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Porto do Mucuripe: Fiscalização vulnerável pode favorecer o tráfico de drogas
Reportagem Seriada

Porto do Mucuripe: Fiscalização vulnerável pode favorecer o tráfico de drogas

Neste terceiro episódio do especial Porto de Fortaleza em crise, O POVO mostra que, de acordo com dados da Polícia Federal, em Brasília, mais de três toneladas de cocaína foram apreendidas nos portos do Mucuripe e do Pecém de 2017 a 2022
Episódio 3

Porto do Mucuripe: Fiscalização vulnerável pode favorecer o tráfico de drogas

Neste terceiro episódio do especial Porto de Fortaleza em crise, O POVO mostra que, de acordo com dados da Polícia Federal, em Brasília, mais de três toneladas de cocaína foram apreendidas nos portos do Mucuripe e do Pecém de 2017 a 2022
Episódio 3
Tipo Notícia Por

 
 
 

Traficantes internacionais de cocaína enxergariam no Porto do Mucuripe, em Fortaleza, uma rota estratégica para a remessa de drogas destinadas à Europa e outros lugares do mundo.

Não por menos, o Ceará ocupa o terceiro lugar no ranking entre seis estados do Nordeste onde a Polícia Federal mais apreendeu carregamentos do pó branco da coca em terminais marítimos da região.

O levantamento das apreensões foi obtido junto à Polícia Federal (PF), em Brasília (DF), e cruzado com informações do Banco de Dados do O POVO e revela que, de 2017 a agosto deste ano, foram interceptados pelo menos 3.655,6 quilos da droga entre os portos do Mucuripe e do Pecém (em São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Fortaleza).

Na informação enviada pela PF, o Ceará aparece na rubrica “Porto de Fortaleza”. Questionada, a assessoria de imprensa da instituição policial respondeu que os números se referiam aos terminais marítimos localizados na Região Metropolitana da Capital. No quadro não há individualização da quantidade de droga apreendida em cada um dos dois portos.

Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda
Foto: Divulgação Receita Federal
Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda

Há um agravante para o Porto do Mucuripe. De 2019 para cá, segundo O POVO vem mostrando na presente série de reportagens, a segurança no terminal marítimo em Fortaleza foi comprometida e ainda apresenta vulnerabilidades.

Por causa de uma pane administrativa e, principalmente, depois de ataques cibernéticos. O primeiro e mais danoso executado pelo grupo “Tirana Hacker Team”, da Romênia.

Os cibercriminosos invadiram os servidores de dados da Companhia Docas do Ceará (CDC), empresa do Governo Federal que administra o Porto do Mucuripe, e derrubaram todos os sistemas, as comunicações e acervos importantes para o funcionamento do equipamento que recebe navios nacionais e estrangeiros.

Para devolver os dados, os hackers cobraram pagamento de “resgate” em criptomoedas.

Fora os prejuízos gerados pelo ciberataque, os procedimentos de segurança no interior do porto entraram mais ainda na berlinda depois do sumiço ou furto de 12 contêineres das instalações do terminal.

Ocorrência registrada em 22 de setembro do ano passado e que ainda é objeto de um inquérito na Polícia Federal, conforme O POVO já mostrou no primeiro episódio da série.

 

 

Coincidências entre a vulnerabilidade e as drogas

As circunstâncias de vulnerabilidade do Porto do Mucuripe coincidem com uma série de apreensões de cocaína realizadas por Polícia e Receita Federal.

Em 2019, os traficantes deixaram de embarcar 930 quilos pela Região Metropolitana de Fortaleza. No ano seguinte foram 673 kg. Em 2021, a apreensão subiu para 832,6 kg.

Foto aérea do Cais do Porto. Companhia Docas do Ceará no bairro Mucuripe
Foto: FCO FONTENELE
Foto aérea do Cais do Porto. Companhia Docas do Ceará no bairro Mucuripe

Em agosto deste ano, a Polícia Federal monitorou uma “movimentação suspeita” que se dava no Porto do Mucuripe. Seis traficantes acabaram presos com 1,2 tonelada de cocaína.

Numa coletiva para a imprensa, o delegado federal Robson Alexandrino disse que chamou atenção “um grande movimento de carga” em um navio no terminal em Fortaleza.

O barco, que transportava cocaína debaixo de toneladas de gelo, zarpou do Mucuripe sem autorização e sem rastreador. Um equipamento obrigatório para quem navega em alto mar.

Como os traficantes embarcam cocaína nos portos brasileiros

Clique nos ícones para obter mais dados fornecidos pela Polícia Federal e Receita Federal do Brasil

 

A Polícia Federal repassou a informação para uma patrulha da Marinha militar brasileira, que interceptou a embarcação a 600 km da costa de Fortaleza.

O carregamento da droga, avaliado em mais de R$ 1 bilhão pelas autoridades policiais, iria abastecer o mercado criminoso na Europa, segundo a PF. No flagrante, ocorrido no último dia 16, foram presos quatro paranaenses, um paulista e um carioca.

As informações sobre a rota dos traficantes de cocaína pelo porto do Mucuripe até chegar ao Ceará surgiram, também, em decorrência de uma cooperação internacional com a Drug Enforcement Agency (DEA) e com a National Crime Agency (NCA). Instituições policiais dos Estados Unidos e do Reino Unido.

Apreensões de cocaína (kg) nos portos do Nordeste de 2017 a 2022

Veja as apreensões ao longo dos anos. Clique nos botões à esquerda para alternar entre ranking e quantidade apreendida. Clique em repita para rever o gráfico em movimento

 

O porto de Salvador (BA) lidera o ranking das rotas marítimas do Nordeste mais visadas por traficantes internacionais de drogas, no qual o Ceará aparece em 3º lugar em quantidade de apreensões de cocaína em Mucuripe e Pecém.

De 2017 a 2022, foram interceptados 13.614,6 quilos do pó. O porto de Natal (RN) está na segunda colocação com 9.363,5 quilos. Os dados se referem a parte de carregamentos que os órgãos de fiscalização conseguiram detectar, seja depois de delações, no acaso ou após longas investigações. 

 

 



 

Operações em Santos repercutem nos portos do Nordeste

 

O porto de Santos, em São Paulo, que tem a maior movimentação de cargas do Brasil, é o mais visado como rota por traficantes internacionais de cocaína.

De acordo com dados enviados ao O POVO pela direção geral da Polícia Federal (PF), em Brasília, em quase cinco anos — de 2017 a 2022 — foram apreendidos 112.162,6 quilos da droga ali.

Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal  (Foto: Divulgação Receita Federal)
Foto: Divulgação Receita Federal Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal

Na lista nacional dos 15 portos onde a PF mais interceptou carregamentos do entorpecente, o “porto de Fortaleza” (Mucuripe/Pecém) figura na 8ª posição.

De acordo com o relatório global do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC), publicado em julho deste ano, o terminal de Santos está entre os quatros portos no continente americano que mais se destacam no comércio marítimo global da droga, junto com Buenaventura e Cartagena, na Colômbia, e com Guayaquil, no Equador.

O documento informa também, mas não nomeia os estados, que as máfias internacionais da cocaína passaram a usar com maior frequência portos das regiões Norte e Nordeste do Brasil.

Uma alternativa para o escoamento da droga, principalmente para a Europa, depois do endurecimento da fiscalização em Santos.

Notadamente, a partir de 2015/2016, após investigações detectarem conexões entre o terminal santista e o porto de Kaliningrado, localizado quase na fronteira da Rússia com a Polônia. No terminal da cidade russa, em agosto de 2015, foram apreendidos 170 kg de cocaína. Droga remetida do porto de Santos.

Ranking de apreensão de cocaína por porto no Brasil de 2017 a 2022

Saiba a colocação dos portos na comparação da quantidade de drogas apreendidas no período. Passe o mouse por cima da barra para ver mais detalhes

 

Em matéria publicada no O POVO, o pesquisador Thiago Moreira de Souza Rodrigues, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos de Defesa e Segurança da Universidade Federal Fluminense (PPGEST/UFF), reforça uma informação geográfica para explicar o interesse dos traficantes por essas rotas no Nordeste.

“O Brasil tem uma projeção atlântica em direção à África e à Europa. Os portos do Norte e principalmente do Nordeste — Recife, Maceió, Fortaleza — têm uma projeção em relação à Europa. O Nordeste é a parte da América do Sul mais próxima da Europa e da África”, reafirma o pesquisador.

Em 2016, a Polícia Federal colocou na rua as operações Brabo e Contentor para combater a ação em Santos e outros portos do Brasil.

Além de Kaliningrado, outros portos europeus entraram na lista das conexões com o Brasil. No total, de 2015 a 2017, segundo uma série de reportagens do O POVO, as apreensões listadas em Santos pela PF somaram 7,6 toneladas de cocaína.

Em 2017, novos portos europeus despontam na investigação casada com autoridades europeias, com apreensões relevantes: Antuérpia/Bélgica, Valência/Espanha, Tilbury/Inglaterra. E novos pontos de saída no Brasil: Itajaí e Itapoá (SC) e Salvador (BA).

Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda
Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda (Foto: Divulgação Receita Federal)

Em 4/9/2017, como O POVO mostrou, a Operação Brabo cumpriu 89 dos 127 mandados de prisão determinados pela justiça de São Paulo. Na operação Contentor, deflagrada em 10 de outubro do mesmo ano, 25 pessoas foram presas e restou, à época, um foragido — o jordaniano Waleed Issa Khmayis.

Waleed Issa Khmayis, de 60 anos, é um conhecido da Justiça no Ceará. Morou na Beira-Mar, em Fortaleza. Ele foi condenado por tentar traficar mais de meia tonelada de cocaína escondida numa carga de arroz. A droga sairia pelo litoral cearense, a partir do porto do Mucuripe, segundo investigações da PF.

Como O POVO publicou, o advogado de Waleed para a Operação Brabo, Edêner Alexandre Breda, considerou “precipitada a decretação (da prisão)”.

Porque, segundo a defesa, “não consta nos autos nenhuma participação de nosso cliente na empreitada criminosa que se anuncia. Mas respeitamos a decisão e vamos trabalhar no Tribunal para tentar reverter essa situação”, disse por telefone, de São Paulo, ao repórter Cláudio Ribeiro.

Segundo dados da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Waleed Issa foi preso, em 20/7/2020, na Turquia, por uso de documentação falsa.

Com base nas investigações da Operação Brabo, o Governo do Brasil pediu a extradição do traficante. A Polícia Federal enxergaria em Waleed um elo de intermediação para negócios do tráfico de cocaína entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e máfias na Itália e Leste Europeu.



 


Ceará é alvo de investigações

 

Em julho deste ano (13/7), o Ceará foi incluído numa grande operação da Polícia Federal (PF) por causa do tráfico de cocaína também tentado pelos portos do Mucuripe e Pecém, terminais localizados na Região Metropolitana de Fortaleza.

Coordenada pela superintendência do Rio Grande do Norte, a Operação Maritimum foi uma ação casada em sete estados. A polícia e a 2ª Vara Federal Criminal potiguares foram às ruas para golpear o esquema de uma organização criminosa especializada no tráfico internacional de drogas e lavagem de dinheiro.

Os alvos eram traficantes e empresários de fachada que atuam nos terminais portuários do Nordeste e Sudeste, principalmente, tendo como bases as regiões de Natal (RN), Salvador (BA) e Baixada Santista (SP), segundo informações da Polícia Federal.

Conforme O POVO informou, mais de 380 agentes de segurança cumpriram 46 mandados de prisão preventiva e 90 ordens de busca e apreensão nas casas ou empresas dos suspeitos.

As investigações, que ganharam força no final de 2021, apontavam para um esquema de tráfico de cocaína esquadrinhado entre portos do Sudeste e Nordeste.

Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda
Foto: Divulgação Receita Federal
Apreensão de 487 quilos de cocaína no porto do Mucuripe, em Fortaleza, por funcionários da Receita Federal, em 2021, com apoio da Polícia Federal. A droga veio do Maranhão e seguiria para o porto de Rotterdam, na Holanda

De acordo com a assessoria de imprensa da Polícia Federal do Rio Grande do Norte, foi identificado um grupo logístico responsável pelo transporte e armazenamento da droga oriunda da fronteira do Brasil com os países produtores e, em seguida, realizada a "contaminação" de contêineres.

O grupo introduzia entorpecentes nas cargas de frutas e outras mercadorias que teriam como destino os portos da Europa.

Segundo uma nota pública da PF, durante o andamento do inquérito policial, foram realizadas apreensões de drogas nos portos de Santos (SP), Salvador (BA), Natal (RN), Fortaleza e Barcarena (PA).

Apreensões de cocaína (kg) em outros portos do Brasil de 2017 a 2022

Veja as apreensões ao longo dos anos. Clique nos botões à esquerda para alternar entre ranking e quantidade apreendida. Clique em repita para rever o gráfico em movimento

 

E, também, interceptação de cargas nos países europeus de destino — Bélgica, França e Países Baixos —, totalizando cerca de 8 toneladas de cocaína apreendidas.

A Polícia Federal também identificou que três dos maiores traficantes em atividade no Brasil eram os destinatários dessa droga no Exterior, um deles preso recentemente na Hungria.

Conforme a PF, foram bloqueados R$ 169,6 milhões nas contas bancárias dos investigados. A Polícia, no entanto, não revelou nomes nem mais detalhes da investigação para não atrapalhar os desdobramentos da apuração.

 

 

 

Porto do Pecém tem dois escâneres para contêineres

 

Em fevereiro deste ano, o Porto do Pecém, localizado na Região Metropolitana de Fortaleza, comprou mais um escâner para inspeção rápida de contêineres.

O terminal portuário, sediado em São Gonçalo do Amarante, dobrou a vigilância, agora, com dois equipamentos para varredura das cargas transportadas dali para o restante do Brasil e para o mundo.

De acordo com Nicolau dos Santos, gerente de Segurança Patrimonial do Porto do Pecém, hoje, cada um dos dois equipamentos em operação é capaz de realizar até 60 inspeções por hora.

Ele explica que a operação de escaneamento é feita sob exclusivo monitoramento da Receita Federal do Brasil, inclusive em contêineres vazios.

O executivo de segurança do porto afirma que no ano passado foram movimentados no Pecém 410.557 TEU´s (ou 244.811 unidades de contêineres de 20 pés).

Um crescimento de 8,7% em comparação a 2020, quando 377.726 TEU´s (228.362 unidades) passaram pelo terminal portuário de São Gonçalo do Amarante.

Veja o que é inspecionado num contêiner

Clique nos dois íncones para saber o que é considerado suspeito e quais são as medidas de inspeção e segurança

 

Os dois escâneres são também barreiras contra as investidas de traficantes internacionais de cocaína. De acordo com a assessoria de imprensa da Polícia Federal do Ceará, de 2019 a 2020, 1.003,4 quilos do pó da coca foram apreendidos no terminal marítimo da Região Metropolitana.

“O Porto do Pecém é certificado internacionalmente pelo Código Internacional para Proteção de Navios e Instalações Portuárias, o ISPS Code. Além disso, cumprimos rigorosamente todas as exigências previstas pela Conportos - Comissão Nacional de Segurança Pública nos Portos, Terminais e Vias Navegáveis”, afirma Nicolau dos Santos.

O terminal do Mucuripe, como O POVO mostrou no primeiro episódio dessa série de reportagens, está com apenas um escâner de contêiner. Equipamento que foi alugado pela Companhia Docas, pois o que pertence ao porto está “quebrado” e inoperante.

 

 

 

Apreensões de cocaína segundo a Polícia Federal do Ceará de 2019 a 2022

 Clique nas datas da esquerda para ver detalhes das apreensões e quantidades do Porto do Pecém e à direita para ver do Porto de Fortaleza

 

 

 

 

Falta de rastreador de contêineres persiste no terminal 

 

O então presidente do Conselho de Administração da Companhia Docas do Ceará (Consad-CDC), Fábio Lavor Teixeira, perguntou durante a reunião do colegiado, em maio deste ano: como estava o andamento para implantação do OCR.

Esta é a sigla em inglês para o equipamento chamado Reconhecimento Óptico de Caracteres, um dos principais no controle e movimentação de cargas dentro da área portuária.

O constrangedor da pergunta foi que se discutia mais uma tentativa de solucionar um problema: O Porto do Mucuripe, em Fortaleza, funcionando sem um de seus principais sensores de segurança de cargas, que perdurava desde outubro de 2019. E ainda continua.

Sem o rastreador de contêineres, a situação seria facilitadora para ilicitudes mais graves. Inclusive para traficantes de drogas.

O porto segue sem seu OCR desde que foi “derrubado” pelo ataque hacker. O encontro citado, presencial e virtual, teve comparecimento de todos os seis conselheiros, mais dois diretores da CDC, empresa federal gestora do porto, a coordenadora de auditoria interna e a coordenadora de controle.

A diretora-presidente da CDC, Mayhara Chaves, à época estava licenciada do cargo.

Terminal Marítimo do Porto do Mucuripe, em Fortaleza. Vulnerabilidade na segurança pode favorecer  tráfico de cocaína(Foto: Deyvison Teixeira - Datadoc O POVO)
Foto: Deyvison Teixeira - Datadoc O POVO Terminal Marítimo do Porto do Mucuripe, em Fortaleza. Vulnerabilidade na segurança pode favorecer tráfico de cocaína

A resposta dada pelo diretor Eduardo Martini Rodriguez na reunião foi que a empresa contratada, que até havia reinstalado o sistema em janeiro/2022, não estava conseguindo atingir a assertividade exigida pela Receita Federal.

Nos testes, deveria ter alcançado de 90% a 95%, conforme o contrato, mas só teria chegado a um terço disso.

“Restando ao gestor do contrato aplicar a penalidade e, não tendo retorno quanto à solução, rescindir o contrato”, descreve a ata do encontro.

O OCR faz a leitura do código do contêiner, uma combinação de quatro letras e sete números identificável em qualquer parte do mundo que trabalha com logística de carga.

Confirma carga, origem, destino, proprietário, importador, lacres.

Registra mais de 70 fotos. “Só estava batendo umas 15 na fase de testes”, confirmou uma fonte, sob anonimato. O Consad confirmou “preocupação com as informações apresentadas”.

Na reunião de junho/2022, a perspectiva de implantação do OCR voltou aos conselheiros com a informação de que uma decisão judicial impediria a contratação de uma nova empresa:

“O Diretor de Infraestrutura informa que a empresa que havia sido contratada pela CDC e que teve seu contrato rescindido por não atingir o nível adequado de assertividade dos sistemas, conseguiu uma liminar para a realização de uma perícia nos sistemas instalados. Tal liminar impede a assinatura de novos contratos”.

O jurídico das Docas já havia recorrido para tentar revogar a decisão. O POVO não conseguiu contatar a empresa que implantou o sistema e realizou os testes.

O diretor da Companhia Docas garantiu ao Consad que “não foi pago nenhum valor referente a este serviço”. Mas o problema e as vulnerabilidades perduram.

Vista do Porto do Mucuripe, em Fortaleza. Ao fundo, o velho farol de guiar navios na costa cearense
Vista do Porto do Mucuripe, em Fortaleza. Ao fundo, o velho farol de guiar navios na costa cearense (Foto: Demitri Túlio)

O POVO tentou falar com o novo presidente do Consad, Eduardo Henn Bernardi, que assumiu o cargo em julho.

Foram feitas ligações para seu celular e foi deixado recado com sua secretária, no Ministério da Infraestrutura, mas não houve retorno até o fechamento deste episódio 3 da série "Porto de Fortaleza em crise".

 

 

 

Resposta do Porto de Fortaleza ao O POVO

O POVO procurou a Companhia Docas do Ceará (CDC) em 11 de agosto, quando pediu uma entrevista presencial com a diretora-presidente Mahyara Chaves.

O contato foi feito com o coordenador de Marketing da CDC, Gilson Galvão, pois a Companhia está há mais de dois meses sem alguém à frente da Coordenadoria de Comunicação, que é responsável pela assessoria de imprensa.

Nos dias seguintes, O POVO voltou a entrar em contato insistindo em uma entrevista presencial, afinal, a diretora-presidente é citada como responsável pela maioria das falhas apontadas pelas fontes e é direito dela responder às questões.

Por e-mail, foi informado ao coordenador a respeito das denúncias envolvendo a gestão do Porto do Mucuripe sobre os assuntos abordados neste especial. Mas o retorno só foi dado em 17 de agosto, com o seguinte texto:

"Ante as questões, a Companhia Docas do Ceará, no exercício de suas funções institucionais, reafirma seu lídimo compromisso com a legalidade estrita, a moralidade, a isonomia, a probidade e a transparência em seus processos, razão pela qual ressalta que qualquer agente público ou ente privado, que porventura tenham contribuído para a prática de atos escusos, serão exemplarmente sancionados, de modo que nenhum ato improbo ou ilegal permaneça sem a devida punição que a lei dispõe."

Após a publicação da primeira matéria desta série, O POVO contatou o Ministério da Infraestrutura, ao qual a CDC é subordinada. 

Dois dias depois do contato, no qual foram expostos os problemas relatados por funcionários e ex-funcionários da Companhia Docas, o Ministério respondeu, por nota, que "desde 2019, o Governo Federal, por meio do Ministério da Infraestrutura, investe na profissionalização de todo o setor portuário, em especial na administração das companhias docas e na modernização e digitalização de serviços."

Sem mencionar as multas aplicadas pela Receita Federal, o sumiço de contêineres, a perda do ISPS Code e a operação deficitária de tecnologias essenciais do Porto de Fortaleza, o Ministério da Infraestrutura concluiu:

"Isto se reflete em todos os índices positivos alcançados nos últimos três anos pelo porto de Fortaleza, por exemplo. A profissionalização da gestão permitiu que a Companhia Docas do Ceará abrisse procedimentos internos para investigar os supostos malfeitos na área do porto e colaborasse de forma ampla com a Polícia Federal em inquérito que apurar responsabilidades criminais. Todos os processos são acompanhados de perto pela Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários do MInfra."

 

 

 

Vigilância nos portos contra o tráfico de cocaína não é sofisticada, diz pesquisador

A dinâmica do tráfico de cocaína pelos portos no Brasil também segue uma lógica mundial de mercado. Traficantes internacionais irão, quase sempre, tentar escoar o produto por terminais marítimos onde a fiscalização é vulnerável e há menos risco para o “negócio”.

A avaliação é de Marcos Alan Vahdat Ferreira, 40, professor do departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Ele também é pesquisador do CNPq na área da segurança transnacional.

Marcos Alan Vahdat Ferreira(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Marcos Alan Vahdat Ferreira

 

O POVO - Por que só agora, a partir de 2015, se intensificou a repressão nos portos do Brasil. Principalmente, no porto de Santos em relação ao tráfico de cocaína?

Marcos Alan – Tem um aspecto importante que é o avanço da inteligência policial, especialmente da Polícia Federal. E, também, coincide com grandes operações que tiveram o porto de Santos como principal rota logística. Investigações que vinham ocorrendo antes, mas que de 2015 em diante tiveram as finalizações. Duas que menciono são as operações Echelon, que revelou muito sobre o funcionamento do Primeiro Comando da Capital (PCC), e a operação Brabo – que mostrou a profissionalização do PCC e a conexão do grupo criminoso com a máfia italiana. E, ainda, com a ligação com indivíduos que seriam ligados à máfia sérvia.

OPAté que ponto a "profissionalização" dos negócios ilícitos do PCC tem relação com a mudança no enfrentamento ao tráfico nos portos brasileiros?

Marcos Alan – A gente tem de tomar cuidado ao achar que o enfrentamento ao tráfico de cocaína, nos portos brasileiros, está muito sofisticado. Na verdade, o PCC continua a operar com força nos portos dada a limitação de pessoal na Polícia e Receita Federal. Muitas vezes as buscas e apreensões são por amostragem, o que faz com que muita coisa passe. A ligação com a máfia, especialmente a italiana e com indivíduos sérvios e albaneses, tem relação com a cadeia produtiva global da cocaína. Nenhuma organização, sozinha, controla toda a cadeia que é produzir a folha da coca, processar em laboratório, colocá-la para em um território, chegar num ponto estratégico do mercado consumidor e distribuir. Ninguém domina isso sozinho.

OPE o Pablo Escobar, na Colômbia?

Marcos Alan - Quem chegou mais próximo, talvez, tenha sido o cartel de Medellín com o Pablo Escobar. Mesmo o PCC, o cartel de Cali – que vai ser central para derrubar o cartel de Medellín –, não chega a esse nível de sofisticação. Então, a ‘profissionalização’ faz parte de uma consciência das organizações criminosas de que toda a cadeia produtiva é difícil um só dominar. Eles têm de se profissionalizar nas conexões com outros lugares do mundo e aí, o PCC faz muito bem isso. Tanto nas conexões com as gangues locais, por exemplo, na Bolívia, na Colômbia e, agora, com a Europa para poder distribuir o entorpecente.

OPO relatório global do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC) aponta que os traficantes estão usando os portos do Norte e do Nordeste por causa do aumento da fiscalização em Santos. Isso não é uma obviedade antiga?

Marcos Alan – Acho que não só pelo aumento da fiscalização em Santos, mas também pelo do controle da produção da cocaína e a diminuição de riscos (de transportar a droga). Se você consegue trazer uma droga via rios Solimões e Amazonas é muito menos fiscalização, fazer chegar pelo mar é muito mais difícil. E há portos (alternativos) em Belém, em Pecém no Ceará, ou aeroportos internacionais menos visados, como é o caso de Fortaleza. O crime é muito dinâmico, ele acaba notando onde estão os espaços onde se diminui o risco. É muito melhor fazer a droga entrar pela região Norte do que ter de cruzar todo o Brasil a partir do porto de Santos ou por Santa Catarina. Então, nesse sentido, não está ligado só às fiscalizações em Santos. Há outras dinâmicas ligadas ao próprio negócio.

OPQuais são os acertos e as falhas da atual política de enfrentamento ao tráfico de cocaína e outras drogas no Brasil?

Marcos Alan – Um acerto importante é a questão da inteligência, mas ainda há muito a fazer. A gente viu nos últimos cinco ou seis anos um aumento na capacidade, por exemplo, de confisco de bens financeiros ligados ao crime organizado. Acabou levando à prisão de indivíduos importantes como o “Cabeça Branca”. A falha é gastar, excessivamente, numa política (de combate) que se faz em relação ao pequeno traficante. O cara que está vendendo cocaína ou maconha numa favela urbana do Brasil, esse cara não será o que vai diminuir o volume de drogas. O que vai diminuir é investir pesadamente em inteligência, trazer equipamento e pessoas especializadas.

OP Há alguma pesquisa na Universidade Federal da Paraíba que aponte a movimentação do traficante jordaniano Waleed Issa Khmayis, que morou por último no Brasil em João Pessoa?

Marcos Alan – O nome dele não aparece na minha pesquisa nem veio nas minhas entrevistas sobre o crime organizado no Brasil. Foi até uma surpresa para mim.

OPDá para historicizar o interesse dos traficantes internacionais de cocaína pelas rotas entre os portos do Nordeste?

Marcos Alan – O Nordeste sempre foi um mercado consumidor importante da cocaína que entra no Brasil e da maconha que é produzida em território brasileiro. Os mercados urbanos são centrais e temos três megalópoles importantes, no caso Recife, Salvador e Fortaleza. Fora cidades que se aproximam de um milhão de habitantes, caso de Natal e João Pessoa. O tráfico mais sofisticado, especialmente via Comando Vermelho, da década de 1990 para cá esteve sempre presente para suprir o consumo. Só que essa ideia de usar o Nordeste como ponto modal é coisa mais recente, ligada à expansão do mercado e a uma melhora da infraestrutura nas cidades.

OPÉ um efeito colateral?

Marcos Alan – Sim, a partir da melhora do número de voos internacionais em aeroportos importantes como Belém, Fortaleza ou mesmo Recife que hoje é um hub da Azul. O que também se aplica a Salvador. A gente está falando de mercado. Se você tem uma empresa transnacional e vê que é possível vender seu produto porque tem aeroportos ou portos que podem vender esse produto, você vai buscar isso. O crime organizado funciona, também, nessa lógica economicista.

OPAté que ponto o surgimento de mais facções no Nordeste (no Brasil) também é convergente para o tráfico internacional de cocaína?

Marcos Alan – A gente tem de ver a dinâmica de aliados e inimigos que vão ajudar organizações criminosas locais e que vão permitir que o tráfico ocorra. Um exemplo emblemático no Ceará são os Guardiões do Estado (GDE) que, em determinado momento, foram aliados do PCC e, depois, romperam. Muito ligado a essa lógica de mercado. O que a gente vê, historicamente, não só no Nordeste, mas também no Norte, é uma tentativa de organizações criminosas mais poderosas do Brasil – a exemplo do PCC e CV – se aproximarem de organizações locais para facilitar o escoamento da droga. Isso é muito difícil falar hoje, a dinâmica do crime é uma lógica muito parecida com uma guerra civil. Lembra muito o conflito no Líbano, você vai tentar ler o conflito no Líbano nos anos 1980 e vai ter de ler muito para entender. Em determinado momento, um grupo era aliado de outro e, de repente, não é mais. E assim funciona no crime. 

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  • Edição OP+ Beatriz Cavalcante, André Bloc, Regina Ribeiro e
  • Fátima Sudário
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Texto Armando de Oliveira Lima, Cláudio Ribeiro, Demitri Túlio
  • Identidade Visual Cristiane Frota
  • Recursos Digitais Beatriz Cavalcante
  • Fotografias FCO Fontenele e Receita Federal
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