Pepe, padrinho do primeiro casamento de Edson, companheiro de ataque histórico e ex-técnico de Pelé, costuma dizer que tem um amigo E.T.
Em 1969, plena Guerra Fria, os olhos do mundo se voltavam à corrida espacial. Em 19 de novembro daquele ano, o extraterrestre do futebol marcou aquele que ficou famoso como milésimo gol dele — o primeiro a comemorar o feito. Um dia antes, o astronauta Pete Conrad se tornava apenas o terceiro na história a pisar na lua. É mais fácil chegar ao satélite do que fazer mil gols.
Assim como o feito norte-americano, o gol mil não simplesmente brotou no Maracanã. Antes do pênalti quase defendido pelo argentino Edgardo Andrada naquele Santos 2x1 Vasco da Gama, o tema já era debatido.
Era ainda dia 14 de novembro. Faltavam dois gols e o Santos enfrentaria o Botafogo-PB, em João Pessoa. Na Primeira Página, O POVO garantia que “Pelé não quer moleza”. “Comentando as declarações da imprensa de Salvador de que o Bahia facilitaria o jôgo contra o Santos, para que Pelé marcasse os dois últimos gols da série de mil, na peleja de domingo, o famoso atacante declarou que ‘caso isso seja verdade, abandonarei o campo e jamais jogarei em Salvador” (O POVO, 14/11/1969, página 1). Naquele mesmo dia, o Belo sofreu o gol 999.
Graças a Jurandir Salvador, goleiro do Bahia na época, o gol mil não sairia no confronto e Pelé voltaria a jogar na capital baiana. Como O POVO não tinha edições de fim de semana, a expectativa não esteve impressa em tais páginas.
No dia 17, a frustração passou a largo e o Rei é citado apenas por ter visitado Centro de Juventude no Recife — tentou doar dinheiro, mas a multidão era tanta que acabou entregando ao “Vereador Zezito Magalhães Neto, irmão do prefeito da cidade”. Zezito (1923–2002), na verdade, era irmão do então prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães (1927–2007) — popularmente conhecido como ACM, ex-governador da Bahia, presidente do Senado e avô do atual prefeito da capital baiana.
A data sonhada para o gol mil era o 19 de novembro. Na Capa, O POVO dividia a celebração “Tio Sam caminha de nôvo na lua”, com a expectativa “Sairá hoje o gol mil de Pelé?” “O Maracanã, palco de gloriosas jornadas do futebol brasileiro, poderá assistir hoje à marcação do mais sensacional gol de todos os tempos” (O POVO, 19/11/1969, página 1).
Pelé anunciava o desejo de marcar contra o “time dele no Rio” e ganhar uma segunda placa no Maracanã.
Sexta-feira, 20 de novembro de 1969. “Maracanã em delírio viu o Rei chorar”, grita a Primeira Página do O POVO. Em foto, não o choro, mas o riso do craque erguendo a bola, além do histórico lance da mesma rolando nas redes guardadas por Andrada.
Além da capa, o feito do Pelé mereceu três páginas de cobertura. Na 9 e 10, o jornalista Adeotado Júnior trazia “dados estatísticos dos mil gols” — jornalismo de dados padrão 1969.
A reportagem traz quadro com as competições em que Pelé marcou (com números cedidos pela Confederação Brasileira de Desportos), remonta o primeiro gol da carreira do Rei e até cita o dia, cinco anos antes, em que o meia/atacante marcou oito tentos no 11 a 0 sobre o Botafogo de Ribeirão Preto — superando marca histórica de Araken Patusca, em 1927. A minibiografia do craque começa em Bauru, passa pela ida ao Santos em 1956, os dois títulos mundiais, o casamento com Rose e os títulos inumeráveis.
“O gol mais sensacional da gloriosa carreira esportiva de Pelé ocorreu da seguinte maneira: aos 33 minutos da fase final, Pelé investiu perigosamente contra a meta vascaína e, quando se preparava para desferir o tiro fatal, foi derrubado pelo quarto-zagueiro Fernando. O juiz Manuel Amaro marcou o pênalte incontinenti. Todo o público do Maracanã gritou em côro: ‘Pelé, Pelé, Pelé’. Encarregado da cobrança, Pelé ficou de costas para a bola aguardando a autorização do juiz. O arqueiro Andrada foi até a marca penal e disse a Pelé: ‘Não fique nervoso, Pelé. Se ela tiver de entrar, entra. Boa sorte!’ Autorizado pelo árbitro, o ‘Rei’ partiu para a bola, deu a célebre ‘paradinha’ e deslocou o goleiro argentino. Ao celebrar o seu milésimo gol, Pelé recebeu a maior consagração de sua vida, sendo aplaudido de pé pelas 70 mil pessoas presentes ao ‘maior estádio do mundo’”. (O POVO, 20/11/1969, página 9)
Lembro como se fosse hoje. O alagoano Manoel Amaro Lima apitou e apontou para a marca penal. Os jogadores do Vasco, indignados com a marcação, cercaram o árbitro. Pelé ficou de longe, parecendo que não ia bater. A galera explodiu: “Pelé! Pelé! Pelé!” E não parou mais.
Para delírio geral, Pelé pegou a bola com as mãos e caminhou com ela até a marca da cal. Colocou-a no local, ajeitou-a com carinho, e deu uns cinco passos para trás. O Maracanã em silêncio. Pelé correu e bateu no canto esquerdo de Andrada. O goleiro tocou nela, que acabou entrando.
Acompanhado de sua corte, toda vestida de branco, o craque correu para dentro da meta, pegou a bola que se aninhara dentro das redes, sapecou-lhe um beijo, ergueu-a com as duas mãos. Era seu milésimo gol. Os repórteres invadiram o campo, colocando o microfone na sua boca.
Na arquibancada, lágrimas nos olhos; eu e um grupo de amigos, eletrizados pela energia do momento, nos abraçamos e saudamos o rei do futebol mundial.
O Santos dos anos 1960 foi o melhor time da sua época. Uma porção de “crioulos e mulatos” — como se dizia na época — vestidos de branco, encantando o mundo.
Vi Pelé jogar outra vez no Maracanã. Estava na geral. Um temporal tomou conta do Rio. O Santos meteu três no Flamengo no primeiro tempo. Corri para ver a volta dos jogadores para o túnel. Incrível! O uniforme branco impecável. Na altura da chuteira um pouco de lama na meia. Debaixo de chuva e não se enlameavam. Eram uns bailarinos.
* Sérgio Rêdes, ou Serginho Amizade, como era conhecido, é ex-jogador e treinador de futebol. Esteve em campo no Ceará 2x0 Santos em 23 de setembro de 1973 e também dedicou parte da carreira a admirar o talento do Rei Pelé.
Em seis episódios ,conheça a saga do garoto negro que se transformou no maior jogador da história do futebol brasileiro, admirado em todo o mundo.