Num contexto de fragilidade de partidos políticos, como é o caso do Ceará, a organização política se dá, primeiramente, a partir do que denominamos por grupo político, que é uma estrutura informal de poder, formando uma rede ampla de relações políticas envolvendo diferentes níveis de poder e cuja coesão não está atrelada a filiação partidária, mas a identificação (pessoal) com um chefe político.
O prestígio conquistado sobre um eleitorado capaz de garantir votos para si e/ou para aliados, a habilidade para tecer acordos e alianças, a capacidade de coordenar interesses divergentes, visando à coesão do grupo credencia o político à condição de chefe de um grupo político. Este é detentor de capital político para atuar como interlocutor nos três níveis de poder, possibilitando aglutinar seguidores, consolidando, assim, uma rede suficientemente abrangente de lealdades e compromissos políticos recíprocos.
Além de prefeitos, as redes contam com vereadores, líderes comunitários (ramificações para baixo), parlamentares, assessores e agentes que ocupam cargos na máquina pública estadual/federal (ramificações para cima).
A história cearense nos fornece bons exemplos de grupos políticos cujos chefes consolidaram domínio hegemônico, a exemplo do grupo liderado por Tasso Jereissati, cujo domínio se entendeu de 1986 a 2006 e o chefiado pelos irmãos Ciro e Cid Ferreira Gomes, que abarcou os anos de 2007 até a eleição de 2022.
A partir dessas definições, entendemos grupo político de núcleo familiar como uma categoria derivada da noção de grupo político. Diferente de grupo político (caso do Tassismo), cujo núcleo decisório é centrado em uma persona política mas as ramificações compreendem diferentes atores de variadas origens; o grupo familiar (ferreiragomista) fundamenta-se, primordialmente, a partir de laços de parentesco.
O núcleo decisório assim como o eixo de ramificação têm como pontos nodais membros pertencentes à família. Ou seja, ainda que sua rede incorpore lideranças exógenas, as principais funções são preferencialmente distribuídas a partir de critérios de parentesco.
Olhando para o mapa do Ceará acima, é possível identificar grupos familiares com bases eleitorais bem definidas. Em alguns casos, com domínio hegemônico e ampla ramificação em diferentes arenas de poder. É o caso dos Aguiar.
Chefe do segundo maior grupo político do Ceará, Domingos Filho, é herdeiro de família que há décadas participa da política no sertão dos Inhamuns. Seu pai, Domingos Gomes de Aguiar, já foi prefeito de Tauá, hoje administrado por sua esposa, Patrícia Aguiar (PSD).
Gabriella Aguiar (PSD), sua filha, estreou na política sendo eleita deputada estadual em 2022. E seu filho, Domingos Neto (PSD), foi reeleito deputado federal. Domingos Filho já foi vice-governador do Ceará (2011-2014) e hoje preside o PSD no estado, legenda que administra 29 das 184 prefeituras cearenses.
Os Aguiar são o tipo ideal de grupo político de núcleo familiar que possui base eleitoral bem definida, uma rede política ampla e que não se limita a um único partido, mas cujo eixo central é constituído por membros com relação de parentesco com o chefe político.
Importante destacar que cada um desses personagens cumpre função específica para a conservação/ampliação das bases eleitorais, elementos indispensáveis para a manutenção do domínio do grupo. Assim, se por um lado, Patrícia atua garantindo contato direto com a base municipal, o atendimento às bases demanda mediadores na arena estadual (Gabriella Aguiar) e federal (Domingos Neto) que trabalhem assegurando transferências de recursos aos aliadas.
Hoje deputado federal, Eunício Oliveira, que já foi presidente do Senado, construiu carreira política no (P)MDB, partido de seu padrinho político e sogro, o ex-deputado federal Paes de Andrade. Seu berço político é Lavras da Mangabeira, que já foi administrada pelo sobrinho Ildsser Alencar (MDB). Outro sobrinho, Danniel Oliveira (MDB), ocupa uma das cadeiras da Alece. Sob a liderança de Eunício, o MDB conquistou 17 prefeituras em 2020 e conseguiu emplacar aliados no governo Elmano de Freitas (PT).
A família Gonçalves, a partir da liderança de Acilon Gonçalves vem consolidando influência na Região da Grande Fortaleza. Em 2020, sob seu comando, o PL conquistou 13 prefeituras. Dentre elas a de Eusébio, onde foi reconduzido a prefeitura, e a de Aquiraz, onde seu filho, Bruno Gonçalves, foi eleito prefeito. Em 2022, sua esposa, Marta Gonçalves (PL), foi eleita deputada estadual.
Embora ainda não configurem grupos políticos de núcleo familiar, há casos em que a disputa para outras esferas de poder motiva o apadrinhamento de parentes (estreantes na política) como estratégia tanto para a expansão das bases eleitorais como para a manutenção do espaço anteriormente ocupado pelo político.
Caso de Capitão Wagner (UB) que concorreu ao governo do Ceará em 2022, mas lançou sua esposa, Dayany do Capitão (UB), a deputada federal. O próprio nome de urna usado por ela, que foi eleita com parte das bases de Wagner, é sintomático do recurso de associação ao padrinho político. Caso semelhante de André Fernandes (PL), que concorreu a deputado federal mas lançou seu pai, Pr. Alcides Fernandes (PL), para uma vaga na Alece.
Descendentes de tradicional família de políticos de Sobral, Ciro Gomes foi o primeiro de seus irmãos a seguir as trilhas iniciadas pelo tio-bisavô e bisavô, os irmãos Vicente Cesário e José Ferreira Gomes, que foram chefes do executivo sobralense em fins do século XIX. Na década de 1980, seu pai, José Euclides Ferreira Gomes, que era prefeito de Sobral, o incentivou a concorrer a Alece.
Em 1982, Ciro estreou na política partidária e foi eleito deputado estadual pelo PDS. Habilidoso e incômodo crítico do governo, se aproximou de Tasso Jereissati. Em 1986 foi reeleito deputado estadual (pelo PMDB) e tonou-se líder do governo na Alece. Eleito prefeito de Fortaleza em 1988, se cacifou a concorrer ao governo estadual sendo eleito em 1990, pelo PSDB. O desempenho de sua gestão o projetou nacionalmente e oportunizou a ocupar ministérios e concorrer à presidência em anos seguintes. Enquanto isso, os demais irmãos, Cid e Ivo Gomes, atuavam em nível subnacional, ora ocupando cargos na máquina pública ora funções eletivas na Alece e prefeitura de Sobral.
Até meados da década de 1990, a família ganhou projeção na esteira do grupo tassista. O que é quebrado com a eleição de Cid Gomes (PPS) ao governo cearense em 2006. Naquele momento, da fragilidade do tassismo, os Ferreira Gomes se fortalecem. A aliança estabelecida com prefeitos e deputados, num esforço de construção de base eleitoral própria, e o alinhamento ao governo federal, por intermédio de Ciro, permitiram a consolidação de novo grupo (familiar) no estado.
Reeleito em 2010, Cid firmou-se chefe político e elegeu seu sucessor, Camilo Santana (PT) em 2014. Camilo foi reconduzido ao cargo em 2018 ainda como quadro importante do ferreiragomismo, e Cid eleito senador, consolidando a hegemonia do grupo no Ceará.
O ferreiragomista caracteriza-se pela heterogeneidade de seus quadros, compondo um grande arco de aliados de diferentes matizes ideológicas (e com força suficiente para incluir outros chefes políticos, como Domingos Filho e Eunício Oliveira) e cuja composição pode variar a cada eleição. Ainda que houvesse o compartilhamento de funções e espaços de poder entre os aliados, as principais decisões eram tomadas pelo núcleo familiar, que dividia tarefas. Assim, Ciro Gomes era o responsável pela interlocução com a esfera federal e Cid cuidava das questões domésticas, dos acordos e alianças a nível estadual. O irmão caçula Ivo Gomes, está a frente da prefeitura de Sobral e cumpre o papel de aliado local, mantendo a conexão direta com as bases.
Essa configuração se desorganizou em 2022, quando o núcleo do grupo se desentendeu quanto ao nome que sucederia Camilo no governo estadual. Se por um lado, Ciro defendia a indicação de Roberto Cláudio (PDT) para o governo do estado, ou seja, um palanque puramente pedetista, Cid entendia a necessidade de manter a aliança PT-PDT, a partir da indicação de Izolda Cela. Desde então, o destino do grupo ferreiragomista tornou-se incerto ainda que Cid Gomes mantenha influência sobre parte do grupo que resistiu, o que inclui os irmãos Ivo, Lúcio e Lia Gomes (atualmente deputada estadual pelo PDT).
Clique nos municípios em verde para conferir as famílias políticas deles. Os municípios com verde mais escuro têm mais famílias politicamente envolvidas:
São vários os repertórios mobilizados por agentes políticos e que oportunizam o estabelecimento de uma base eleitoral. Esses repertórios variam caso a caso, mas podem incluir vínculos pessoais e de compadrio, laços corporativos, pertencimento a comunidades étnicas ou religiosas, afinidades programáticas etc. O acúmulo de capital político, derivado de vitórias eleitorais sucessivas, colaboram para a construção de uma “reputação local”, que pode ser “transferida” via “herança política”.
Nesse caso, a “herança política” é mais um ativo acionado nas eleições. Ou seja, o sobrenome funciona como um agregador na medida em que potencializa a transferência de votos e amplia as chances de sucesso nas urnas. Por isso, a existência de famílias de políticos não é um fenômeno raro nem próprio do Nordeste.
No Ceará, famílias que se profissionalizaram na política como os Ferreira Gomes, os Aguiar, os Oliveira, os Santana, os Gonçalves entre outros, foram decisivos nos arranjos que definiram os resultados dos últimos pleitos eleitorais municipal e estadual. A despeito da marca desses sobrenomes na nossa história e de sua força delimitando bases eleitorais muito consolidadas em regiões específicas do estado, o fenômeno de grupos políticos de núcleo familiar não está atrelado exclusivamente a práticas tradicionais. Esses grupos, ainda que incorporem diferentes práticas e pluralize seu repertório, não representam aquilo que a Ciência Política define por oligarquia.
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Quais as forças mais influentes na formação do Ceará político e o papel que desempenham