, a bolada vai a norte de R$ 242 milhões para três anos de contrato.
Quase um mês depois, dia 27, o “não” se convertera em “talvez”. No 7 de junho já era um “sim”, e contrato firmado. Três dias depois e Pelé desembarcava em “Nova Iorque”, junto à então esposa Rose e mais dez assessores. “Quero que me compreendam, porque quem está indo para Nova Iorque é em 80% o empresário Edson Arantes do Nascimento e em apenas 20% o jogador Pelé” (O POVO, 9/6/1975, página 6)
Criticadíssimo, Pelé foi defendido no O POVO pela jornalista Izabel Pinheiro, cujo artigo “Pelé, o Rei do Dólar” (14/6/1975), citava tudo que o craque teve de abdicar pelo sentimento do povo brasileiro. Era véspera da estreia. Aposentado há seis meses, Pelé não deixava o noticiário.
A estreia, com gol no empate em 2 a 2 com o Dallas Tornado, mereceu duas matérias no O POVO, provando que os 6 mil quilômetros de distância não seriam impeditivos para Pelé seguir dominando o noticiário esportivo brasileiro.
Era 30 de setembro de 1977 quando o fim, mais este fim, da carreira de Pelé era anunciado. Sem a pompa da capa, era na página 28 que O POVO relatava a “‘Programação de rei’ na despedida de Pelé”.
Sérgio Mendes e o Brasil 77 cantando o hino nacional, Robert Flack entoando o “Star-Spangled Banner”, diplomatas em campo, mais de 100 personalidades convidadas, 120 dançarinos, transmissão para 40 países de um New York Cosmos x Santos no Giants Stadium, em New York.
“Vinte e seis convidados de Pelé já se encontram em Nova Iorque para o jogo de sua despedida (...). Além dos pais de Pelé, Seu Dondinho e Dona Celeste, vieram seu irmão, Zoca (ex-aspirante do Santos); o tio Jorge; Waldemar de Brito, seu descobridor; os campeões mundiais Belini e Mauro. Seu Guilherme e Dona Idalina, pais de Rose, mulher de Pelé; Lima, seu cunhado, ex-jogador do Santos e da Seleção Brasileira; Xisto, chefe do seu escritório no Brasil; Humberto Farias, do Bahia; Alfredo Saad, de Monte Líbano do Rio, sócio de Pelé; o banqueiro Newton Rique; e o Prefeito Odilon Resende, de Três Corações, cidade mineira onde nasceu Pelé há 37 anos. Ontem, chegaram os dois filhos de Pelé, Edinho e Kelly Cristina, junto com Vera, irmão de Rose e mulher de Lima. Os convidados estão hospedados no luxuoso Drake Hotel de Nova Iorque” (O POVO, 30/9/1977, página 28). Uma recepção de rei.
No dia seguinte, O POVO homenageia. “Rei morto, rei posto, com Pelé não funciona”, versa a Capa, avisando que é a primeira vez que o ditado não cola. Reportagem especial da Sport Press, coluna de Alan Neto, tudo sobre “o maior futebolista de todos os tempos”.
Dentro, “Pelé abdica ao trono”; “Todos são unânimes: o maior que o mundo já viu”; “Até a bola chora com a despedida de Pelé”.
No estilo próprio, vivo até hoje, Alan Neto diz receber cartões postais anuais de Pelé, com endereço e telefone — os dois últimos, de New York. Avisa que vai testar o DDI “e lhe dar um alô bem cearense, bem cabeça chata”. Lembra do furo nacional de que o Rei não jogaria a Copa do 1974. Lembra do dia em que “ele e Pepe entraram em campo envergando a gloriosa jaqueta tricolor” — em 1959, quando ele, Alan, “não havia deixado minha Umarizeiras para ganhar a cidade grande”. Derrete-se de inconfidências na coluna “Confidencial”.
Por fim, sentencia, tal qual a Primeira Página do O POVO. “Encerra-se a carreira do jogador mundialmente famoso e insubstituível e que, ao deixar as quatro linhas, não tem a quem transfira a coroa, porque não há ninguém igual a ele”.
A “apoteose” do fim da “missão no futebol de Pelé foi destaque de Capa e em matéria no dia 2 de outubro de 1977. Dondinho ao lado de Muhammad Ali, Pelé abraçado por Jeff Carter — filho do então presidente dos EUA, Jimmy Carter —, o Rei consolado por Carlos Alberto e um adeus com dizeres de “Amor, Amor”
Em 1978 e 1979, ele entraria em campo para partidas pelo Fluminense-RJ e pelo Flamengo-RJ. Em 1980, defenderia o Cosmos pela última vez, em amistoso. Em 1983, 1984, 1987 e até 1990 — aos 50 anos —, chegou a calçar chuteiras em jogos festivos. Mais na posteridade do que naquele então.
Se a arte é o trunfo do homem ante o tempo, Pelé é prova viva e de 80 anos de que o esporte é caminho para os artistas alcançarem a imortalidade. O capítulo final da majestade do Rei fica longe de ser uma retomada para Edson Arantes do Nascimento, amaldiçoado pela própria grandeza a viver sempre na sombra de si. Foi um reinvento da jornada de um homem assombrado por si e pelos próprios pecados — a prova de que temos algo de humano mesmo naquilo que parece inequivocamente divino.
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